“Do muito saber
vem o nada a temer”.
Morra por mim
Amy Plum
A Cidade das
Luzes, dois amantes lutam contra um destino que insiste em separá-los de novo e
de novo, pela eternidade.
Quando os pais
de Kate Mercier morrem em um trágico acidente de carro, ela deixa sua vida ― e
memórias ― para trás para viver com seus avós em Paris. Para Kate ,
a única maneira de sobreviver a dor é escapando para o mundo dos livros e da
arte parisiense. Até que ela conhece Vincent.
Misterioso,
charmoso e devastadoramente bonito, Vincent ameaça derreter o gelo ao redor do
guardado coração de Kate com apenas um sorriso. Quando ela começa a se
apaixonar por Vincent, Kate descobre que ele é um revenant ― um ser morto-vivo
cujo destino o obriga a se sacrificar repetidamente para salvar a vida dos
outros. Vincent e aqueles como ele estão ligados a uma guerra centenária contra
um grupo de revenants do mal que existe apenas para matar e trair. Kate logo
percebe que se ela seguir seu coração, ela poderá nunca mais estar segura novamente.
A Primeira vez
que vi a estátua na fonte, não tinha ideia do que Vincent era. Agora, quando
olho para a beleza etérea das duas figuras conectadas ― o lindo anjo, com suas
fortes e sombrias feições focadas na mulher sendo embalada em seus braços
estendidos, que era toda suavidade e luz ― não me passa despercebido o
simbolismo. A expressão do anjo parecia desesperada. Obcecada, até. Mas também
terna. Como se ele estivesse contando com ela para salvá-lo, e não vice-versa.
E de repente, o nome de Vincent me chamando veio à mente: mon ange. Meu anjo.
Estremeci, mas não de frio.
Jeanne tinha
dito que ter me encontrado tinha transformado Vincent. Eu o tinha dado uma
“vida nova”. Mas estava ele esperando que eu salvasse a sua alma?
1
A maioria dos
adolescentes de dezesseis anos que conheço poderia sonhar em morar numa cidade
estrangeira. Mas me mudar do Brooklin1 para Paris após a morte de meus pais era
tudo, menos um sonho se tornando realidade. Estava mais para pesadelo.
Eu poderia estar
em qualquer lugar, para falar a verdade, que isso não me importaria ― eu estava
cega para tudo ao meu arredor. Eu vivia no passado, desesperadamente agarrada a
cada fragmento de memória da minha vida antiga. A vida em que cresci pensando
que poderia durar para sempre.
Meus pais tinham
morrido em um acidente de carro apenas dez dias depois que consegui minha
carteira de motorista. Uma semana depois, no dia do Natal, minha irmã, Geórgia,
decidiu que nós duas iríamos deixar a América para viver com nossos avós
paternos na França. Eu estava ainda em estado de choque para discutir.
Nós nos mudamos em janeiro. Ninguém
esperava que voltássemos à escola imediatamente. Então apenas passamos os dias
tentando lidar de nossas próprias terríveis maneiras. Minha irmã desvairada
bloqueava sua dor saindo todas as noites com os amigos que tinha feito durante
nossas férias de verão. Eu me tornei uma confusa agorafóbica2.
1 Bairro do subúrbio de Nova York.
2 de Agora uma
fobia Com multidão é. indivíduo que sofre do transtorno agorafobia, que é o medo
de estar em espaços abertos ou no meio
3 de apelido uma
multidão carinhoso..
4 Vá, filha.
5 Voyeurismo é a prática de observar à
distância e secretamente pessoas em seus atos privados.
Em alguns dias,
eu conseguia chegar tão longe quanto andar para fora do apartamento e descer a
rua. Então me encontrava correndo a toda velocidade para a proteção da nossa
casa e longe do opressivo céu aberto, onde parecia que ele estava se fechando
sobre mim. Outros dias raros, eu conseguia acordar com energia suficiente para
andar até a mesa do café da manhã e então voltar para a minha cama, onde eu
podia passar o resto do dia em um estupor de mágoas.
Finalmente
nossos avós decidiram que devíamos passar alguns meses na casa de campo deles.
― Para uma mudança de ar. ― vovó disse, o que me fez ressaltar que nenhuma
diferença na qualidade do ar poderia ser tão drástica quanto de Nova York para
Paris.
Mas, como
sempre, vovó estava certa. Passar a primavera ao ar livre nos fez um bem enorme
e no final de junho nós estávamos, mesmo que por meras reflexões de nós mesmas,
funcionais o suficiente para retornar a Paris e a “vida real”. Isso é, se a
vida poderia ser chamada de “real” de novo. Pelo menos eu estava recomeçando em
um lugar que eu amo.
Não há outro
lugar em que eu quisesse passar junho senão em Paris. Mesmo tendo
passado todo verão lá desde que eu era bebê, nunca me passou despercebido
aquele “zumbido de Paris” enquanto descia suas ruas no verão.
A luz é
diferente da de qualquer outro lugar. Como se tivesse saído direto de um conto
de fadas, uma ondulada varinha de condão brilhante que faz você se sentir como
se absolutamente qualquer coisa pudesse acontecer a você a qualquer momento e
você nem sequer ser surpreendido.
Mas a época era
diferente. Paris era a mesma como sempre tinha sido, mas eu tinha mudado.
Até a cidade
piscando, o ar brilhante, não conseguia penetrar a mortalha de escuridão que eu
sentia impregnada em minha pele. Paris era chamada de Cidade da Luz. Bem, para
mim se tornou a Cidade da Escuridão.
Eu passei a
maior parte do verão sozinha, caindo rapidamente numa solitária rotina: tomar
café da manhã, no antiquado e escuro apartamento do vovô e da vovó, passar a
manhã entretida em um dos pequenos cinemas parisienses que projetavam filmes
clássicos de hora em hora, ou freqüentando um dos meus museus favoritos. Então
retornar para casa e ler pelo resto do dia, jantar, e deitar na cama encarando
o teto, meu ocasional sono cheio de pesadelos. Acordar. Repetir.
As únicas
intrusões na minha solidão eram os e-mails dos meus amigos da minha residência
anterior. ― Como é a vida na França? ― Eles começavam.
O que eu poderia
dizer? Depressiva? Vazia? Eu quero meus pais de volta? Ao invés disso, mentia.
Dizia a eles que eu estava realmente feliz vivendo em Paris. Que era uma
coisa boa meu francês e o de Geórgia ser fluente, pois estávamos conhecendo
muitas pessoas. Que eu mal podia esperar para começar em minha nova escola.
Minhas mentiras
não eram com intenção de impressioná-los. Eu sabia que eles sentiam muito por
mim, e eu só queria assegurá-los que eu estava bem. Só que toda vez que
pressionava enviar e então lia a resposta no meu e-mail, me dava conta do quão
vasto era o abismo entre minha vida real e a fictícia que criei para eles. E
isso me deixou ainda mais depressiva.
Finalmente
entendi que realmente não queria falar com alguém. Uma noite sentei por quinze
minutos com as mãos paradas sobre o teclado, procurando desesperadamente por
alguma coisa ainda fracamente positiva para dizer a minha amiga Claudia. Eu
cliquei fora da mensagem e, após tomar uma profunda respiração, apaguei
completamente meu endereço de e-mail da internet. O Gmail perguntou se eu tinha
certeza.
― Ah sim. ― eu
disse enquanto clicava no botão vermelho. Um enorme peso desapareceu dos meus
ombros. Depois disso, empurrei meu laptop para dentro da gaveta e não o abri
mais até a escola começar.
Vovó e Geórgia
me encorajavam a sair e conhecer pessoas. Minha irmã me convidou para ir com
ela e seu grupo de amigos tomar sol na sua praia artificial localizada próxima
ao rio, ou para bares e ouvir música ao vivo, ou para clubes onde eles dançavam
nos finais de semana à noite. Depois de um tempo, elas desistiram de perguntar.
― Como você pode dançar depois do que
aconteceu? ― eu finalmente perguntei a Geórgia uma noite em que ela estava
sentada no chão do seu
quarto, passando
maquiagem em frente a um espelho dourado estilo rococó que ela tinha tirado da
parede e colocado adequadamente contra a estante.
Minha irmã era
dolorosamente bonita. Seu cabelo loiro morango estava num corte curto de fada
que apenas faces com maçãs do rosto proeminentes poderiam tê-lo. Sua pele de
pêssego e creme era salpicada por finas sardas. E, como eu, ela era alta.
Diferente de mim, ela tinha uma imagem arrebatadora. Eu poderia matar pelas
suas curvas. Ela parecia ter vinte e um ao invés de algumas tímidas semanas de
dezoito anos.
Ela virou seu
rosto para mim.
― Me ajuda a esquecer. ― ela disse,
aplicando uma nova camada de rímel. ― Me ajuda a sentir que estou viva. Estou
tão triste quanto você está, Katie-Bean3. Mas esta é a única maneira que sei
lidar com isso.
Eu sabia que ela
estava sendo sincera. Eu a escutava no seu quarto nas noites em que ela ficava
em casa, soluçando como se seu coração tivesse sido se despedaçado.
― Não faz nenhum bem a você andar
deprimida ―, ela continuou suavemente. ― Você deveria passar mais tempo com as
pessoas. Para se distrair. Olha para você ―, ela disse, afastando o rímel e me
colocando na
sua frente. Ela
virou minha cabeça para encarar o espelho próximo a ela.
Se nos vissem
juntas, jamais conseguiriam adivinhar que éramos irmãs. Meu cabelo castanho
comprido estava sem vida; minha pele, que graças aos genes da minha mãe, nunca
se bronzeava e estava mais pálida do que o normal.
E meus olhos
azul-esverdeados eram tão diferentes dos sensuais da minha irmã de pálpebras
pesadas “olhos adormecidos”. “Olhos de amêndoas”, minha mãe chamava os meus,
mais para o meu desgosto. Eu preferiria ter um formato de olho que atraísse
encontros fulminantes do que os descritos por uma noz.
3 apelido
carinhoso.
― Você é linda. ― Geórgia concluiu. Minha
irmã... Minha única fã.
― Sim, diga isso à multidão de garotos
enfileirados do lado de fora da porta. ― eu disse, com uma carranca mal
disfarçada.
― Bem, não vai encontrar um namorado
passando o tempo todo isolada. Se você não parar de sair para museus e cinemas,
vai começar parecer como
uma daquelas
mulheres do século dezenove de seus livros, que estavam sempre morrendo de
consumo ou drogas, ou o que quer seja. ― ela se virou para mim ― Escute, não
irei perturbar você para sair comigo se você me conceder um desejo.
― Apenas me chame de fada madrinha. ― eu
disse, tentando fazer careta.
― Livre-se dos seus livros irritantes, vá
lá fora e sente-se em um café. À luz do dia. Ou à luz da noite, não me importo
qual. Apenas vá porta afora e
sugue uma boa
dose de poluição rodando o ar dentro desses seus desgastados, consumados
pulmões do século dezenove. Cerca-se de pessoas, pelo amor de Deus.
― Mas eu vejo pessoas. ― comecei.
― Leonardo da Vinci e Quentin Tarantino
não valem. ― ela me interrompeu.
Calei a boca.
Geórgia se
levantou e jogou a alça de sua bolsinha chique de mão acima do braço.
― Não é você que está morta ―, ela disse ―
Mamãe e papai estão. E eles iriam querer que você vivesse.
2
Onde você está
indo? ― Vovó perguntou, metendo a cabeça para fora da cozinha enquanto eu
destrancava a porta da frente.
― Geórgia disse
que meus pulmões estavam precisando de poluição de Paris. ― respondi, passando
minha bolsa de livros atravessada em meu ombro.
― Ela está certa
― ela disse, vindo ficar na minha frente. Sua testa mal alcançava meu queixo,
mas sua perfeita postura e tamanho do seu salto a fez parecer muito mais alta.
Apenas a poucos anos dos setenta, a jovial aparência de vovó reduzia no mínimo
uma década da sua idade.
Quando era uma
estudante de arte, ela tinha conhecido meu avô, um bem sucedido negociante de
antiguidades que a bajulou exageradamente como se ela fosse uma das preciosas
estátuas ancestrais. Agora ela passava seus dias restaurando pinturas antigas
no seu estúdio de teto de vidro, no andar de cima do seu apartamento.
― Allez, file4!
― ela disse diante de mim, em sua adorável pequena forma. ― Vá. Essa cidade
poderia usar um pouco de Katya para se iluminar.
4 Vá, filha.
Eu dei a minha
avó um beijo na sua bochecha macia e rosada e, pegando minhas chaves na mesa da
sala, fiz meu trajeto pelas pesadas portas de madeira, descendo a escada
espiral de mármore, para a rua gritante.
Paris é dividida
em vinte bairros e cada um é chamado por um número. O nosso, o dezessete, é um
velho, saudável bairro. Se você quisesse viver na convergente parte de Paris,
não conseguiria não se mudar para o dezessete. Mas desde que meus avós moram a
uma curta distância da Avenida Saint-Germain, que é lotada de cafés e lojas, e
a apenas quinze minutos da margem do rio Siena, eu certamente não estava reclamando.
Pisei porta
afora direto na clara luz do dia e escapei para o parque em frente ao prédio
dos meus avós. Ele era cheio de árvores velhas e bancos verdes de madeira,
dando a impressão de que se levavam segundos para atravessá-lo, e que Paris era
uma cidade pequena e não a capital da França.
Descendo a Rue
Du Bac, eu passei por um punhado de lojas de roupas muito caras, de decoração
de interiores, e lojas de antiguidades. Nem ao menos parei quando passei pelo
Café do Vovô: o único ao qual ele tinha nos levado desde que éramos bebes, onde
sentávamos e bebíamos água aromatizada com menta enquanto vovô papeava com
qualquer coisa que se movia. Sentar próxima a um grupo de amigos dele, ou até
mesmo do outro lado do terraço do próprio vovô, era a última coisa que eu
queria. Estava focada em descobrir meu próprio café.
Eu estava
pesando a ideia sobre outros dois lugares da região. O primeiro era em uma
esquina, com um interior escuro e um rol de mesas espalhadas no lado de fora do
prédio na calçada. Era provavelmente mais calmo que a minha outra opção. Mas
quando pisei dentro, vi uma linha de homens velhos sentados silenciosamente em
suas posições ao longo do balcão do bar com copos de vinho tinto em frente a
eles.
Suas cabeças
giraram vagarosamente para checar o recém-chegado e, quando eles me viram,
olharam com choque como se eu estivesse vestindo uma gigante fantasia de
galinha. Eles provavelmente devem ter uma placa na porta “Somente Senhores
Idosos”. Pensei, e corri para a minha segunda opção: um movimentado café a
poucos quarteirões no final da rua.
Por causa da
fachada de vidro, o Café Sainte-Lucie aparentava ser mais espaçoso em seu
iluminado interior. O ensolarado pátio ao ar livre continha vinte e cinco
mesas, que estavam frequentemente cheias. Enquanto eu fazia o meu caminho em
direção a uma mesa vazia no canto distante, eu sabia que esse era o meu café.
Eu já sentia como se pertencesse a este lugar. Joguei minha bolsa embaixo da
mesa e sentei de costas para o edifício, garantindo uma vista ampla do terraço,
bem como da rua e da calçada ao lado.
Uma vez sentada,
disse ao garçom que eu queria uma limonada, e então puxei da bolsa uma cópia de
A Idade da Inocência, que eu tinha escolhido da lista de verão da escola que
estaria começando em
setembro. Envolvida pelo cheiro de café forte se dissipando
por todos os lados, me distrai no distante universo do livro.
― Outra limonada? ― a voz francesa veio
flutuando pelas ruas de Nova York do século dezenove em minha mente, jogando-me
abruptamente de volta ao café parisiense. Meu garçom posicionado ao meu lado,
segurando sua bandeja redonda acima do seu ombro e olhando cada parte como um
gafanhoto constipado.
― Ah, claro. Um... Eu acho que vou ficar
com um chá, na verdade. ― disse, me dando conta de que sua intromissão
significava que eu estava lendo
por cerca de uma
hora. Existe uma não pronunciada lei nos cafés franceses que é: uma pessoa pode
sentar em suas mesas o dia inteiro se assim quiser, contanto que peça uma
bebida por hora. É como estar alugando a mesa.
Eu olhei de
relance indiferente ao redor antes de olhar novamente para a página, mas levei
o dobro quando notei alguém me encarando do outro lado do terraço. E o mundo ao
meu redor congelou quando nossos olhos se encontraram.
Eu tinha uma
estranha sensação de que conhecia aquele rapaz. Tinha me sentido desse jeito
com estranhos antes, era como se eu tivesse passado horas, semanas, até anos
com a pessoa. Mas na minha experiência, sempre tinha acontecido de um único
jeito o fenômeno: a outra pessoa nunca havia me notado.
Esse não era o
caso agora. Eu podia jurar que ele sentiu o mesmo.
Pelo jeito que o
seu olhar estava posicionado fixamente, eu sabia que ele estava me encarando há
um tempo. Ele era de tirar o fôlego, com o seu cabelo preto e comprido
balançando para cima e para baixo da sua testa. Sua pele de oliva me fez achar
que ou ele passava muito tempo fora de casa ou veio de algum lugar mais ao sul
e ensolarado de Paris. E os olhos que encaravam dentro dos meus eram tão azuis
quanto o mar, alinhados com espessas sobrancelhas escuras. Meu coração deu um
pulo dentro do peito, e pareceu como se alguém tivesse retirado todo o ar dos
meus pulmões. E contrariando a mim mesma, eu não conseguia quebrar o nosso
olhar.
Alguns segundos
se passaram, e então ele se virou para os seus dois amigos, que estavam rindo
muito alto. Os três eram jovens, lindos e intensos, com aquele tipo de carisma
que justificava o fato de que todas as mulheres no local estavam sob seus
encantos. Se eles notaram, não deixaram transparecer.
Sentado próximo
do primeiro garoto, estava um cara notavelmente bonito, forte como uma rocha,
de shorts, cabelo curto repicado e pele de um chocolate escuro. Enquanto eu o
olhava, ele se virou e me deu um brilhante sorriso compreensivo, como se
entendesse que eu não podia resistir a observá-lo. Sacudindo fora o meu transe
voyeurista5, meus olhos precipitaram para baixo no livro por pouco segundos, e
na hora que me atrevi a olhar de novo, ele tinha desviado o olhar.
Próximo a ele,
de costas para mim, estava um garoto magro, de pele clara levemente queimada de
sol, costeletas e cabelo castanho cacheado, animadamente contando uma história
que fez os outros dois gargalharem.
Eu estudei o
primeiro que tinha a princípio pego minha atenção. Apesar de provavelmente ser
alguns anos mais velho que eu, supus que ainda não passasse dos vinte. Ele se
inclinou para trás na cadeira daquele jeito suave de homem francês. Mas algo um
pouco frio e duro no conjunto das suas feições
5 Voyeurismo é a
prática de observar à distância e secretamente pessoas em seus atos privados.
sugeria que
aquela pose inofensiva era apenas fachada. Não era como se ele parecesse cruel.
Era mais que isso, ele parecia... Perigoso.
Embora tenha me
intrigado, eu conscientemente apaguei o rosto do garoto de cabelo escuro da
minha mente, convencida de que aparência perfeita mais perigosa era igual a
problemas. Eu peguei meu livro e dediquei minha atenção a ele, de volta aos
charmes mais seguros do Newland Archer6. Mas não pude me conter em dar outra
espiada quando o garçom retornou com o meu chá. Irritantemente, não fui capaz
de voltar ao ritmo do meu livro.
Quando a mesa
dele se levantou meia hora depois, isso chamou minha atenção. Podia-se sentir a
concentrada tensão feminina no ar quando os três rapazes andaram pelo terraço.
Como se um time de modelo de roupas íntimas da Armani tivesse andando direto
para o café e, ao mesmo tempo, tirado todas as roupas.
A senhora mais
velha próxima a mim inclinou sua cabeça para a companheira de café e disse: ―
De repente ficou excepcionalmente quente, você não acha? ― Sua amiga riu em
concordância, se abanando com o cardápio de plástico e comendo os garotos com
os olhos. Eu balancei a cabeça com desgosto ― não tinha como esses caras não
perceberem as dezenas de olhos atirando setas de luxúria em suas costas
enquanto iam embora.
Inesperadamente,
provando a minha teoria, o de cabelo preto olhou para mim e, confirmando que eu
o estava observando, sorriu pretensiosamente. Sentindo o sangue subir para as
minhas bochechas, escondi o rosto no meu livro para que assim ele não tivesse a
satisfação de me ver corar.
Tentei ler as
palavras na página por mais alguns minutos antes de desistir. Minha
concentração se foi, paguei pelas minhas bebidas, e deixando uma gorjeta em
cima da mesa, fiz meu caminho de volta para a Rue Du Bac.
6 Protagonista
do livro A Idade da Inocência, da autora Edith Wharton.
3
Vida sem pais
não estava ficando nem um pouco mais fácil. Tinha começado a me sentir como se
estivesse envolvida em uma camada de gelo.
Estava fria por
dentro. Mas me agarrei ao frio pela minha querida vida: quem sabia o que poderia
acontecer se eu deixasse o gelo derreter e realmente começasse a sentir as
coisas de novo? Eu poderia provavelmente me tornar uma idiota chorona e
retornar a ser uma completa inútil como estive sendo pelos primeiros dois meses
após meus pais morrerem.
Eu sentia falta
do meu pai. Seu desaparecimento da minha vida foi insuportável. Aquele homem
francês elegante que qualquer pessoa gostava no instante em que olhava dentro
dos seus risonhos olhos verdes. Quando ele me via e seu rosto se iluminava em
uma expressão de pura adoração, eu sabia que não importava quais coisas
estúpidas eu pudesse fazer na vida, sempre teria um fã nesse mundo torcendo por
mim da arquibancada.
Quanto à mamãe,
sua morte rasgou meu coração para fora, como se tivesse sido uma parte física
de mim arrancada com um bisturi. Ela era uma alma gêmea, um “espírito irmão”,
como ela costumava dizer. Não que nós sempre nos demos bem. Mas agora que ela
se foi, eu tinha que aprender a viver com um enorme e queimante vazio que sua
ausência deixou dentro de mim.
Se eu pudesse
escapar da realidade por apenas algumas horas durante a noite, talvez minhas
horas acordada fossem mais suportáveis. Mas dormir era meu próprio pesadelo
particular. Eu podia deitar na cama até finalmente sentir meus dedos varrerem o
meu rosto com dormência e assim pensar, Finalmente! Então meia hora depois
estaria acordada de novo.
Uma noite eu
estava na extremidade da minha sagacidade, cabeça no travesseiro e olhos
abertos encarando o teto. Meu relógio despertador mostrava uma hora da manhã.
Eu pensei sobre a longa noite a frente e me arrastei para fora da cama,
pescando roupas que eu tinha usado no dia anterior e as coloquei. Ao pisar no
corredor, vi uma luz que vinha debaixo da porta da Geórgia. Bati e virei a
maçaneta.
― Hey ―, Geórgia murmurou para mim de
cabeça para baixo. Ela estava deitada completamente vestida em sua cama, da
cabeça aos seus pés.
― Acabei de chegar em casa. ― ela
acrescentou.
― Você também não consegue dormir ―, eu
comentei. Isso não era uma pergunta. Nós conhecíamos uma a outra muito bem. ―
Por que você não vem dar uma caminhada comigo? ― eu perguntei. ― Não suporto
ficar deitada na cama acordada a noite inteira. É apenas julho e eu já li todos
os livros que possuo. Duas vezes.
― Você está louca? ― Geórgia disse,
rolando sobre a barriga. ― É plena madrugada.
― Na verdade, é tipo o começo da noite. É
apenas uma da manhã. Pessoas ainda estão nas ruas. E, além do que, Paris é a
mais segura -
― Cidade na Terra. ― Geórgia terminou
minha frase. ― A frase favorita do vovô. Ele poderia conseguir um emprego como
guia turístico.
Tudo bem. Por
que não? Não irei dormir tão cedo mesmo.
Saímos nas
pontas dos pés até a frente do corredor e, com um silencioso click, facilitamos
a abertura da porta e a fechamos atrás da gente. Uma vez lá embaixo na sala de
espera, nós paramos para colocar nossos sapatos e então saímos para dentro da
noite.
Uma lua cheia
pairava Paris, pintando as ruas com um brilho prateado. Sem uma palavra,
Geórgia e eu fomos em direção ao rio. Tinha sido o centro de todas as nossas
atividades desde que começamos a vir aqui quando crianças, e nossos pés sabiam
o caminho.
Na margem do
rio, nós descemos os degraus de pedra num caminho que se estendia por Paris ao
longo da água e pelo leste acima dos ásperos paralelepípedos. A presença
massiva achatada do Museu do Louvre apenas visível no lado oposto.
Ninguém estava à
vista, nem abaixo do cais ou acima do nível da rua. A cidade estava silenciosa
com exceção do bater das ondas e do som ocasional de carros. Nós andamos alguns
minutos sem falar antes de Geórgia parar abruptamente e agarrar meu braço.
― Olhe ―, ela sussurrou, apontando em
direção à ponte Carrousel bem acima do nosso caminho a quase quinze metros e
meio de altura.
Uma garota, que
parecia ter a nossa idade, balançou no amplo corrimão de pedra, inclinada
perigosamente para a água. ― Oh! Meu Deus, ela vai pular! ― soprou Geórgia.
Minha mente
correu enquanto avaliava a distância. ― A ponte não é alta o suficiente para
ela se matar.
― Isso depende da profundidade da água ― o
quanto fundo é. Ela está próxima da margem. ― Geórgia respondeu.
Nós estávamos
muito longe para ver a expressão da garota, mas seus braços estavam agarrados à
barriga enquanto ela olhava para baixo, para as ondas escuras e frias.
Nosso foco
rapidamente mudou para o túnel embaixo da ponte. Mesmo durante o dia, era assustador.
Pessoas de rua dormiam debaixo dela quando o clima estava frio. Eu nunca tinha
realmente visto alguém lá dentro quando eu corria pela umidade pútrida à luz do
sol do outro lado. Mas os velhos colchões sujos e as divisórias feitas de
caixas de papelão deixavam isso claro que, para algumas infortunadas almas, o
túnel era um local privilegiado da real estadia de Paris. E agora, dessa
escuridão transcendental veio sons de briga.
Teve um
movimento no topo da ponte. A garota ainda se posicionava imóvel no corrimão,
mas agora um homem se aproximava dela. Ele andou lenta e cuidadosamente, como
se não quisesse alarmá-la. Quando chegou em uma pedra a poucos passos de
distância, ele estendeu o braço oferecendo a garota sua mão. Eu podia ouvir a
voz baixa ― ele estava tentando fazê-la desistir.
A garota se
moveu rapidamente, girando para olha-lo, e o homem esticou sua outra mão,
estendendo ambos os braços em direção a ela, suplicando para ela se afastar da
beirada. Ela balançou a cabeça. Ele deu outro passo em direção a ela. Ela
envolveu os braços mais apertados em seu torso e saltou.
Não foi
exatamente um salto. Foi mais como uma queda. Como se estivesse oferecendo seu
corpo em sacrifício à gravidade e a deixando fazer o que quisesse com ela. Ela
arqueou para frente, sua cabeça batendo na água segundos depois.
Eu senti alguma
coisa apertar meu braço e me dei conta de que Geórgia e eu estávamos agarradas
uma na outra enquanto assistíamos a horrível cena. ― Oh meu Deus, oh meu Deus,
oh meu Deus ―, Geórgia repetia sem parar entre a respiração.
Um movimento no
topo da ponte atraiu meus olhos para cima, na superfície iluminada pela lua,
onde estive observando por qualquer vestígio da garota. O homem que tentou
persuadi-la a descer, agora estava na margem da ponte, seus amplos braços
transformando seu corpo na forma de uma cruz quando ele se jogou poderosamente
para frente. O tempo pareceu parar quando ele pairou no ar como um gigante
pássaro de rapina entre a ponte e a escura superfície da água.
E naquela fração
de segundo, a luz de um poste à beira da água iluminou seu rosto.
Reconhecimento se agitou por mim. Era o garoto do Café Sainte-Lucie.
O que no mundo
ele estava fazendo aqui tentando influenciar uma garota adolescente a desistir
de uma tentativa de suicídio? Ele a conhecia? Ou era apenas um passante que
decidiu se envolver?
Seu corpo cortou
limpo através da superfície da água e desapareceu de vista.
Um grito
irrompeu debaixo da ponte, e silhuetas agachadas apareceram na turva escuridão
do túnel. ― Mais que-! ― Geórgia exclamou. Ela foi interrompida por um flash de
luz e um afiado som de metal quando duas figuras começaram a surgir da
escuridão. Espadas. Eles estavam lutando com espadas.
Pareceu que
Geórgia e eu nos lembramos ao mesmo tempo que tínhamos pernas, e começamos a
correr de volta em direção ao caminho da escada por onde tínhamos vindo. Antes
que pudéssemos alcançá-la, a forma de um homem se materializou na escuridão. Eu
não tive tempo de gritar antes dele me pegar pelos ombros para me impedir de
atravessá-lo por baixo. Geórgia congelou em seu caminho.
― Boa noite,
damas. ― veio uma suave voz de barítono.
Meus olhos
tentaram redirecionar no meu objetivo ― as escadas ― que uma pessoa estava me
impedindo de chegar até elas. ― Solte-me. ― eu consegui gaguejar em meu medo, e
ele imediatamente deixou cair o abraço. Andando para trás, eu me encontrei a
centímetros de outro rosto familiar. Seu cabelo estava escondido por um boné
preto bem preso, mas eu poderia ter o reconhecido em qualquer lugar. Era o
amigo musculoso do garoto que tinha acabado de mergulhar dentro do Sena.
― Vocês não deveriam estar aqui embaixo
sozinhas tão tarde da noite.
― ele disse.
― Tem alguma coisa acontecendo ali. ―
Geórgia ofegou. ― Uma luta.
― Procedimento policial ―, ele disse,
circulando a gente e aplicando uma leve força em nossas costas, nos
direcionando rapidamente para o caminho das escadas.
― Procedimento policial com espadas? ― eu
perguntei, incrédula, quando nós alcançamos o nível da rua.
― Atividade de gangue ―, ele disse
brevemente, já se virando de costa para a escadaria. ― Eu ia querer estar tão
longe daqui quanto pudesse, assim como vocês podem. ― ele disse por cima do
ombro quando alcançou as escadas num instante. Ele arrancou em direção ao túnel
onde apenas duas cabeças submergiram do rio perto do solo. Senti um imenso alívio
quando os vi vivos.
O cara que tinha
nos direcionado chegou quando eles alcançaram a terra, e colocou a suicida a
salvo.
Um urro de dor
quebrou o ar da noite, e Geórgia agarrou meu braço. ― Vamos sair daqui.
― Espere. ― eu hesitei. ― Nós não deveríamos
fazer alguma coisa?
― Como o quê?
― Como chamar a polícia?
― Eles são a polícia. ― ela disse incerta.
― Sim, certo. Eles definitivamente não
parecem com a polícia. Eu poderia jurar que reconheci aqueles caras sendo do
nosso bairro. ― nós ficamos olhando impotentes uma para a outra por um segundo,
tentando absorver o que tínhamos acabado de ver.
― Bem, talvez o nosso bairro esteja sobre
vigilância de uma equipe secreta da SWAT. ― Geórgia disse. ― Você sabe,
Catherine Deneuve mora logo abaixo da rua.
― Sim, certo, como se Catherine Deneuve
tivesse seu próprio cara gostoso do time da SWAT protegendo o bairro de
celebridades perseguidas por espadas.
Incapazes de nos
conter, explodimos em risadas.
― Nós não deveríamos estar rindo. Isso é
sério! ― Geórgia gaguejou, uma lágrima escorrendo por sua bochecha.
― Eu sei. ― funguei, me recompondo.
Embaixo no rio,
a garota e seu salvador tinham desaparecido, e a luta soou longe. ― Veja,
acabou de qualquer forma ―, Geórgia disse. ― É muito tarde para fazermos
qualquer coisa, mesmo se quiséssemos.
Nós nos viramos
em direção à calçada quando duas figuras dispararam escada acima atrás de nós.
Fora da minha visão periférica. Eu os vi se aproximando a toda velocidade e
agarrando o braço da Geórgia para tirá-la do caminho. Eles passaram correndo
nos perdendo por poucos centímetros ― dois homens enormes vestidos com roupas
escuras, com capuzes cobrindo seus rostos. Um brilho de metal refletiu abaixo
de suas longas flanelas. Saltando para dentro do carro, eles arrancaram a
máquina com um rugido. Mas antes de partirem, eles puxaram para o lado da minha
irmã e do meu, e desaceleraram a um ritmo de lesma. Eu podia senti-los nos
encarando através das janelas escuras.
― Está olhando o
quê? ― Geórgia gritou, e eles dispararam ao longo da estrada. Nós ficamos lá
por um tempo, atordoadas. A luz da sinalização de pedestres ficou verde, e
Geórgia entrelaçou seu braço ao meu quando pisamos na rua.
― Noite estranha. ― ela disse finalmente,
quebrando nosso silêncio.
― Concordo ―, eu disse. ― Nós deveríamos
contar sobre isso para a vovó e o vovô?
― O que? ― Geórgia riu. ― E estragar a
ilusão de “Paris segura” do vovô? Eles nunca mais nos deixariam sair de casa
novamente.
4
Quando sai para
a confortante e segura luz da manhã no dia seguinte, os eventos da noite
anterior pareciam irreais. Não havia nada sobre o que tínhamos visto nos
noticiários. Mas Geórgia e eu não pudemos ignorar aquilo assim tão facilmente.
Nós os
discutimos algumas vezes, embora não tenhamos chegado perto de entender o que
tinha acontecido. Nossas teorias correram sobre coisas banais como fanáticos de
Dungeons & Dragons7 encenando ao ar livre em mais um dramático (e muitas
risadas) cenário de tempos remotos com donzelas e cavaleiros.
Embora eu tenha continuado
a fazer todas as minhas leituras no Café Sainte-Lucie, não vi mais o misterioso
grupo de rapazes deslumbrantes de novo. Após duas semanas, eu já conhecia todos
os garçons, bem como os donos, e vários dos clientes regulares se tornaram
rostos familiares: velhinhas com suas xícaras de chá carregando em suas bolsas
de mão seus Yorkshine terriers8 comendo em seus pratos. Homens de negócios com
ternos aparentemente caros falando sem parar em seus celulares e paquerando
toda garota bonita que passava por eles. Casais de todas as idades de mãos
dadas debaixo das mesas.
7 Dungeons & Dragons é um RPG de
fantasia medieval.
8 Raça de cachorro.
Em uma tarde de
sábado, eu estava espremida na minha mesa habitual no canto esquerdo do
terraço, lendo Para Matar Um Rouxinol. Embora essa fosse a terceira vez que o
estava lendo, algumas passagens ainda me traziam lágrimas aos olhos. Como a de
agora estava fazendo.
Eu usei o truque
cravar-unha-na-palma, que, se doesse bastante, poderia me impedir de chorar em público. Infelizmente ,
hoje não estava funcionando, eu podia sentir que os meus olhos estavam ficando
vermelhos e molhados. Isso é tudo o que eu precisava ― chorar na frente da
minha plateia regular do café quando justamente estou começando a conhecê-la,
pensei, espiando para cima para ver se alguém tinha me notado.
E lá estava ele.
Sentando a algumas mesas de distância, me olhando intensamente como tinha feito
da primeira vez. Era o garoto de cabelos negros. A cena do rio, com ele
saltando da ponte para salvar a vida de alguém, sentia como se tivesse sido
nada mais que um sonho. E aqui estava ele, em plena luz do dia, bebendo café
com um de seus amigos.
Por quê? Eu
quase disse em voz alta. Por que eu tinha que estar toda chorosa por um livro
enquanto esse muito-fofo-para-ser-verdade garoto francês estava me encarando a
menos de 5 metros ?
Eu bati meu
livro ao fechar e deixei um pouco de dinheiro em cima da mesa. Mas assim que
comecei a ir em direção à saída, as idosas da mesa próxima a minha se
levantaram e começaram a mexer nas suas enormes pilhas de sacolas de compras.
Eu me mexi impaciente até que finalmente uma delas se virou. ― Sinto muito
querida, mas nós vamos levar mais um minuto. Apenas vá pelo lado. ― E
praticamente me empurrou na direção em que os garotos estavam sentados.
Eu mal tinha
dado um passo ao redor da mesa quando escutei uma voz baixa atrás de mim.
― Você não está
esquecendo algo? ― alguém perguntou em francês. Eu me virei para ver o garoto parado a
centímetros de mim. Ele era
ainda mais lindo
do que parecia a distância, apesar da sua aparência refletir a mesma insensível
frieza que eu tinha notado na primeira vez em que o vi. Ignorei o repentino
solavanco no meu peito.
― Sua bolsa. ―
ele disse, segurando minha bolsa de livros na minha frente, balançando a alça
com dois dedos.
― Hum ―, eu disse, perturbada por sua
proximidade. Então, vendo sua expressão irônica, me recompus. Ele pensa que eu
sou uma total idiota por ter deixado minha bolsa para trás. ― Quanta gentileza
sua. ― eu disse rispidamente, alcançando a bolsa quando tentava salvar qualquer
resquício de confiança dentro de mim.
Ele puxou seu
braço de volta, me deixando agarrar o vento. ― O que? ― ele perguntou
divertido. ― Por que está com raiva de mim? Não é como se eu a tivesse roubado.
― Não, claro que não. ― eu bufei,
esperando.
― Então... ― ele disse.
― Então... Se estiver tudo bem para você,
eu só vou pegar minha bolsa agora. ― eu disse, alcançando e pegando as alças na
minha mão dessa vez.
Ele não a
soltou.
― Que tal uma troca? ― ele ofereceu um
sorriso se contraindo nos cantos da boca. ― Eu irei te dar sua bolsa se você me
disser seu nome.
Eu fiquei
embasbacada, incrédula, e então dei um puxão na bolsa ― justamente quando ele a
soltou. Seu conteúdo se espalhando por toda a calçada. Balancei a cabeça em
descrença. ― Ótimo! Muito obrigada!
Tão
elegantemente quanto podia, eu me agachei de joelhos e comecei a juntar batom,
rímel, carteira, celular, e o que parecia ser um milhão de canetas e pequenas
sobras de papel dentro da bolsa. Olhei para trás para vê-lo inspecionando meu
livro.
― Para Matar Um Rouxinol. Em inglês!
― ele comentou sua voz
entonada com
surpresa. E então, com um leve sotaque, porém perfeito inglês, ele disse ―,
Ótimo livro ― você já viu o filme... Kate?
Meu queixo caiu.
― Mas... Como você sabe o meu nome? ― eu consegui proferir.
Ele estendeu a
outra mão me passando minha carteira de motorista, que continha uma foto de
rosto extremamente feia. A essa altura minha humilhação era tanta que eu nem
sequer podia olhá-lo nos olhos, embora sentisse o seu olhar fixo queimando em
mim.
― Escute ―, ele disse, se inclinando para
perto. ― Eu realmente sinto muito. Eu não pretendia deixar sua bolsa cair.
― Pare de exibir
sua impecável habilidade linguística, Vincent, ajude a garota a se levantar e
deixe-a ir embora. ― veio outra voz em francês. Eu me virei para ver meu torturador ― o
cara de cabelo cacheado ― segurando minha escova de cabelo, com uma expressão
de leve divertimento enrugando seu rosto mal barbeado.
Ignorando a mão
de Vincent que estava estendida para me ajudar a levantar, eu cambaleei para
cima e me limpei. ― Aqui está. ― ele disse me entregando o livro.
Eu o peguei com
um embaraçoso aceno de cabeça. ― Obrigada ―, respondi curtamente, tentando não
correr enquanto tentava o mais rápido possível sair do café para a rua.
Enquanto eu esperava pela luz do sinal de pedestres mudar, cometi o erro de
olhar para trás. Ambos os garotos estavam olhando na minha direção. O amigo de
Vincent disse alguma coisa para ele e balançou a cabeça. Nem posso imaginar o
que eles estão falando de mim, pensei, e grunhi.
Mudando para
vermelho o sinal, atravessei a rua sem olhar na direção deles novamente.
Nos dois dias
seguintes, eu vi o rosto de Vincent em todos os lugares. Na mercearia da
esquina, subindo os degraus do metrô, sentado em todo terraço de café em que eu
passava. Claro, quando eu dava uma melhor olhada em cada um desses caras, nunca
era realmente ele. Para me irritar ainda mais, eu não conseguia parar de pensar
nele, e ainda pior, meus sentimentos eram igualmente divididos entre a prudente
autopreservação e paixão descarada.
Para ser
honesta, eu não estava chateada com a dúvida. Pela primeira vez eu tinha outra
coisa para pensar além de acidentes de carro fatais e o que diabos iria fazer
da vida. Eu tinha pensado ter descoberto antes do acidente, mas agora meu
futuro se estendia diante de mim como um ponto de interrogação de quilômetros
de extensão. Ocorreu-me que minha fixação pelo “cara misterioso” possa ser
apenas uma maneira da minha mente se dar uma folga da minha confusão e luto. E
finalmente decidi que se esse fosse o caso, eu não me importava.
Quase uma semana
tinha se passado desde o meu impasse com Vincent no Café Sainte-Lucie, e apesar
de ter feito das minhas sessões de leitura ali um hábito diário, eu não tinha
visto um traço dele ou de seus amigos. Eu estava agora no que eu considerava a
minha mesa de canto particular, terminando ainda outra novela de Wharton do
programa de estudos da escola (meu futuro professor de inglês era obviamente um
grande fã), quando notei uma dupla de adolescentes sentados do outro lado do
terraço. A garota tinha um corte de cabelo loiro curto e uma risada tímida e, a
maneira natural como ela se mantinha inclinada em direção ao garoto ao lado
dela, me fez pensar que eles eram um casal. Mas ao completar meu exame sobre
ele, percebi como suas feições eram parecidas, apesar do cabelo dele ser um
dourado avermelhado. Eles tinham que ser irmãos. E uma vez que a idéia surgiu
em minha cabeça, sabia que estava certa.
A garota de
repente levantou sua mão para fazer o garoto parar de falar e começou a olhar
pelo terraço, como se procurando por alguém. Seus olhos pararam em mim. Por um segundo ela
hesitou, e depois acenou urgentemente para mim. Eu apontei para mim mesma com
um olhar questionador. Ela acenou com a cabeça e gesticulou me chamando.
Perguntando o
que ela poderia possivelmente querer comigo. Lentamente, comecei a fazer o
caminho até a mesa deles. Ela se levantou alarmada, fazendo sinal para eu me
apressar.
Assim que deixei
meu cantinho seguro e contornei a minha mesa, uma colisão enorme veio por trás
de mim, e eu estava caída achatada no chão. Senti picadas no meu joelho e
levantei a cabeça para ver sangue no chão sob meu rosto.
― Mon Dieu! ―
gritou um dos garçons, e se embaralhou sobre as mesas e cadeiras derrubadas
para me ajudar a ficar em
pé. Lágrimas de choque e dor encheram meus olhos.
Ele arrancou uma
toalha do seu avental de cintura e limpou meu rosto com ela. ― Você tem apenas
um pequeno corte em sua sobrancelha. Não se preocupe. ― eu olhei para a minha
perna ardendo e vi que meu jeans estava rasgado e meu joelho completamente
esfolado.
Enquanto eu
procurava por mais lesões, ficou claro para mim que o terraço estava
completamente silencioso. Mas ao invés de estarem focadas em mim, as faces
atônitas do Café Sainte-Lucie olhavam algo às minhas costas.
O garçom parou
de limpar minha sobrancelha ao olhar de relance por acima do meu ombro, seus
olhos se arregalaram. Seguindo o seu olhar, vi que a minha mesa tinha sido
demolida por um grande pedaço esculpido de alvenaria que tinha caído da fachada
do prédio. Minha bolsa estava deitada ao lado, mas a minha cópia de Casa da
Alegria ficou presa sob o peso da enorme pedra, exatamente onde eu tinha estado
sentada.
Se eu não
tivesse me movido, poderia estar morta, pensei, e meu coração bateu tão forte
que meu peito doeu. Eu me virei de novo para a mesa onde os irmãos estavam
sentados. Exceto por uma garrafa de Perrier9 e dois copos cheios descansando no
meio de um punhado de escombros, ela estava vazia. Meus salvadores tinham ido
embora.
9 Água mineral
originária da França e conhecida mundialmente por sua característica única.
5
Estava tão
aturdida que não consegui ir embora por um tempo. Finalmente, depois de
permitir que o pessoal do café usasse o kit de primeiros socorros em mim,
insisti que eu poderia chegar em casa por conta própria e cambaleei para trás.
Vovó estava chegando na porta da frente quando cheguei.
― Oh, minha querida Katya! ― ela gritou
depois que expliquei o que tinha acontecido e, jogando sua bolsa Hermes
preferida no chão, ela jogou seus braços ao meu redor. Então, pegando as nossas
coisas e me conduzindo para dentro de casa, ela me botou na cama e insistiu
cuidar de mim como se eu fosse uma tetraplégica ao invés de sua neta levemente
machucada.
― Agora, Katya, você tem certeza que está
confortável? Eu posso trazer mais travesseiros se você quiser.
― Vovó, eu estou bem, sério.
― Seu joelho ainda dói? Eu posso colocar
alguma coisa nele. Talvez devesse ser elevado.
― Vovó, eles me trataram com um milhão de
coisas da caixa de primeiros socorros lá no café. Foi apenas um arranhão,
sério.
― Oh! Minha querida criança. Só de pensar
no que poderia ter acontecido. ― ela pressionou minha cabeça contra o seu peito
e acariciou
meu cabelo até
que alguma coisa em mim se quebrou e comecei a chorar.
Vovó balbuciou e
me segurou enquanto eu chorava. ― Estou chorando apenas por que estou abalada.
― protestei entre lágrimas, mas a verdade era que ela estava me tratando
justamente como mamãe teria tratado.
Quando Geórgia
chegou em casa, escutei vovó contando a ela sobre a minha “experiência de quase
morte”. Minha porta se abriu um minuto depois, e minha irmã correu procurando
tão branca quanto um fantasma. Ela se sentou silenciosamente na beirada da
cama, me olhando de olhos arregalados.
― Está tudo bem, Geórgia. Eu apenas estou
um pouco arranhada.
― Oh! Meu Deus, Katie-Bean, se alguma
coisa acontecesse a você... você é tudo o que me resta. Lembre-se disso.
― Estou bem. E nada irá acontecer comigo.
Eu me manterei bem longe de prédios se desfazendo de agora em diante. Prometo.
Ela forçou um
sorriso e estendeu a mão para tocar a minha, mas o olhar assustado permaneceu.
No dia seguinte,
vovó se recusou a me deixar sair de casa, insistindo para eu relaxar e “me
recuperar das minhas lesões”. Eu obedeci para animá-la, e passei a metade da
tarde lendo na banheira. Não foi, até que eu me perdesse na água morna e em um
livro, meu nervosismo melhorar, sentei lá e fiquei tremendo como uma folha.
Não tinha
percebido o quanto assustada com o quase acidente do edifício em ruínas tinha
ficado até cobrir o topo da banheira várias vezes com água quente para me
acalmar. Finalmente, adormeci entre as pequenas plumas de vapor subindo da água
em torno de mim.
Quando passei
pelo café no dia seguinte, ele estava fechado, e a calçada do lado de fora do
prédio estava cercada por uma fita amarela plástica da polícia. Eletricistas em
seus macacões azuis estavam erguidos em andaimes próximos à construção a fim de
estabilizarem a fachada. Eu teria que encontrar outra localização para minha
leitura ao ar fresco. Senti uma pontada de decepção quando me dei conta de que
esse era o único lugar que eu tinha tido a chance de ver minha recente
obsessão. Quem saberia quanto tempo iria levar até dar de cara com Vincent de
novo?
Minha mãe
começou a me levar a museus quando eu era bem pequena. Quando vínhamos à Paris,
ela, vovó e eu podíamos tirar a manhã para uma
“pequena prova
de beleza”, como minha mãe dizia. Geórgia, que ficava entediada na hora em que
alcançávamos a primeira pintura, geralmente optava em ficar para trás com meu
pai e avô, que sentavam nos cafés e conversavam com amigos, colegas de
trabalho, e quem mais passasse vagando pelo lugar. Mas juntas, vovó, mamãe e
eu, vasculhávamos museus e galerias de Paris.
Então não foi
surpresa quando Geórgia me deu a vaga desculpa “já tenho planos” quando
perguntei se ela iria ao museu corrico comigo uns dois dias depois. ― Geórgia,
você tem reclamado que eu nunca faço nada com você. Isso é um convite válido!
― Sim, tão válido
quanto eu te convidar para um rally de caminhões monstros. Pergunte-me de novo
quando você planejar fazer alguma coisa realmente interessante. ― para mostrar
sua boa vontade, ela me deu um amigável aperto em meu braço antes de bater a
porta do seu quarto na minha cara. Touché10.
Eu parti sozinha
para o Le Marais, um bairro do outro lado da cidade do da casa dos meus avós.
Trançando meu caminho pelas pequenas ruas medievais, finalmente cheguei ao meu
destino: um edifício em forma de palácio que abriga o Museu Picasso.
Além do universo
paralelo oferecido por um livro, o espaço tranquilo de um museu era meu lugar
preferido para ir. Minha mãe disse que eu era uma escapista de coração... Que
preferia mundos imaginários a um real. É verdade que eu sempre tinha sido capaz
de me arrancar desse mundo e me colocar dentro de outro. E me senti pronta para
uma relaxante sessão de arte hipnótica.
Enquanto eu
andava pelas gigantes portas do Museu Picasso em suas salas brancas divinas,
sentia meu coração bater devagar. Deixei o calor e a paz do lugar vir até mim
como um suave cobertor. E como de hábito, andei até encontrar a primeira
pintura que realmente chamasse minha atenção, me sentei em um banco para
olhá-la.
10 Touché
(tocado em francês), na esgrima é usado para reconhecer um golpe. É falado pelo
esgrimista golpeado.
Deixei as cores
absorverem em minha pele. A composição torcida, formas misturadas me lembraram
de como eu me sentia por dentro, e minha respiração desacelerou quando comecei
a me desapegar do zoneamento. As outras pinturas no cômodo, o guarda perto da
porta, o cheiro de tinta fresca ao meu redor, até os passantes turistas, caíram
dentro de um plano de fundo circundando esse único quadro de cor e luz.
Eu não sei
quanto tempo fiquei sentada ali antes da minha mente vagarosamente emergir do
meu transe até escutar vozes baixas atrás de mim.
― Venha aqui. Apenas olhe essas cores.
Longa pausa. ― Que cores?
― Exatamente. É justamente o que eu falei
para você. Ele vai do claro, paleta em negrito de alguma coisa como Les
Demoiselles d’Avignon para esse quebra-cabeça cinza e marrom monótono em meros
quatro anos. Que excepcional! Pablo sempre tinha que ser o melhor em tudo que
punha suas mãos e, como eu estava dizendo a Gaspard no outro dia, o que realmente
me incomoda é que...
Eu me virei
curiosa para ver a origem dessa fonte de conhecimentos, e congelei. Apenas a
quatro metros e meio de distância de mim estava o amigo de cabelo cacheado do
Vincent.
Agora que eu o
vi direito, eu estava presa em quão atrativo ele era. Tinha alguma coisa
friccionada sobre ele. Despenteado, cabelo desalinhado, barba por fazer, e
grandes mãos ásperas que gesticulavam apaixonadamente na direção da pintura.
Pela condição de suas roupas, que estavam sujas de tinta, chutei que ele
poderia ser um artista.
Isso veio a mim
em uma fração de segundos. Pois depois disso, tudo o que eu conseguia ver era a
pessoa parada ao lado dele. O garoto de cabelos negros. O garoto que tinha
feito residência permanente nos cantos mais escuros da minha mente desde o
primeiro momento em que o vi. Vincent.
Por que você tem
que se apaixonar pelo mais improvável, inacessível garoto de Paris? Ele era
muito bonito ― e muito indiferente ― para sequer realmente me notar. Eu rasguei
meu olhar para longe, inclinando para frente, e descansei a minha testa nas
mãos. Isso não melhorou em
nada. A imagem de Vincent queimava inapagável dentro da minha
cabeça.
Percebi que o
que quer que fosse sobre ele o fazia parecer um pouco frio, quase perigoso, na
verdade aumentando o meu interesse ao invés de pular fora. O que estava errado
comigo? Nunca tinha me apaixonado por garotos maus antes ― essa era a
especialidade da Geórgia! Meu estômago revirou quando me perguntei se eu tinha
coragem de me levantar e falar com ele.
Mas eu não tive
a chance de me colocar em
teste. Quando levantei minha cabeça, eles já tinham ido.
Andei rapidamente para a entrada da sala ao lado e olhei dentro. Estava vazia.
E então praticamente pulei para fora da minha pele quando uma voz baixa detrás
de mim disse ―, Oi, Kate.
Vincent pairava
sobre mim, seu rosto seis bons centímetros acima do meu. Minha mão voou para o
meu peito em alarme. ― Obrigada pelo ataque cardíaco! ― ofeguei.
― Então é um hábito seu deixar a bolsa
para trás só para iniciar uma conversa? ― ele sorriu e acenou com a cabeça para
a bancada onde eu estava sentada. Deitada em cima, estava minha bolsa de
livros. ― Não seria mais fácil apenas andar até o cara e dizer oi?
Um leve traço de
zombaria na sua voz evaporou o meu nervosismo. Substituído por uma furiosa
indignação que surpreendeu a ambos. ― Ótimo! Oi. ― rosnei minha garganta cheia
de raiva. Marchando até a bancada, peguei minha bolsa e rumei para fora da
sala.
― Espere! ― ele chamou, correndo até mim e
andando ao meu passo.
― Eu não quis dizer isso daquela forma, o
que eu quis dizer...
Eu parei e o
encarei, esperando.
― Sinto muito ―, ele disse, exalando
profundamente. ― Nunca fui conhecido pela minha brilhante comunicação.
― Então por que ao menos se dar ao trabalho?
― desafiei.
― Por que. Você é ― eu não sei ―
engraçada.
― Engraçada? ― eu pronunciei cada sílaba
vagarosamente e o atirei meu olhar Você é um completo maluco. Meus punhos
cerrados automaticamente descansaram na minha cintura. ― Então, Vincent, você veio
aqui com o expresso intuito de me ofender ou tem mais alguma coisa que você
queira?
Vincent colocou
a sua mão na testa. ― Escute, me desculpe. Eu sou um idiota. Nós podemos... Nós
podemos apenas começar do zero?
― Começar o que
do zero? ― perguntei na dúvida.
Ele hesitou por
um segundo e então estendeu a mão. ― Oi, sou Vincent.
Eu senti meus
olhos se estreitarem enquanto eu pesava sua sinceridade. Coloquei minha mão na
dele, balançando de forma mais áspera do que eu pretendia. ― Sou Kate.
― Prazer em conhecê-la, Kate ―, disse
Vincent confuso. Houve quatro segundos de silêncio, durante os quais continuei
a encará-lo. ― Então, você vem sempre aqui? ― ele murmurou inseguro.
Eu não pude
conter a risada. Ele sorriu, obviamente aliviado.
― Hum, sim, na verdade. Eu meio que tenho
uma coisa por museus, não apenas por Picasso.
― Uma “coisa”?
O inglês de
Vincent era tão bom que era fácil esquecer que não era sua primeira língua. ―
Quer dizer que eu gosto de museus. Muito. ― expliquei.
― Ok, entendi. Você gosta de museus, mas
não de Picasso em
particular. Então... Você vem aqui apenas quando quer
meditar?
Eu sorri para
ele, dando-lhe mentalmente pontos por tentar tão duramente. ― Para onde o seu
amigo foi? ― perguntei.
― Foi embora. Jules realmente não gosta de
conhecer novas pessoas.
― Encantador.
― Então, você é britânica? Americana?
― ele disse, mudando de assunto.
― Americana. ― respondi.
― E a garota com quem você tem sido vista
pelo bairro seria a sua...
― Irmã ―, eu disse devagar. ― Você tem me
espiado?
― Duas garotas bonitas se mudam para a
área ― o que eu deveria fazer? Uma onda de prazer fluiu através do meu corpo
com suas palavras.
Então ele me
achava bonita. Mas também achava Geórgia bonita, lembrei. A onda desapareceu.
― Hey, o café do
museu tem uma máquina expressa. Quer tomar um pouco de café enquanto me conta
que outras coisas você tem “uma coisa”?
― ele tocou o
meu braço, a onda estava oficialmente de volta.
Nós nos sentamos
em uma pequena mesa em frente aos cappuccinos cremosos. ― Então, agora que eu
já revelei meu nome e minha nacionalidade para um completo estranho, o que mais
você quer saber? ― eu perguntei, mexendo na espuma do meu café.
― Oh, eu não sei... Tamanho de sapato,
filme favorito, proezas atléticas,
o momento mais
embaraçoso, me surpreenda.
Eu ri. ― Hum,
tamanho de sapato dez11, Bonequinha de Luxo, absolutamente nenhuma habilidade
atlética até agora, e muitos momentos embaraçosos para listar antes do museu
fechar.
― Só isso? Isso é tudo o que eu ganho? ―
ele brincou.
Senti minhas
defesas se derrerem para longe com esse surpreendente, charmoso e,
decididamente, não perigoso lado dele. Com o encorajamento de Vincent, contei a
ele sobre a minha antiga vida no Brooklyn, com Geórgia e meus pais. Dos nossos
verões em Paris, dos meus amigos com quem, por hora, tinha perdido todos os
contatos. Do meu amor sem limites por arte e meu desespero por descobrir que
não possuía absolutamente nem o mínimo de talento para criar alguma coisa.
Ele me estimulou
para mais informações, e eu preenchi as lacunas para ele com bandas, comidas,
filmes, livros, e tudo mais que eu poderia contar. E, não como a maioria dos
garotos da minha idade que eu tinha conhecido na minha outra residência, ele
pareceu genuinamente interessado em cada detalhe.
O que não lhe
disse era que meus pais estavam mortos. Eu me referia a eles no presente e
disse que eu e minha irmã tínhamos nos mudado para os nossos avós para estudar
na França. Não era uma completa mentira. Mas eu não sentia à vontade para lhe
contar toda a verdade. Não queria a pena dele. Eu só queria parecer como
qualquer outra garota que não tinha passado os últimos sete meses se isolando
do mundo em luto profundo.
11 Lembrando que
lá é outra medida.
Suas perguntas
relâmpagos tornaram impossível perguntar alguma coisa de volta. Então quando
nós finalmente saímos, eu o censurei por isso. ― Ok, agora eu me sinto
completamente exposta ― você sabe praticamente tudo sobre mim e eu nada sei
sobre você.
― Aha, isso faz parte do meu plano
diabólico. ― ele sorriu, enquanto o guarda do museu trancava a porta atrás de
nós. ― Como eu poderia esperar
que você
dissesse sim para me encontrar novamente se eu tivesse jogado tudo na mesa na
primeira vez em que nos falamos?
― Essa não é a primeira vez em que nos
falamos. ― Eu o corrigi, tentando gentilmente ignorar o fato de que ele parecia
estar me convidando para sair.
― Ok, na primeira vez em nos falamos sem
eu insultá-la sem querer. ― Ele reformulou.
Atravessamos o
jardim do museu em direção às piscinas rasas onde crianças escandalosas estavam
celebrando o fato de que ainda estava quente e ensolarado às seis da tarde
espirrando água para todo lado.
Vincent andava
ligeiramente curvado com as mãos nos bolsos. Pela primeira vez, senti nele uma
pequena insinuação de vulnerabilidade. E tirei vantagem disso. ― Eu não sei nem
quantos anos você tem.
― Dezenove. ― ele disse.
― O que você faz?
― Estudo.
― Sério? Porque o seu amigo disse alguma
coisa sobre você estar na força policial. ― Eu não pude conter um traço de
sarcasmo na minha voz.
― O que? ― ele exclamou, parando
completamente.
― Minha irmã e eu vimos você resgatar
aquela garota.
Vincent me
encarou pálido.
― A garota que pulou da ponte Carrousel
durante a briga de gangue. Seu amigo nos escotou para longe e nos disse que era
um procedimento policial.
― Oh, ele disse? ― Vincent murmurou, sua
expressão assumindo um olhar endurecido que eu tinha visto da primeira vez que
o encontrei. Ele colocou suas mãos de volta em seus bolsos e continuou andando.
Nós estávamos chegando perto da estação do metrô. Diminui meu passo para ganhar
um pouco mais de tempo.
― Então o que são vocês, policiais
disfarçados? ― não acreditei naquilo nem por um momento, mas tentei parecer
sincera. Ele repentinamente mudou para o humor que tinha me intrigado.
― Alguma coisa do tipo.
― O que, tipo como uma equipe da SWAT?
Ele não
respondeu.
― Aquilo foi realmente bravo, por sinal. ―
insisti. ― Você caindo dentro do rio. O que aquela garota tinha a ver com a
briga de gangue debaixo da ponte, de qualquer maneira? ― perguntei, cavando
mais ainda.
― Hum, eu não deveria falar sobre isso. ―
Vincent disse, estudando o concreto a poucos centímetros em frente aos seus
pés.
― Oh sim, claro. ― eu disse suavemente. ―
É só que você parece muito jovem para ser um policial. ― eu não consegui
impedir um sorriso brincalhão de surgir em meus lábios.
― Eu te disse... sou um estudante. ― ele
disse, me dando um sorriso incerto. Ele poderia dizer que não o comprei.
― Sim. Ok. Eu não vi nada. Eu não escutei
nada. ― eu disse dramaticamente.
Vincent riu, seu
bom humor retornando. ― Então... Kate, o que você vai fazer nesse final de
semana?
― Hum... Sem planos. ― eu disse,
silenciosamente amaldiçoando a vermelhidão das minhas bochechas.
― Você quer fazer alguma coisa? ― ele
perguntou, com um sorriso tão charmoso que meu coração se esqueceu de bater.
Eu acenei com a
cabeça, incapaz de falar.
Levando meu
silêncio como hesitação, ele rapidamente acrescentou. ― Não como um encontro
formal ou alguma coisa do tipo. Apenas sair. Nós podemos... Fazer uma
caminhada. Excursão ao redor do Marais.
Eu acenei com a
cabeça de novo e então acrescentei. ― Isso seria ótimo.
― Ok, que tal sábado à tarde? Luz do dia. Em público. Uma coisa
perfeitamente segura de se fazer com um cara que você mal conhece. ― Ele
estendeu suas mãos como para mostrar não estar escondendo nada.
Eu ri. ― Não se
preocupe. Mesmo que você seja da equipe da SWAT, não estou com medo de você. ―
Tão rapidamente quanto saiu da minha boca, dei-me conta de que eu estava com
medo. Apenas um pouco. Fiquei imaginando mais uma vez se aquilo era sua atração
que exercia em mim. Talvez
a morte dos meus pais tenha me deixado com falta de autopreservação e isso era
uma implicação de perigo para o qual eu estava indo. Ou talvez eu fosse atraída
pela vaga aura da intocável indiferença que ele tinha transpirado. Talvez tudo
o que ele fosse para mim era um desafio. Qualquer que fosse a razão, era
eficaz. Eu realmente gostava desse cara. E eu queria vê-lo de novo. Noite, dia,
eu não me importava, eu estaria lá.
Ele levantou uma
sobrancelha e riu. ― Sem medo de mim.
Tão...
Engraçado. ― Não
pude conter de rir junto.
Acenando com a
cabeça para a outra direção da avenida, ele disse ―, Jules está provavelmente
esperando por mim. Até sábado. Encontro você na estação de metrô da Rue Du Bac
às três?
― Sábado, às três horas. ― confirmei
quando ele se virou e foi embora. Não acho que estaria exagerando muito em
dizer que meus pés não tocaram
o chão o caminho
todo de volta para casa.
6
Vincent estava
esperando por mim na entrada do metrô. Meu coração parou na garganta quando me
perguntei (não pela primeira vez) porque esse muito –maravilhoso –para -ser-verdade
garoto tinhaqualquer interesse na simples antiquada... Ok, talvez um pouco
bonita, mas de jeito nenhum bonita no nível dele... Eu. Minha insegurança
desmoronou quando vi seu rosto se iluminar enquanto eu me aproximava.
― Você veio ―, ele disse, enquanto se
inclinava para me dar os beijos, aqueles duplos beijos com ar nas bochechas
pelos quais os europeus são famosos. Embora eu tremesse quando sua pele tocou a
minha, minhas bochechas ficaram quentes por uns bons cinco minutos depois
disso.
― Claro ―, eu disse, com base em cada gota
da minha reserva de
“Calma e
confiança”, desde que, para dizer a verdade, eu estava um pouco nervosa. ―
Então, para onde nós vamos?
Nós começamos a
descer os degraus para o metrô. ― Você já esteve na Vila Saint-Paul? ― ele
perguntou.
Balancei a
cabeça. ― Não que eu me lembre.
― Perfeito. ― ele disse, parecendo
satisfeito consigo mesmo, mas não dando nenhuma explicação mais profunda.
Nós mal nos
falamos no trem, mas não foi por falta de assunto. Eu não sei se é apenas uma
coisa cultural ou porque os trens são mesmo silenciosos, mas assim que as
pessoas pisam no vagão vindas da plataforma, elas se calam.
Vincent e eu
ficamos de frente um para o outro, segurando o poste de aço central para nos
equilibrarmos, e checando os outros passageiros que estavam ocupados nos
checando. Eu mencionei que checar as pessoas é um passatempo nacional francês?
Quando nós
viramos a esquina e o trem sacudiu para um lado, ele colocou seu braço ao redor
dos meus ombros para me estabilizar.
― Nós ainda nem chegamos lá e você já está
fazendo uma jogada? ―
Eu ri.
― Claro que não. Eu sou um completo
cavalheiro. ― ele respondeu com uma voz suave. ― Poderia jogar meu casaco em
cima de uma poça
d’água para você
qualquer dia desses.
― Não sou uma donzela em perigo. ― eu me
recompus quando o trem parou.
― Ufa ― bem, essa é uma coisa boa ―, ele
disse, respirando em uma falsa simulação de alívio. ― Que tal abrir a porta
para mim então?
Eu ri enquanto
empurrava o metal da alavanca da porta e saia para a plataforma.
Saímos da parada
Saint-Paul diretamente em frente da enorme igreja clássica chamada Église
Saint-Paul. ― Eu costumava vir aqui quando eu era criança. ― disse a Vincent
quando espiei a decorativa fachada.
― Sério?
― Sim. Quando vinha visitar os meus avós
durante o verão, tinha uma garota com quem eu costumava brincar que morava
justamente ali. ― apontei para um prédio algumas portas depois. ― O pai dela
nos disse que essa rua era
usada para batalhas
na época medieval.
Sandrine e eu costumávamos sentar nos degraus da igreja
e fingíamos estar na idade média no meio dos torneios medievais. ― eu fechei
meus olhos e estava de volta há dez anos, revivendo os sons e cores do nosso
imaginário torneio. ― Você sabe, eu sempre pensei que se os fantasmas de
séculos e séculos de Paris pudessem se materializar todos de uma só vez, você
poderia se encontrar cercado pelas pessoas mais fascinantes. ― eu parei de
repente embaraçada sobre o que eu estava jorrando para fora, para esse cara que
eu mal conhecia, detalhes dos meus vários mundos imaginários.
Vincent sorriu
―, Se eu estivesse cavalgando para um desafio, você me daria a honra de
ostentar-se em meu braço, minha senhora?
Fingi pegar
alguma coisa dentro da minha bolsa. ― Não tenho um lenço de renda. Que tal um
lenço de papel?
Rindo, Vincent
colocou um braço ao redor dos meus ombros e me guiou suavemente. ― Você é
maravilhosa. ― disse.
― Isso é definitivamente um passo a mais
que “engraçada”. ― eu o lembrei, incapaz de prevenir minhas bochechas de se
ruborizarem de prazer.
Nós nos
dirigimos para um lado da rua que ia na direção do rio. Na metade do caminho,
Vincent entrou por uma larga porta de um edifício de quatro andares me puxando
atrás dele.
Como vários
prédios de apartamentos de Paris, esse tinha sido construído ao redor de um
pátio interno protegido da rua. Os mais modernos pátios são raramente tão
grandes como uma cama king-size, com apenas espaço suficiente para deixar os
sacos de lixo do prédio. Outros são largos, alguns até tem árvores e bancos,
formando um calmo paraíso para os residentes longe das movimentadas ruas.
Esse pátio era
bem grande e tinha pequenas lojas, e até um café ao ar livre, espalhados entre
os apartamentos do andar térreo, uma coisa que eu nunca tinha visto antes. ― O
que é esse lugar? ― perguntei.
Vincent sorriu e
tocou meu braço, apontando para outra porta aberta no lado distante do pátio. ―
Isso é só o começo ―, ele disse ―, Tem mais ou menos cinco desses pátios todos
ligados paralelos com rua, então você pode passear o quanto quiser sem ver ou
ouvir o mundo lá fora. São todas galerias de artes de lojas de antiquarias.
Pensei que você iria gostar.
― Gostar? Eu amei! Isso é incrível! ― eu
disse. ― Não posso acreditar que não tinha estado aqui antes.
― É fora das rotas comuns. ― Vincent
pareceu orgulhoso do seu conhecimento sobre os caminhos de fora das luzes. E eu
estava apenas feliz que ele me queria ao seu lado para explorá-los com ele.
― Eu que o diga. ― concordei. ― É quase
completamente escondido lá de fora. Então... Você esteve aqui antes. Por onde
começamos?
Nós passeamos
por lojas e galerias lotadas com tudo, desde pôsteres antigos até cabeças de
Buda ancestrais. Para uma cidade cheia de turistas no verão, as lojas tinham
surpreendentemente poucos visitantes, e passeamos pelos espaços como se fossem
nossos próprios lugares privados.
Quando passamos
por uma loja de roupas antigas, Vincent parou em frente a uma caixa de vidro
que exibia joias. ― Hey, Kate, talvez você possa me ajudar. Eu preciso comprar
um presente para uma pessoa.
― Claro. ― eu disse, inclinando para a
caixa quando o vendedor levantou a tampa para nós. Eu peguei um bonito anel de
prata com um conjunto de flores curvadas na superfície.
― O que poderia alguém da sua idade
gostar? ― ele disse, tocando uma cruz vintage cheia de joias.
― Minha idade? ― eu ri. ― Sou apenas três
anos mais nova que você. Talvez menos, dependendo do seu aniversário.
― Junho. ― ele disse.
― Ok, então dois anos e meio.
Ele riu. ― Tudo
bem, você me pegou. É só que eu não tenho certeza do que ela poderia gostar. E
o seu aniversário está chegando.
Eu senti como se
alguém tivesse me dado um soco no meu estômago. Que idiota eu fui: entendi
totalmente errado as intenções dele. Ele obviamente só me via como uma amiga...
Uma amiga com gosto suficientemente bom para ajudá-lo a escolher um presente
para a sua namorada.
― Hmm ―, eu disse, fechando meus olhos e
tentando esconder meu desânimo. Eu os forcei a abrirem de novo e encarei a
caixa. ― Eu acho que isso depende do gosto dela. Ela se veste mais feminina,
roupas floridas, ou ela é mais para... Um... Jeans e camiseta como eu?
― Definitivamente não florida. ― ele
disse, sufocando um sorriso.
― Bem, eu acho que esse aqui é muito
bonito ―, eu disse, apontando para um cordão de couro com um pingente de prata
no formato de uma única gota pendurado nele. Minha voz vacilou quando tentei,
sem sucesso, esconder o caroço na minha garganta.
Vincent se
inclinou para perto da peça. ― Eu acho que você está certa. É perfeito. Você é
uma gênia, Kate. ― ele pegou o colar da caixa e o entregou para o vendedor.
― Vou apenas esperar por você lá fora. ―
eu disse, e sai quando ele apanhou dentro do bolso a carteira.
Tenha controle, eu
me repreendi. Parecia muito bom para ser verdade, e tinha sido. Ele era apenas
um cara muito amigável. Que tinha dito que eu era bonita. Mas que deveria
apenas gostar de sair com garotas bonitas enquanto comprava joias vintages para
a namorada. Eu me perguntei como ela se parecia. Minhas mãos estavam tão
apertadas que minhas unhas deixaram pequenas marcas dentro das palmas. A dor
fez eu me sentir melhor. Aliviou um pouco da ardência em meu peito.
Vincent saiu da
loja carregando um pequeno envelope dentro do bolso do jeans quando ele fechou
a porta atrás de si. Vendo meu rosto, ele parou de repente. ― O que há de
errado? ― ele perguntou.
― Nada ―, eu disse, balançando a cabeça. ―
Eu apenas precisava de um pouco de ar.
― Não ―, ele insistiu ―, Alguma coisa está
chateando você.
Eu balancei a
cabeça resolutamente.
― Tudo bem, Kate ―, ele disse, atrelando
seu braço ao meu. ― Não te forçarei a falar. ― A pressão do braço dele contra o
meu me inundou de calor, mas eu mentalmente afastei. Eu estava tão acostumada a
me proteger que agora isso era quase um reflexo.
Nós passeamos
por esse pátio e por outro, andando em silêncio por alguns minutos até que
paramos para olhar dentro das vitrines de uma loja.
― Então ―, finalmente eu disse. Eu sabia
que não deveria dizer, mas não podia me segurar. ― Quem é a sua namorada?
― Como? ― ele perguntou.
― Sua namorada. Para quem você comprou o
colar.
Ele parou e me
encarou. ― Kate, esse colar é para uma amiga... Que por acaso é uma garota. Uma
muito boa amiga. ― ele soou desconfortável. Eu me perguntei por um segundo se
era verdade, então decidi lhe dar um voto de confiança.
Vincent estudou
meu rosto. ― Você pensou que eu estava pedindo pra você me ajudar a escolher um
presente para minha namorada? E isso fez você se sentir... ― pelo sorriso que
se estendeu em seus lábios, presumi que ele estava prestes a dizer alguma coisa
que me deixaria embaraçada, então comecei a me afastar.
― Espere Kate! ― ele disse, me alcançando
e laçando seu braço de volta ao meu. ― Me desculpe.
Decidi jogar
indiferente sobre isso. ― Você me disse que esse não era um encontro formal
quando me convidou para vir. Por que eu iria me importar se você tem uma
namorada?
― Realmente ―, ele disse me dando um falso
olhar sério. ― Sim, eu e você somos só amigos... em uma caminhada amigável.
Nada mais, nada menos.
― Exato! ― concordei, meu coração dando
uma batida dolorosa.
Ele abriu um
largo sorriso e, se inclinando, me beijou na bochecha. ― Kate ―, sussurrou ―,
Você é ingênua demais.
7
Capaz de aquecer
o significado dessas palavras por exatos três segundos antes dele colocar um
braço firmemente em torno dos meus ombros e começar a me guiar em direção à
saída. ― O que... ― eu comecei, mas sua expressão de aço me calou e eu
acompanhei seus passos ― andando rapidamente, mas não quase correndo, na
direção de uma porta. Uma vez na rua, ele seguiu na direção do metrô. ― Para
onde estamos indo? ― eu perguntei, sem fôlego pelo ritmo acelerado.
― Eu vi alguém por quem não queria passar.
― ele pegou seu celular do bolso e ligou para alguém da discagem rápida. Não
tendo resposta, ele desligou e tentou outro.
― Você se importaria em me dizer o que
está acontecendo? ― perguntei confusa pela sua repentina mudança de
personalidade. Em um instante o príncipe charmoso se transformou num agente
secreto.
― Nós temos que encontrar Jules ―, Vincent
disse, falando mais para ele do que para mim. ― O estúdio de pintura dele é
logo ali na esquina.
Eu parei, e
desde que ele tinha tirado o braço dele do meu, eu o coloquei de volta. ― De
quem nós estamos fugindo?
Levou muito
esforço para Vincent se recompor. ― Kate. Por favor, me deixe explicar depois.
É realmente importante que nós encontremos um dos meus... Amigos.
O maravilhoso
sentimento de cinco minutos atrás tinha desaparecido. Agora eu me via falando
para ele ir em frente sem mim. Mas lembrando do que meus dias consistiam
ultimamente, decidi jogar a cautela (e tédio) ao vento e o seguir.
Ele me levou
para um apartamento em um prédio que praticamente fluía como o charme antigo de
Paris perto da igreja de Saint-Paul. Nós subimos uma estritamente sinuosa
escada de madeira que rumava para o segundo andar. Vincent bateu uma vez antes
de empurrar a porta aberta.
As paredes do
estúdio estavam cheias com pinturas de todas as formas penduradas até o teto.
Nus reclinados pendurados ao lado de semelhantes paisagens urbanas geométricas.
O visual sobrecarregado de cores e formas estava tão esmagador quanto o forte
cheiro de solvente de tinta.
No canto
distante da sala estava uma mulher lindíssima envolvida em um sofá
verde-esmeralda. Vestida com um robe de banho que mal a cobria, ela devia
também ter estado nua. ― Oi, Vincent. ― ela chamou do outro lado da sala com
uma voz baixa, e esfumaçada, que não poderia combinar mais com a sua aparência
sedutora do que se os tivesse comprado como um único conjunto.
O amigo de
Vincent, Jules, saiu de um pequeno banheiro próximo ao sofá. Limpando alguns
pinceis gotejando num pano, ele disse ao olhar para cima de relance ―, Vincent,
cara. Apenas estava começando com Valerie aqui. Você recebeu a ligação de
Jean-Baptiste?
― Jules, nós
precisamos conversar ―, Vincent disse num tom de urgência que fez Jules
levantar a cabeça.
Ele olhou para
mim surpreso e então, olhando o rosto de Vincent, o seu próprio escureceu. ― O que
está acontecendo?
Vincent
pigarreou, encarando inexpressivamente Jules. Ele pronunciou suas palavras com
cuidado. ― Kate e eu estávamos andando em torno da Vila Saint-Paul quando vi
alguém lá.
A palavra código
significou alguma coisa para Jules. Seus olhos se estreitaram. ― Lá fora. ― ele
disse, olhando de canto de olho para mim, e saiu pela porta.
― Já volto, Kate ―, Vincent disse. ― Oh, e
esta é a Valerie, uma das modelos de Jules. ― E tendo feito a apresentação,
seguiu Jules até a escadaria, a porta batendo atrás dele.
Um cavalheiro
até durante uma crise, pensei espantada com o sangue frio de Vincent ao se
certificar que eu tinha sido apresentada a Garota Nua antes de nos deixar
sozinhas juntas. ― Oi ―, eu disse. ― Bonjour ―, ela replicou entediada. Pegando
uma folha de papel, ela se sentou voltando a ler. Eu fiquei perto da porta,
olhando para as pinturas enquanto tentava ouvir o que estava acontecendo lá
fora.
As vozes deles
eram apressadas, mas consegui pegar algumas palavras. ―... Não podia fazer nada
sem ajuda. ― Vincent estava dizendo, um pouco
de
arrependimento na sua voz.
― Estou com você agora. Ambrose pode ser
nosso terceiro. ― Jules respondeu.
Teve um
silêncio, então Vincent estava falando com alguém ao telefone. Ele desligou e disse
―, Ele está a caminho.
― Por que diabos você teve que trazê-la
com você? ― Jules soou incrédulo.
― Eu não estou a serviço vinte e quatro
horas, sete dias por semana. Ela está comigo porque nós tivemos um encontro. ―
A voz baixa de Vincent atravessou pela fina porta de madeira facilmente.
Ele chamou
aquilo de encontro, eu pensei com tanto prazer quanto podia ter nessas
circunstâncias.
― Isso é exatamente o porquê ela não
deveria estar aqui. ― Jules continuou.
― JB apenas disse que nós não podíamos
levar pessoas para casa... não sei porque ela não poderia vir aqui.
Suas vozes foram
ficando mais baixas. Eu me aproximei mais da porta, mantendo um olho em
Valerie, que tinha me olhado de relance e voltado para o livro dela. Ela
obviamente não se importaria menos se eu estivesse espionando.
― Cara. Qualquer lugar em que nós tenhamos
um endereço fixo está fora dos limites para... “Encontros”. Ou o que quer que
seja. Você sabe as regras. De qualquer forma, o encontro acabou!
Houve um
silêncio esmagador, que imaginei estar cheio de encarações de homem-para-homem
debaixo da ação, e então a porta se abriu e Vincent entrou parecendo
apologético. ― Kate, me desculpe, eu tenho que cuidar de algumas coisas. Eu
irei acompanhar você até o metrô. ― Esperei ele me dar alguma explicação, mas
nenhuma veio.
― Está tudo bem ―, eu disse, tentando soar
como se não me importasse. ― Mas não se preocupe em me levar ao metrô. Eu irei
fazer um passeio sozinha. Andar até a Rua das Rosiers para algumas compras ou
algo assim.
Ele me olhou
aliviado, como se essa fosse a resposta pela qual ele estava esperando. ― Pelo
menos vou até lá embaixo com você.
― Não, sério, está tudo bem ―, eu disse,
sentindo uma pontada de raiva dentro de mim. Alguma coisa estava realmente
acontecendo que eu não sabia. Mas ainda era rude de Jules exigir que eu fosse
embora. Sem mencionar a covardia de Vincent em ceder.
― Eu insisto. ― ele disse, e abrindo a
porta para mim, me seguiu para o corredor. Jules ficou de braços cruzados acima
do peito, olhando furiosamente para nós.
Vincent me acompanhou
até embaixo, nas escadas, dentro do pátio. ― Sinto muito ―, ele disse ―, tem
algo acontecendo. Algo que eu tenho que cuidar.
― Como negócios da polícia, você que
dizer? ― eu disse incapaz de esconder meu sarcasmo.
― Sim, algo desse tipo. ― ele disse
evasivamente.
― E você não pode falar sobre isso.
― Não.
― Ok. Bem, eu acho que irei te ver ao
redor do nosso bairro... ―, eu disse, tentando mascarar meu desapontamento com
um sorriso.
― Eu irei te ver em breve ―, ele disse e
estendeu sua mão até a minha. Embora eu não estivesse muito feliz com ele, seu
toque me aqueceu entre os dedos. ― Prometo. ― ele adicionou, me olhando como se
quisesse dizer mais. Então, dando uma sacudida na minha mão, ele voltou a andar
para dentro do prédio. Meu mau humor diminuiu um pouco com o gesto, e eu passei
pelo portão não me sentindo muito abandonada, mas tampouco muito satisfeita com
o rumo que as coisas acabaram se tornando.
Comecei andando
para norte, tentando decidir entre visitar lojas na Rua das Rosiers ou passear
sob as arcadas sombrias da praça do século dezessete chamada Place des Vosges.
Eu não estava nem na metade do quarteirão quando decidi que meu coração não
estava para aquilo. Eu queria saber o que estava acontecendo com Vincent. A
curiosidade estava me matando, e se eu não estava indo obter nenhuma resposta,
eu só queria ir para casa.
Eu parei no
estande de crepe fora do Dome Café e esperei enquanto o vendedor passava a
massa na chapa quente circular. Eu não conseguia deixar de desejar que Vincent
estivesse aqui pegando um crepe comigo enquando eu via pessoas ir e vir da
parada do metrô do outro lado da rua. Como se atendida pelo meu pedido, vi
Vincent se aproximando da entrada com Jules. Eles começavam a descer as
escadas.
Essa é a minha
chance de descobrir o que está acontecendo com a charada de policial. Pensei.
Vincent tinha dito que havia algo que ele tinha que cuidar. Baseado no seu
comportamento na Vila Saint-Paul, parecia mais como se fosse alguém que ele
tivesse que cuidar. Eu queria saber quem era. Eu raciocinei que se eu iria
continuar vendo Vincent, ou o que quer que fosse que estávamos fazendo. Eu
deveria ficar alerta de qualquer atividade misteriosa em que ele estava
envolvido.
― Et voilà,
mademoiselle12 ―, disse o vendedor, segurando um papel toalha envolvendo um
crepe. Apontei para o dinheiro que eu tinha colocado no canto e disse ― Merci
―, enquanto me espreitava para a entrada da estação de metrô.
Depois que
atravessei a catraca, vi os garotos descendo o túnel em direção ao trem. Quando
alcancei o piso dos degraus, eu os vi ficando na metade do caminho. Antes que
um deles pudesse me notar, deslizei num dos bancos de plástico que revestiam a
parede.
12 E aqui está,
senhorita.
Isso foi quando
vi o homem.
A poucos passos
de Vincent e Jules, um homem de trinta e poucos anos vestindo um terno escuro
de corte limpo estava parado na beirada da plataforma, segurando uma pasta em
uma mão e pressionando a outra contra a sua testa abaixada. Parecia que estava
chorando.
Em todos os meus
anos passando pelo metrô de Paris, eu tinha visto coisas estranhas: moradores
de rua nos cantos. Loucos avaliando sobre a repercussão governamental. Bandos
de crianças se oferecendo para ajudar turistas com suas bagagens e então indo
embora com elas. Mas nunca tinha visto um homem adulto chorando em público.
A lufada de ar
que precede a vinda do trem rajou pela plataforma, e o homem olhou para cima.
Calmamente colocando sua pasta no chão, ele se agachou e, usando uma mão para
se estabilizar na margem da plataforma, pulou para os trilhos. ― Oh meu Deus! ―
senti as palavras saírem da minha boca em um grito, e olhei ao redor
freneticamente para ver se alguém mais tinha notado.
Jules e Vincent
se viraram na minha direção, sem nem olhar direito para o homem nos trilhos,
embora eu estivesse apontando para ele com as duas mãos. Sem falar, eles
acenaram com a cabeça um para o outro antes de cada um se mover rapidamente em
direções diferentes. Vincent se aproximou de mim e, me pegando pelos ombros,
tentou me virar para longe dos trilhos.
Lutando contra
ele, eu estiquei minha cabeça ao redor para ver Jules se jogando da plataforma
para os trilhos e empurrando agora o soluçante homem para fora do caminho. Com
o trem vindo a apenas um metro e meio de distância, ele olhou em cima para
Vincent e, dando um leve aceno, tocou com o dedo indicador a testa em uma
saudação casual.
O som foi
terrível. Houve o ensurdecedor rangido de freios do trem, muito tarde para
evitar o desastre, e então o alto baque do metal atingindo carne e osso.
Vincent tinha me prevenido de ver o acidente real, mas o exato penúltimo
segundo se alojou na minha mente: o rosto calmo de Jules acenando para Vincent
enquanto o trem batia atrás dele.
Eu senti meus
joelhos cederem e dobrarem para frente com apenas os braços de Vincent para me
impedir de cair. Gritos vieram de todos os lados, e o som do choro alto de um
homem vinha dos trilhos. Eu senti que alguémme levantou e começou a correr. E
então tudo estava tão silencioso e escuro quanto um túmulo.
8
Acordei com o
cheiro de café forte E levantei minha cabeça que estava entre os meus joelhos
dobrados. Eu estava na rua, sentada na calçada, com minhas costas apoiada na
parede de um prédio. Vincent se agachou na minha frente, segurando uma pequena
xícara fumegante de café expresso a poucos centímetros do meu rosto, agitando-o
como sais aromáticos.
― Vincent ―, eu disse, sem pensar. Seu
nome pareceu natural saindo da minha boca, como se eu o tivesse dito por toda a
minha vida.
― Então você me seguiu. ― ele disse,
parecendo aborrecido.
Minha cabeça
começou a girar quando uma palpitante dor de cabeça se materializou logo acima
da nuca. ― Ow ―, eu grunhi, alcançando atrás e a massageando com a minha mão.
― Beba isso, então ponha sua cabeça de
volta entre seus joelhos. ― Vincent instruiu. Ele colocou a xícara em meus
lábios e eu a virei em um só gole.
― Assim está melhor. Só vou levar essa
xícara de volta ao café ao lado. Não se mova, eu já volto. ― ele disse quando
fechei meus olhos.
Eu não poderia
ter me movido se quisesse. Eu não conseguia nem sentir minhas pernas. O que
aconteceu? Como eu cheguei aqui? E então voltou a memória, me batendo com
horror.
― Você se sente forte o suficiente para
pegar um táxi? ― Vincent estava de volta, se abaixando para deixar seu rosto na
mesma altura que o meu. ―
Você teve um
grande choque.
― Mas... O seu amigo! Jules! ― eu disse
sem acreditar.
― É, eu sei. ― ele franziu suas
sobrancelhas. ― Mas nós não podemos fazer nada sobre isso agora. Precisamos te
tirar daqui. ― ele se levantou e sinalizou para um táxi. Erguendo-me em pé e me
apoiando com um braço forte em meus ombros, ele pegou a minha bolsa e andou até
o carro que aguardava.
Vincent me
ajudou a entrar, e se colocando ao meu lado, deu ao motorista um endereço de
uma rua não muito longe da minha.
― Para onde estamos indo? ― perguntei, de
repente preocupada. Minha parte racional me cutucou no ombro para lembrar-me de
que estava
em um carro com
alguém que tinha não apenas visto seu amigo morrer em frente a um trem, mas que
parecia tão calmo como se isso acontecesse todo dia.
― Eu poderia te levar para sua casa, mas
prefiro levá-la para a minha até que você se acalme. São apenas algumas ruas de
distância.
Eu posso
provavelmente me “acalmar” melhor em minha própria casa do que na sua. Meu
pensamento foi interrompido quando o significado das palavras dele bateu. ―
Você sabe onde eu moro? ― sussurrei.
― Já confessei seguir pelo nosso bairro as
novas importações americanas. Lembra? ― ele piscou para mim com um desarmado
sorriso. ―
Além disso, quem
seguiu quem dentro do metrô hoje?
Eu ruborizei
quando me perguntei quantas vezes ele tinha me visto enquanto eu passeava,
esquecendo que eu estava sendo observada.
E então a
memória de Jules no metrô retornou em um tremor que me sacudiu. ― Apenas não
pense. Não pense. ― Vincent murmurou. E naquele momento, minhas emoções se
prenderam em duas direções opostas. Eu estava assustada e confusa pela
indiferença do Vincent com a morte de Jules, mas também queria desesperadamente
que ele me confortasse.
Sua mão estava
pousada casualmente em seu joelho, e eu tive o forte desejo de pegá-la e
pressioná-la em meu rosto frio. Para segurá-lo e evitar deslizar profundamente
embaixo da onda de medo que ameaçou me afundar. O destino de Jules ecoou
demasiadamente alto sobre o acidente dos meus próprios pais. Eu senti como se a
morte tinha me seguido através do Atlântico. Estava se arrastando por minha
vigília, ameaçando pegar todos que eu conhecia.
E como se
Vincent tivesse lido meus pensamentos, sua mão deslizou pelo assento e pegou os
meus dedos de onde eles estavam apertados entre meus joelhos. E os cruzou entre
os dele, instantaneamente fiquei envolvida por um sentimento de segurança. Eu
inclinei minha cabeça para trás contra o encosto de cabeça e fechei meus olhos
pelo resto da corrida.
O táxi veio a
parar em frente a um muro de pedra de três metros de altura com enormes portões
de ferro. Suas grades foram montadas pela parte detrás com folhas pretas de
metal que, com muito bom gosto, bloqueavam qualquer visão do que estava dentro.
Espessos cipós de glicínias cobriam acima da margem do muro, e um casal de
majestosas árvores estava visível detrás da barreira.
Vincent pagou o
taxista, então veio ao meu lado e abriu a porta para mim. Ele me encaminhou até
uma coluna embutida com um sistema de segurança audiovisual de alta tecnologia.
A trava abriu
após ele digitar o código de segurança em um teclado. Ele pressionou o portão
aberto com uma mão e me pegou gentilmente com a outra. Eu ofeguei quando
examinei as nossas redondezas.
Eu estava parada
num pátio de paralelepípedos de um hôtel particulier13, um daqueles dentro dos
castelos que os saudáveis parisienses construíram quando a cidade deles
habitava os séculos dezessete e dezoito. Esse aqui foi construído com massivas
pedras cor de mel e culminava num telhado preto
13 Mansão.de
ardósia com janelas espaçadas uniformemente ao longo do seu comprimento. A
única vez em que realmente vi uma dessas construções de perto foi quando mamãe
e vovó me levaram com elas em um tour com guia.
No meio do pátio
havia uma fonte circular esculpida no granito, sua bacia cinza-escuro grande o
suficiente para nadar alguns cursos de diâmetros. Sobre a água espirrando,
havia uma figura de pedra de um anjo em tamanho real carregando uma mulher
deitada em seus braços. O corpo dela era visível através do tecido do vestido,
que foi trabalhado tão detalhadamente pelo escultor que a pesada pedra foi transformada
no mais fino de gaze14. A beleza frágil da mulher era compensada pela força do
anjo masculino que a segurava, suas asas enormes curvadas protetoramente sobre
as duas figuras. Era um símbolo combinando beleza e perigo, e lançava uma aura
sinistra por todo o pátio.
― Você mora aqui?
― Eu não sou o dono do lugar, mas sim, eu
moro aqui ―, Vincent disse, me guiando através do pátio para a porta de
entrada. ― Vamos te colocar para dentro.
Lembrando-me da
razão pela qual nós estávamos ali, o som do corpo de Jules sendo esmagado por
uma tonelada de metal ressoou em meus ouvidos. As lágrimas que eu estava
segurando começaram a cair.
Vincent abriu a
porta ornamentada e me levou a um enorme hall de entrada com uma escadaria
dupla que terminava também em uma parede com uma varanda com vista para o
aposento. Um lustre de cristal do tamanho de um Fusca estava pendurado sobre
nossas cabeças, e tapetes Persas pelo chão de mármore incrustados por pedras de
flores e videiras.
Que lugar é
esse? - Eu pensei.
Eu o segui até
outra porta para uma sala de teto alto que parecia não ter sido tocada desde o
século dezessete, e me sentei num sofá duro e antigo.
Segurando minha
cabeça entre mãos, me inclinei para frente e fechei meus olhos. ― Eu já volto.
― Vincent disse, e eu ouvi a porta se fechar quando ele saiu do cômodo.
14 Tipo de
tecido.
Após alguns
minutos, me senti mais forte. Descansando minha cabeça no sofá, estudei a
majestosa sala. Pesadas cortinas nas janelas bloqueavam a luz do dia. Um
delicado candelabro, que parecia originalmente ter sido preenchido com vela ao
invés de lâmpadas elétricas em forma de chamas agora detidas, lançava apenas
luz suficiente para iluminar as paredes que estavam lotadas com pinturas. Uma
dúzia de faces de mau-humor, aristocratas franceses de séculos atrás franzindo
a testa para mim.
Uma porta de
empregados escondida na parede dos fundos se abriu e Vincent a atravessou. Ele
colocou um enorme bule de porcelana no formato de um dragão e uma xícara
combinando sobre a mesa diante de mim, próximo a um papel fino de cookies. A
fragrância de chá forte e de amêndoas flutuava acima da bandeja de prata.
― Açúcar e cafeína. O melhor remédio do
mundo ―, Vincent disse, enquanto se sentava de uma poltrona estofada a poucos
metros de distância.
Eu tentei pegar
o pesado bule, mas minhas mãos estavam tão tremulas que só consegui fazer
barulho na xícara. ― Aqui, me deixe fazer isto ―, ele disse quando se inclinou
e derramou. ― Jeanne, nossa governanta, faz o melhor chá. Ou assim ouvi falar.
Eu sou mais um homem de café.
Eu empalideci
com a sua conversa fiada. ― Ok, basta. Apenas pare aí.
― Meus dentes estavam batendo: eu não
saberia dizer se eram meus nervos abalados ou o medo de que alguma coisa estava
muito errada. ― Vincent...
Quem é você? ―
Eu estou na casa dele e nem sei seu sobrenome, percebi um segundo antes de
continuar. ― Seu amigo morreu agora pouco, e você está me falando sobre... ―
minha voz falhou ―, Sobre café?
Uma expressão
defensiva registrou em seu rosto, mas ele permaneceu calado.
― Oh meu Deus ―, eu disse suavemente, e
comecei a chorar de novo.
― O que há de errado com você?
A sala estava
silenciosa. Eu podia escutar os segundos tiquetaqueando em um enorme relógio de
pêndulo num canto. Minha respiração se acalmou, e eu abri meus olhos, tentando
me recompor.
― É verdade. Eu
não sou muito bom em mostrar minhas emoções ―, Vincent concedeu finalmente.
― Não mostrar suas emoções é uma coisa.
Mas correr após seu amigo ser demolido por um trem subterrâneo?
Em um baixo tom
cuidadosamente medido, ele disse ―, Se nós tivéssemos ficado teríamos que falar
com a polícia. Eles teriam interrogado ambos, como devem ter feito com a
garçonete que ficou lá. Eu queria evitar isso ― ele pausou ― a todo custo.
A aparência fria
de Vincent tinha voltado, ou eu estava começando a notar isso de novo. Um
formigamento se espalhou pelos meus braços e por todo o meu corpo enquanto me
dava conta do que ele estava dizendo. ― Então você é ― eu engasguei ― você é o
que? Um criminoso?
Seus pensativos
olhos escuros ficavam me atraindo para ele enquanto minha mente gritava para
fugir. Para longe.
― O que você é? Um procurado? Procurado
pelo que? Você roubou todas as pinturas desta sala? ― percebi que estava
gritando e abaixei minha voz. ― Ou é algo pior?
Vincent limpou
sua garganta para ganhar tempo. ― Vamos apenas dizer que não sou o tipo de cara
que a sua mãe gostaria que você saísse por aí.
― Minha mãe está morta. Meu pai também. ―
As palavras escaparam dos meus lábios antes que eu pudesse detê-las.
Vincent fechou
os olhos e pressionou as mãos na testa como se estivesse com dor. ―
Recentemente?
― Sim.
Ele assentiu
solenemente, como se tudo fizesse sentido. ― Sinto muito, Kate.
Entretanto,
mesmo sendo uma pessoa ruim, ele se importa comigo. O pensamento veio a minha
mente tão subitamente que não consegui parar a reação desencadeada. Meus olhos
se encheram de lágrimas. Peguei a xícara de chá e a levantei aos lábios.
O líquido quente
escorreu da minha garganta para o meu estômago, e o efeito calmante foi
imediato. Meus pensamentos clarearam. E de forma bastante estranha, me senti
mais no controle da situação. Ele sabe quem eu sou agora, mesmo que eu não
saiba nada sobre ele.
Minhas
revelações pareceram tê-lo abalado. Vincent ou estava lutando para se controlar
juntamente, pensei, ou segurar algo do passado. Decidi tirar vantagem de seu
aparente momento de fraqueza para descobrir alguma coisa. ― Vincent, se você
está em alguma...
Situação perigosa, por que no mundo iria tentar ser meu
amigo?
― Eu disse a você, Kate, eu tinha te visto
nas redondezas do bairro ― ele pesou suas palavras seriamente ― e que parecia
ser alguém que eu iria querer conhecer. Isso provavelmente foi uma má ideia.
Mas eu obviamente não estava pensando.
Enquanto ele
falava, sua voz passou de aquecedora para verdadeiramente fria. Eu não podia
dizer se ele estava zangado com ele mesmo por ter me envolvido em qualquer que
seja a bagunça em que estava metido ― ou comigo por trazer isso à tona. Não
importava. O efeito da sua repentina frieza foi o mesmo. Eu estremeci, me
sentindo como alguém que tivesse andando por cima da gravidade. ― Estou pronta
para ir. ― eu disse, ficando em pé de repente.
Ele girou sobre
os pés e acenou com a cabeça. ― Sim, vou te levar para casa.
― Não, está tudo bem. Eu sei o caminho. Eu
iria... Preferir que você não fosse. ― As palavras vieram de uma parte racional
de mim. A parte que estava insistindo para eu sair da casa o mais rápido
possível. Mas a outra parte de mim se arrependeu assim que as disse.
― Como quiser. ― ele disse, e voltando ao
grande hall de entrada, ele abriu a porta que dava para o pátio.
― Você tem certeza que ficará bem? ― ele
insistiu enquanto bloqueava a porta, esperando por qualquer resposta antes de
me deixar ir embora. Eu mergulhei por baixo dos seus braços me espremendo por
ele, passando a centímetros da sua pele.
Meu erro foi
inalar quando passei. Ele cheirava a carvalho, erva e lenha. Ele cheirava como
memórias. Como anos e anos de memórias.
― Você parece estranha de novo. ― Sua dura
aparência sumiu por tempo suficiente para mostrar um brilho de preocupação.
― Estou bem. ― eu rebati, atenta para soar
segura, e então o vendo ali, calmo e controlado, refiz minha resposta. ― Eu
estou bem, mas você não
deveria estar.
Você acabou de perder um amigo em um acidente horrível e está aí parado como se
nada tivesse acontecido. Eu não me importo com quem você seja ou o que tenha
feito para que fugisse daquele jeito. Mas para isso não te afetar... Você tem
que ser seriamente perturbado.
Um surto de
emoção atravessou o rosto escuro de Vincent. Ele pareceu chateado. Bem, que
bom.
― Eu não entendo você, e nem quero. ― meus
olhos se estreitaram em desgosto. ― Eu espero nunca mais te ver de novo. ― eu
disse, e comecei a
andar em direção
ao portão.
Senti uma forte
mão agarrar meu braço, e virei minha cabeça para ver
Vincent parado
centímetros atrás de mim. Ele se inclinou até que sua boca estivesse próxima ao
meu ouvido. ― As coisas nem sempre são como aparentam ser, Kate. ― ele
murmurou, e cuidadosamente soltou o meu braço.
Eu corri para
frente do portão, que já estava se abrindo para me deixar passar. Uma vez que
eu estava do lado de fora, ele começou a se fechar. Um estrondo como porcelana
sendo esmagada contra o mármore veio de algum lugar de dentro da casa.
Eu permaneci
imóvel, olhando de volta para o gigante portão de metal. Minha intuição me
dizia que eu tinha feito algo errado. Que tinha julgado mal o caráter de
Vincent. Mas todos os sinais apontavam para o fato de que ele era algum tipo de
criminoso. E pelos esmagadores sons que ainda emanavam da casa, talvez até um
violento. Balancei minha cabeça me perguntando como eu poderia ter perdido
minha capacidade de raciocinar apenas por um lindo rosto.
9
Naquelas duas
semanas seguintes, eu não conseguia parar de reprisar os eventos daquele dia na
minha cabeça, de novo e de novo, como um disco riscado. Por fora eu devia ter
parecido isso mesmo.
Eu me levantava,
fazia minhas leituras num café alternativo, ia ao cinema ocasionalmente, e
tentava acompanhar Geórgia e meus avós nas conversas na mesa de jantar. Até
então, eles pareciam saber que eu estava aflita. Mas não tinham motivos para
atribuir o meu humor negro a nada novo.
Toda vez que
Vincent abria caminho em minha mente, eu o empurrava para fora. Como eu podia
ter estado tão equivocada? O fato que ele era parte de algum tipo de atividade
criminosa fazia mais sentido agora que pensava de novo naquela noite do rio.
Ali devia ter sido algum tipo de guerra entre gangues do submundo acontecendo.
Mesmo que ele fosse um mau garoto, ao menos ele salvou a vida daquela garota,
minha consciência me atormentava.
Mas o que quer
que fosse que seu passado continha, eu não conseguia justificar seu frio
distanciamento após Jules ter sido atingido pelo trem. Como poderia alguém
deixar a cena da morte de um amigo para garantir a sua própria segurança da
lei? Tudo isso me gelava os ossos. Especialmente sabendo que já tinha começado
a sentir alguma coisa por ele.
A sedutora
maneira com que ele tinha brincado comigo no Museu Picasso. Sua intensa
expressão quando segurou minha mão no pátio de Jules. O conforto que eu tinha
sentido quando ele colocou sua mão em cima da minha no táxi. Aqueles instantes
continuavam piscando na minha memória, me lembrando do porque gostei dele. Eu
as afastava de lado de novo e de novo, aborrecida comigo mesma por ter sido tão
ingênua.
Finalmente
Geórgia me encurralou uma noite em meu quarto. ― O que tem de errado com você?
― ela perguntou com sua usual diplomacia. Ela se jogou no meu tapete e se
inclinando de costas na minha inestimável penteadeira Empire que eu nunca tinha
usado por medo de quebrar as alças.
― O que você quer dizer? ― respondi,
evitando seus olhos.
― Quero dizer, que diabos há de errado com
você? Sou sua irmã. Eu sei quando tem alguma coisa errada.
Eu estava
ansiando para falar com Geórgia, mas não podia nem imaginar por onde começar.
Como poderia contar a ela que o cara que tínhamos visto se jogar da ponte era
na verdade um criminoso que eu estava saindo ― isso
é, até eu o ver
ir embora da cena da morte do seu amigo sem derramar uma lágrima?
― Ok, se você não quer falar eu posso
simplesmente começar a chutar. Mas eu vou conseguir arrancar isso de você. Você
está preocupada sobre começar em uma nova escola?
― Não.
― É sobre amigos?
― Que amigos?
― Exatamente!
― Não.
― Garotos?
Alguma coisa no
meu rosto deve ter me entregado, porque ela imediatamente se inclinou em minha
direção, cruzando suas pernas numa pose me-conte-mais. ― Kate, porque você não
me contou sobre... Quem quer que ele seja... Antes de chegar a isso?
― Você não fala comigo sobre os seus namorados.
― Isso é porque existem muitos deles. ―
Ela riu, e então, se lembrando do meu desanimo, acrescentou ―, Mas, nenhum
deles é sério o suficiente para mencionar. Ainda. ― Ela esperou.
Não tinha como
escapar do anzol. bairro, e nós meio que saímos algumas uma notícia ruim.
― Ok, tem esse
cara que mora no vezes até eu descobrir que ele era
― Quão ruim é a má notícia? Casado? Não
pude deixar de rir. ― Não!
― Drogado?
― Não, quer dizer, acho que não. É mais
para... ― assisti a reação da Geórgia. ― É mais para ele estar com problemas
com a lei. Como um criminoso ou algo do tipo.
― Sim, eu diria que é uma notícia ruim ―,
ela admitiu pensativamente.
― Soa mais como alguém para se ir atrás,
na verdade.
― Geórgia! ― gritei, jogando um travesseiro
nela.
― Me Desculpe. Desculpe. Eu não deveria
brincar sobre isso. Você está certa. Ele não parece ser um bom material de
namorado, Katie-Bean. Então
por que você
apenas não dá palmadinhas nas suas costas por ter recuado antes de ter ido mais
afundo ao descobrir, e ser feliz em seu caminho de volta para Guyland15?
― Apenas não consigo acreditar que eu
estava tão errada sobre ele. Ele parecia tão perfeito. E tão interessante. E -
― Bonito? ― minha irmã interrompeu.
Eu me deitei de
volta na cama e encarei o teto. ― Oh, Geórgia. Bonito não. Maravilhoso. Como um
incrível de parar o coração. Não que isso importe agora.
Geórgia parou e
olhou para mim. ― Sinto muito que não tenha dado certo. Teria sido legal ver
você saindo e se divertindo com algum homem gato francês. Eu não continuarei a
te perturbar sobre isso, mas assim que você estiver pronta para viver de novo,
me avise. Existem festas praticamente todas as noites.
― Obrigada, Geórgia. ― eu disse,
estendendo a mão para tocar a dela.
― Qualquer coisa para a minha irmãzinha.
E então, sem ao
menos perceber, o verão estava oficialmente acabado e era hora de começar a
escola.
15 Quer dizer
“Terra dos garotos”. Também é o título de um livro.
Geórgia e eu
falamos francês fluentemente. Papai sempre falou com a gente, e passamos tanto
tempo em Paris durante nossas férias, que o francês vem tão facilmente quanto o
inglês. Então nós poderíamos ter ido a uma escola francesa de ensino médio. Mas
o sistema francês é tão diferente do americano que nós teríamos que fazer todas
as matérias faltantes da grade para podermos nos formar.
A escola
americana de Paris era um daqueles lugares esquisitos nas cidades estrangeiras
onde expatriados se amontoavam juntos num círculo defensivo e tentavam fingir
que ainda estavam em suas terras. Eu vi esse lugar como sendo para almas
perdidas. Minha irmã viu isso como uma oportunidade de fazer mais amigos
internacionais que conseguiria visitar em seus países nativos durante as férias
escolares. Geórgia trata amigos como roupas, alegremente negociando uma pela
outra quando for conveniente ― não de uma forma ruim, mas apenas não muito
próxima.
Quanto a mim,
sendo uma caloura, eu sabia que tinha dois curtos anos com essas pessoas,
alguns deles poderiam voltar para seus países de origem antes do ano escolar
ter ao menos terminado.
Então, depois de
andar pelas grandes portas de entrada no primeiro dia de escola, fui
diretamente para a secretaria pegar meu horário, e Geórgia andou diretamente
para um grupo intimidante de garotas e começou a conversar como se as
conhecesse por toda a vida. Nossos dados sociais foram lançados nos primeiros
cinco minutos.
Eu não tinha
estado em um museu desde que tinha visto Vincent no Museu Picasso, então foi
com uma sensação de trepidação que me aproximei do Centro Pompidou uma tarde
depois da escola. Meu professor de história tinha nos passado um projeto sobre
os eventos que aconteceram no século vinte em Paris, e eu tinha escolhido as
revoltas de 1968.
Diga “Maio de 1968” e toda pessoa francesa
irá imediatamente pensar na greve geral por todo o país que fez a economia
francesa parar. Eu estava focando nas longas semanas de lutas violentas entre a
polícia e os estudantes universitários em Sobornne. Nós
deveríamos escrever nossas redações em primeira pessoa, como se tivéssemos
experimentado os eventos por nós mesmos. Ao invés de olhar nos livros de
história, decidi procurar jornais contemporâneos para encontrar histórias
pessoais.
Os materiais que
eu precisava estavam numa biblioteca imensa localizada no Centro Pompidou, no
segundo e terceiro andar. Mas, uma vez que os outros andares abrigavam o Museu
Nacional de Arte Contemporanea de Paris, eu planejei seguir o meu trabalho de
escola contemplando algumas bem merecidas artes.
Uma vez
instalada em uma das cabines de visualização da biblioteca, eu folheei
carretéis de microfilmes dos dias das revoltas mais agitadas. Tendo lido que em
10 de maio foi um dia de luta aquecida entre a polícia e estudantes, escaneei a
frente da página do dia, peguei algumas notas, e então folheei pelas páginas a
fim de ler os editoriais. Foi difícil de imaginar esse tipo de violência
acontecendo apenas do outro lado do rio na Latin Quarter, a quinze minutos
andando do lugar onde eu estava sentada.
Tirei o carretel
e o substitui por outro. As revoltas tinham esquentado de novo em 14 de julho,
dia da independência francesa. Vários estudantes, assim como turistas que
estavam visitando Paris para as festividades, foram levados aos hospitais
próximos. Eu fiz notas das primeiras duas páginas, e então rolei de volta para
as duas páginas de obituários e suas fotos em preto-e-branco. E lá estava ele.
Na metade da
primeira página. Era Vincent. Ele tinha o cabelo comprido, mas parecia
exatamente como há um mês. Meu corpo congelou enquanto eu lia o texto.
Bombeiro Jacques
Dupont, dezenove anos de idade, nascido em La Baule , Pays de La Loire , foi morto em serviço
em um prédio pegando fogo, que se acredita ter sido provocado por um coquetel
Molotov pelos estudantes revoltosos. O prédio residencial, na Rua Chapollion
18, estava em chamas quando Dupont e seu colega, Thierry Simon (óbito na sessão
S), correram para dentro do prédio e começaram a evacuar os moradores, que
tinham tomado à cobertura dos combates na adjacente Sorbonne. Preso sob as tábuas
incendiadas, Dupont faleceu antes que pudesse ser levado ao hospital e seu
corpo foi dado como morto. Doze cidadãos, incluindo quatro crianças, devem suas
vidas a esses heróis locais.
Não pode ser
ele, eu pensei. A não ser que fosse a imagem cuspida do pai, que aconteceu de
ser pai antes de morrer aos... (Eu olhei de relance novamente o obituário)
dezenove. O que não era impossível.
Com o meu
raciocínio em curto-circuito, avancei para a próxima página e examinei os Ss de
“Simon”. Lá estava ele: Thierry Simon. O cara musculoso que tinha escoltado
Geórgia e eu da luta no rio. Thierry tinha um volumoso Afro na foto, mas estava
com o mesmo sorriso confiante que tinha me dado no dia do café no terraço. Era
definitivamente o mesmo cara. Mas a mais de quarenta anos atrás.
Eu fechei meus
olhos sem acreditar, e então os abri novamente para ler o parágrafo abaixo da
foto de Thierry. Era o mesmo do de Jacques, exceto pela idade dada, vinte e
dois anos, e local de nascimento em Paris.
― Eu não entendo
―, sussurrei, quando eu, entorpecida, pressionei o botão da máquina para
imprimir ambas as páginas. Depois de retornar os carretéis de microfilmes na
mesa da frente, deixei a biblioteca espantada e hesitei antes de pisar na
escada rolante indo para o próximo andar. Eu poderia me sentar no museu até que
decidisse o que fazer depois.
Meus pensamentos
estavam começando a arrancar para dez direções diferentes quando passei pela
catraca, para dentro do teto alto da galeria com bancos posicionados no meio da
sala. Ao sentar, coloquei a cabeça entre as mãos enquanto tentava clarear minha
mente.
Finalmente olhei
para cima. Eu estava numa sala dedicada à arte de Fernand Leger, um dos meus
pintores favoritos do início do século vinte. Estudei as duas dimensões da
superfície cheia de cores primárias em tons claros e formas geométricas, e
senti uma sensação de normalidade retornar.
Olhei de relance
acima do canto onde a minha pintura favorita de Leger estava exposta: uma com
aparência robótica de soldados da Primeira Guerra Mundial, sentados ao redor de
uma mesa, fumando cigarros e jogando cartas.
Um homem jovem
ficou na frente dela, suas costas de frente para mim enquanto ele se inclinava
para perto, inspecionando alguma coisa na composição. Ele tinha uma estatura
mediana, cabelo castanho com um corte rente a cabeça e a roupa suja. Onde eu o
tinha visto antes? Pensei, me perguntando se ele era alguém da escola.
E então ele se
virou, e fiquei boquiaberta em
descrença. O homem parado do outro lado da galeria era Jules.
10
Meu corpo se
desligou da minha mente. Eu me levantei e andei em direção ao fantasma. Ou eu
estou tendo um colapso nervoso, que começou na biblioteca, pensei, ou o cara
parado na minha frente é um fantasma. Ambas as explicações pareceram mais
prováveis que a alternativa: de que Jules tinha realmente sobrevivido à colisão
com o metrô, não apenas em parte, mas aparentemente ileso.
Quando eu estava
a alguns metros de distância, ele me viu chegando, e por uma fração de
segundos, ele hesitou. Então se virou para mim com um olhar completamente em
branco no seu rosto.
― Jules! ― eu disse com urgência.
― Oi ―, ele disse calmamente. ― Eu te
conheço?
― Jules, sou eu a Kate. Eu visitei o seu
estúdio com Vincent, lembra? E
te vi na estação
de metrô no dia do... Acidente.
Sua expressão
mudou de neutra para divertida. ― Receio que você deva ter me confundido com
outra pessoa. Meu nome é Thomas, e eu não conheço ninguém chamado Vincent.
Thomas, nem a
pau, pensei, querendo sacudi-lo. ― Jules, eu sei que é você. Você sofreu aquele
acidente horrível quando... Apenas um mês atrás?
Ele balançou a
cabeça e deu de ombros. Como se isso dissesse, me desculpe.
― Jules, você tem que me dizer o que está
acontecendo.
― Escute, hum, Kate? Eu não tenho ideia
sobre o que você está falando, mas me deixe ajudá-la a ir até aquele banco.
Você deve estar muito nervosa. Ou muito exausta ―, ele me pegou pelo cotovelo e
começou a me direcionar de volta aos bancos.
Eu puxei meu
braço com tudo e fiquei o encarando com os punhos cerrados. ― Eu sei que é
você. Não sou louca. E não sei o que está acontecendo. Mas acusei Vincent de
ser insensível por fugir depois da sua morte. E agora vejo que você está vivo.
Eu me dei conta
que a minha voz tinha se elevado quando vi o guarda da segurança virar a cabeça
na nossa direção. Eu dei ao Jules um olhar enfurecido quando o homem de
uniforme andou até nós e perguntou: ―
Algum problema
aqui?
Jules calmamente
olhou o guarda nos olhos e disse ―, Nenhum problema, senhor. Ela parece ter me
confundido com outra pessoa.
― Eu não me enganei! ― sibilei sob minha
respiração, então me afastei, andando rapidamente em direção à saída. Virando
apenas para ver Jules e o guarda encarando na minha direção, sai do museu e
corri descendo as escadas rolantes.
Havia só um
lugar onde eu poderia ir.
O metrô me levou
de volta ao meu bairro parecendo uma eternidade, mas finalmente me vi subindo
os degraus da saída do metrô para a desvanecida luz do dia e indo em direção à
Rua Grenelle. Parando em frente ao muro cheio de grades, toquei a campainha.
Uma luz acendeu acima da minha cabeça, e olhei para uma câmera de segurança em
cima.
― Oui? ― uma voz
perguntou depois de uns segundos.
― É a Kate, sou... ― dei uma pausa,
momentaneamente perdendo a coragem. Mas me lembrando da crueldade das minhas
últimas palavras para Vincent, falei com renovada determinação. ― Eu sou uma
amiga do Vincent.
― Ele não está. ― A voz masculina quebrou
metalicamente pelo pequeno alto-falante do interfone.
― Preciso falar com ele. Não posso deixar
um bilhete?
― Você não tem o número do celular dele?
― Não.
― E você é uma amiga? ― a voz soou cética.
― Sim, quer dizer não. Mas eu preciso
falar com ele. Por favor.
Teve um momento
de silêncio e, então, ouvi o click que significava que o portão tinha sido
destrancado. Ele se mexeu lentamente para dentro. Do outro lado do pátio, um
homem estava na porta de entrada. Meu coração se partiu um centímetro quando vi
que não era Vincent.
Andei
rapidamente através dos paralelepípedos para encarar o homem, tentando elaborar
alguma coisa a dizer que não me fizesse soar como uma pessoa louca. Mas quando
eu o alcancei, todas as palavras me escaparam. Embora ele parecesse estar nos
seus sessenta, seus claros olhos verdes pareciam ter séculos de idade.
Seu cabelo
grisalho estava esticado para trás com gel e seu rosto era pontuado por um
longo e curvo nariz de aparência nobre. Eu imediatamente reconheci em seu rosto
e em suas roupas a marca da aristocracia francesa.
Se eu já não
tivesse reconhecido o seu tipo como os dos clientes de antiguidades do vovô, certamente
teria reconhecido suas feições em retratos da nobreza pendurados em cada
castelo francês e museu. Família antiga. Dinheiro antigo. Essa mansão tinha que
ser dele.
Sua voz me
cortou no meio do pensamento. ― Você está aqui para ver o Vincent?
― Sim... Quero
dizer, sim, monsieur.
Ele assentiu com
aprovação quando corrigi minhas maneiras ao beneficiar sua idade e posição. ―
Bem, eu sinto muito lhe informar que, como eu disse antes, ele não está aqui.
― Você sabe
quando ele estará de volta?
― Dentro de
poucos dias, presumo.
Eu não sabia o
que dizer. Ele se virou para ir embora e, me sentindo completamente estranha,
perguntei ―, Bem, eu poderia ao menos deixar um bilhete a ele?
― E o que seria essa mensagem? ― ele
perguntou secamente, ajustando o lenço de seda amarrado no pescoço da sua
impecável camisa
cottom.
― Eu poderia... Poderia escrevê-lo? ―
gaguejei, lutando contra a urgência de ir apenas embora. ― Me desculpe
importunar o seu tempo, senhor, mas você se importaria se eu mesma escrevesse a
ele o bilhete?
Ele ergueu suas
sobrancelhas e estudou o meu rosto por um momento. E então, abrindo a porta
para eu passar, ele disse ―, Muito bem.
Andei para
dentro do magnífico hall de entrada e esperei enquanto ele fechava a porta
atrás de nós. ― Me siga ―, ele disse, me guiando até a porta que dava para a
mesma sala onde Vincent tinha me levado chá. Ele gesticulou para uma mesa e uma
cadeira e disse ―, Você irá encontrar papel e caneta na gaveta.
― Tenho algumas comigo, obrigada. ― eu
disse, pegando a minha bolsa de livros.
― Deseja que eu mande um chá?
Acenei com a
cabeça, pensando que iria levar alguns minutos para pensar no que queria
escrever. ― Sim, obrigada.
― Então Jeanne
irá trazer o seu chá e lhe mostrar a saída. Você poderá entregar o bilhete ao
Vincent por ela. Au revoir, mademoiselle16. ― Ele me deu um curto aceno de
cabeça e então fechou a porta ao passar. Suspirei de alívio.
Tirando uma
caneta e um caderno de notas da minha bolsa, arranquei um pedaço de papel e
encarei por um minuto completo antes de começar a escrever. Vincent - eu
comecei.
Estou começando
a entender o que você quis dizer quando me disse que as coisas não eram como
pareciam ser. Descobri a sua foto e a do seu amigo nas páginas dos obituários
de 1968. E então, logo após isso, vi Jules. Vivo.
Eu não consigo
imaginar o que tudo isso quer dizer, mas quero me desculpar pelas coisas duras
que eu disse ―
16 Adeus,
senhorita.depois de você me tratar tão gentilmente. Eu disse a você que nunca
mais queria vê-lo novamente. Retiro isso. Pelo menos me ajude a entender o que
está acontecendo, então não irei acabar em um hospício em algum lugar por aí,
tagarelando sobre pessoas mortas pelo resto dos meus dias.
Sua decisão.
Kate.
Eu dobrei a
mensagem e esperei. Jeanne não veio. Eu observei os minutos tiquetaqueando
longe no relógio de pêndulo, aumentando mais o meu nervosismo com cada segundo
passado. Finalmente comecei a me preocupar que talvez devesse ir encontrar
Jeanne. Talvez ela estivesse esperando na cozinha com o meu chá. Andei para o
hall de entrada. A casa estava silenciosa.
Notei, no
entanto, que a porta do outro lado estava entreaberta. Andei lentamente até ela
e espiei dentro. ― Jeanne? ― chamei suavemente. Nenhuma resposta. Empurrei a
porta aberta e entrei em uma sala que era quase idêntica a que eu tinha vindo.
Tinha a mesma portinha no canto como aquela por onde o Vincent passou com o meu
chá. A entrada de empregados, eu pensei.
Eu a abri. Vi
uma passagem longa e escura. Com o coração na garganta, caminhei em direção a
uma porta com janelas no final, com luz iluminando seus painéis. Ela se abriu
em uma cozinha grande e cavernosa. Ninguém estava lá. Dei um suspiro de alívio,
e percebi que tinha medo de topar com o dono da casa mais uma vez.
Decidindo deixar
o bilhete na caixa de correspondência na saída, corri de volta para o espaço em
forma de túnel. Agora que aquela luz da cozinha estava nas minhas costas, vi
várias portas sendo iluminadas ao longo do corredor e notei que uma estava
levemente aberta. Uma luz cálida estava brilhando dentro. Talvez aquele fosse o
quarto da governanta. ― Jeanne? ― chamei em voz baixa. Não houve resposta.
Fiquei imóvel
por um instante antes de avançar com um impulso irresistível. O que estou
fazendo? Pensei quando pisei na entrada. Pesadas cortinas bloqueavam a luz de
fora como nos outros cômodos. A única iluminação vinha de pequenas lâmpadas
espalhadas ao redor de mesas baixas.
Entrei no quarto
e fechei a porta suavemente atrás de mim. Eu sabia que era insano. Mas a parte
racional do meu cérebro tinha perdido a batalha e eu estava agora em piloto-automático,
invadindo a casa de alguém a fim de satisfazer a minha curiosidade. Minha pele
parecia estar sendo picada por milhões de dardos de adrenalina quando comecei a
olhar ao redor.
À minha direita,
estantes de livros cercavam uma lareira de mármore cinza. Acima da cornija,
duas espadas penduradas cruzadas uma na outra. As outras paredes estavam
preenchidas com fotografias emolduradas, algumas em preto-e-branco e outras
coloridas. Todas eram retratos.
Parecia não
haver padrão para uma coleção. Algumas pessoas nelas eram velhas, outras novas.
Algumas fotos pareciam como se tivessem sido tiradas há cinquenta anos e outras
pareciam contemporâneas. A única coisa que as ligavam era que todas elas eram
desinteressadas: os indivíduos não sabiam que fotos suas estavam sendo tiradas.
Coleção estranha. Pensei, mudando meu olhar para o outro lado do quarto.
Em um canto
havia uma enorme cama dossel com tecidos brancos translúcidos pendurados. Andei
na sua direção para dar uma olhada. Através do tecido transparente dava para
ver a forma de um homem deitado na cama, meu coração congelou.
Sem ousar
respirar, puxei a cortina de lado.
Era Vincent. Ele
estava deitado sobre as cobertas, totalmente vestido, de costas, com os braços
em cada lado. E ele não parecia como se estivesse dormindo.
Parecia estar
morto.
Levantei uma mão
e toquei o seu braço. Estava tanto frio como duro, como um manequim de loja.
Recuando, choraminguei ―, Vincent? ― Ele não se moveu. ― Oh meu Deus ―,
murmurei horrorizada, e então meus olhos se fixaram na foto emoldurada sobre
criado-mudo ao lado da cama. Era uma foto minha.
Meu coração
parou no peito e, segurando minha mão na garganta, recuei até que meus ombros
bateram no mármore da chaminé e deixei sair um grito aterrorizado. Neste
momento a porta se abriu e a luz do quarto foi acesa.
Jules estava na
porta. ― Oi, Kate ―, ele disse sinistramente, e então, apagando a luz, acenou
com a cabeça e disse ―, Parece que o jogo acabou Vince.
11
Você terá que
vir comigo. ― Jules vestia uma expressão risonha. Quando ele percebeu que eu
era incapaz de me mover, ele pegou o meu braço e me guiou em direção à porta.
― Mas Jules ―, eu disse, meu choque se foi
o suficiente para me permitir falar ―, Vincent está morto!
Jules se virou e
me encarou. Devo ter parecido como uma vítima de trauma. Sei que soei como uma,
minha voz saindo de forma estremecida.
― Não, não está. Ele está bem. ― ele pegou
a minha mão e me puxou para o corredor. Eu puxei de volta.
― Me escute, Jules ―, eu disse, começando
a soar histérica. ― Eu toquei nele. Sua pele está fria e dura. Ele esta morto!
― Kate ―, ele disse parecendo quase
chateado ―, Não posso falar com você sobre isso agora. Mas você tem que vir
comigo. ― ele pegou meu pulso gentilmente e começou a me guiar pelo corredor.
― Para onde está me levando?
― Onde eu deveria levá-la? ― perguntou a
si mesmo. E não era um tom de reflexão, como as pessoas costumam usar quando se
perguntam uma questão que já tenham a resposta. Pareceu como se não soubesse e
esperava que alguém respondesse.
Meus olhos se
arregalaram. Jules estava louco. Talvez tivesse ficado com alguma sequela
mental depois do acidente do metrô, pensei. Talvez fosse um criminoso insano
que tinha assassinado Vincent e o deixado em sua própria cama, e agora estava
me levando a algum lugar para me matar também. Meus pensamentos estavam saindo
do controle: estava agora como num filme de terror. Aterrorizada, tentei puxar
minha mão da dele, mas seu aperto aumentou.
― Vou te levar para o quarto da Charlotte
―, disse, respondendo sua própria pergunta.
― Quem é Charlotte? ― perguntei, minha voz
alerta.
― Não estou tentando assustá-la! ― Jules
disse, vindo a parar. Ele se virou para mim, olhando exasperado. ― Escute,
Kate, sei que teve um choque lá, mas estar naquele quarto é completamente sua
culpa. Não minha. Agora vou te levar para algum lugar onde você possa se
acalmar, e não irei machucá-la.
― Posso apenas ir embora?
― Não.
Uma lágrima
rolou pela minha bochecha. Não podia evitar. Estava muito confusa e assustada
para ficar calma, e muito horrorizada por estar chorando para olhá-lo: parecer
fraca ou frágil era a última coisa que queria. Encarei o chão.
― E agora? ― ele disse, deixando cair a
minha mão. ― Kate? Kate? ― seu jeito áspero se suavizou. ― Kate.
Encontrei seus
olhos quando limpava minhas lágrimas com dedos trêmulos.
― Oh meu Deus, assustei você ―, disse,
dirigindo seu primeiro olhar bondoso para mim. Ele andou para trás. ― Fiz tudo
errado. Sou um idiota.
― Seja cuidadosa. Disse a mim mesma. Ele
pode estar apenas atuando. Mas certamente está fazendo um excelente trabalho
com o remorso.
― Tudo bem, me deixe explicar... ― hesitou
―, tanto quanto eu puder.
Não vou machucar
você. Juro, Kate. E prometo que Vincent ficará bem. Não é o que parece. Mas
preciso falar com os outros ― as outras pessoas que moram aqui ― antes que
possa te deixar ir embora.
Concordei com a
cabeça. Jules estava agindo de forma mais sã que alguns minutos atrás. E estava
me olhando tão sentido que quase (mas não completamente) tive pena dele. Mesmo
que eu quisesse correr, pensei, não conseguiria passar pela segurança do portão
lá de fora.
Ele esticou sua
mão para mim, dessa vez de uma maneira pacífica, como se quisesse colocá-la
confortavelmente no meu antebraço, mas recuei.
― Tudo bem, está tudo bem ―, ele suavizou,
erguendo as mãos no ar num gesto de rendição. ― Não irei tocar em você de novo.
Ele parecia
muito chateado agora. ― Eu sei ―, ele disse, falando para o ar. ― Sou um
completo débil mental ―, e começou a andar pelo corredor na direção da sala de
estar. ― Por favor, me siga, Kate. ― ele disse com uma voz desanimada.
Eu o segui. Que
outra escolha eu tinha?
Ele me levou
pela escadaria dupla até o segundo andar, saindo em um corredor. Abrindo uma
porta de um quarto escuro, ele ascendeu as luzes e ficou no corredor enquanto
eu entrava. ― Fique à vontade. Posso demorar um pouco. ― Ele disse, evitando
meus olhos. Ele fechou a porta atrás de mim. A fechadura clicou.
― Hey! ― gritei, agarrando a maçaneta e a
girando. Estava definitivamente trancada.
― Eu tive que trancar. Não podemos
simplesmente tê-la passeando ao redor da casa. ― Jules estava falando consigo
mesmo de novo, enquanto seus passos cresciam fracamente.
Não havia mais
nada que eu pudesse fazer, exceto saltar pela janela do segundo andar e escalar
a frente do portão. Isso apenas não vai acontecer.
Pensei, e me
resignei ao fato de que estava sem poderes para fazer qualquer coisa antes que
alguém destrancasse a porta.
Você poderia ter
recebido coisa pior para uma prisão, pensei, olhando ao redor. As paredes
estavam revestidas com seda estampada cor-de-rosa, e pesadas cortinas
verde-hortelã estavam atadas em cada lado da janela, que tinha os painéis
superiores em forma de corações. Delicadas mobílias pintadas estavam
organizadas nos cantos do quarto. Eu me sentei num divã estofado de seda.
Minha agitação
acalmou, depois de um tempo me estiquei e coloquei a cabeça numa almofada,
erguendo minhas pernas do chão. Fechei meus olhos só por um momento, e o efeito
do stress e medo tinham feito seus caminhos para o meu cérebro. Eu estava de
fora como a luz.
Deveria ter se
passado horas quando acordei. Eu podia ver o céu da noite se aproximando pela
janela, e por um delirante momento pensei que estava de volta ao meu quarto no
Brooklyn.
Então meus olhos
se ergueram para o grande candelabro com braços terminando em flores
incrivelmente delicadas. O teto foi pintado para parecer como um céu nublado,
com bebês anjos gordinhos carregando fitas e flores.
Por um segundo,
não soube onde eu estava. Então, lembrando, me sentei.
― Você está acordada ―, disse uma voz do
outro lado do quarto. Eu olhei para cima para descobrir a fonte. Era a garota
do café com o cabelo loiro curto, a que tinha me salvado de ser esmagada pela
pedra. O que ela está fazendo aqui? Pensei.
Ela estava sentada
e curvada numa poltrona perto de uma ornamentada lareira de pedra. Devagar e
hesitante, ela se levantou e andou cuidadosamente na minha direção.
A luz do
candelabro brilhou em seu cabelo, fazendo-o brilhar como bronze polido. Suas
bochechas e lábios eram da cor das rosas aveludadas do jardim da casa de campo
da vovó.
A garota estava
perto de mim agora e, de forma acanhada, esticou a mão para a minha. ― Kate ―,
ela disse numa voz tímida, balançando minha mão e a soltando. ― Sou Charlotte.
― Ela sentou-se na beirada do divã, me olhando com admiração.
― Você foi quem salvou a minha vida ―,
murmurei.
Rindo, ela pegou
uma cadeira para se sentar na minha frente. ― Aquilo não foi realmente eu. ―
Ela sorriu. ― Quero dizer, era eu, mas não sou a responsável por salvar a sua
vida. É um pouco complicado ―, ela disse, cruzando suas pernas sedutoramente.
Ao redor do seu pescoço pendia uma corda de couro com um pingente em forma de
gota.
Então essa é a
garota de quem Vincent era muito próximo. Pensei com desalento, meus olhos
viajando do colar de volta para o seu rosto elegante. Ela tinha em torno da
minha idade, mas um pouco mais nova. Vincent tinha dito que ela era apenas uma
amiga. Eu não podia parar de imaginar o quão próximo eles eram.
― Bem-vinda ao meu quarto ―, ela disse.
Meu coração parou. Ela mora na casa dele?
― É deslumbrante. ― Consegui colocar para
fora.
― Eu gosto de me cercar com beleza ―, ela
disse, me dando um sorriso tímido.
Seu corte de
cabelo de menino e a figura alta e esguia, vestida num jeans preto justo e
camisa desbotada, não podiam disfarçar a sua marcante beleza feminina. Embora
parecesse que ela estava tentando fazer justamente isso.
Ela nem sequer
tem que tentar, ela é de tirar o fôlego, pensei, mentalmente me rendendo
enquanto percebia que nunca seria capaz de competir com Charlotte.
12
Charlotte me
levou para baixo e, pela passagem de empregados, ao quarto do Vincent. Ela
bateu na porta e, não esperando por uma resposta, me
guiou diretamente até a cama
dele. Meus passos vacilaram quando eu o vi sentado,
apoiado nos travesseiros. Ele parecia muito fraco e tão pálido quanto o lençol.
Mas estava vivo. Meu coração saltou em meu peito ― tanto pela excitação de
vê-lo vivo como por medo.
Como era possível?
― Vincent? ― perguntei cautelosamente. ― É
você? ― o que pareceu um pouco estúpido. Parecia ser ele, mas talvez ele
tivesse sido possuído por...
Eu sei lá, algum
tipo de ser alienígena ou algo assim. Nesse ponto, as coisas estavam estranhas
o suficiente para eu acreditar em quase tudo.
Ele sorriu e eu
soube que era realmente ele.
― Você não está... Mas você estava morto!
― eu tive que forçar as palavras irracionais para fora da minha boca.
― E se eu te dissesse que sou apenas um
dorminhoco profundo? ― sua voz baixa veio, devagar e com grande esforço.
― Vincent, você estava morto. Eu vi você.
Eu toquei você. Eu sei... ― meus olhos se encheram de lágrimas quando tive um
flashback do necrotério do Brooklyn e os corpos dos meus pais deitados nas macas.
― Eu sei como um “morto” se parece.
― Venha aqui ―, ele disse. Eu avancei meu
caminho em direção a ele, não sabendo o que esperar. Ele esticou seu braço
vagarosamente e tocou a minha mão. Ele não estava frio como antes, mas não
parecia muito humano, também.
― Vê? ― ele disse, os cantos dos seus
lábios se curvando para cima. ―
Vivo.
Dei um passo
para trás, puxando minha mão da dele. ― Eu não entendo ―, eu disse, minha voz
desconfiada. ― O que há de errado com você?
Ele parecia
resignado. ― Sinto muito ter te metido nisso. Foi egoísmo. Mas não pensei que
acabaria desse jeito. Não pensei... Em tudo.
Obviamente.
Meu sentimento
de total alarme foi substituído por uma estranha sensação de medo do que
poderia vir a seguir. Eu não conseguia imaginar que tipo de revelação ele
estava prestes a por para fora. Mas uma pequena voz dentro de mim disse, Você
sabia. E percebi que já sabia.
Eu sabia que
havia alguma coisa diferente em relação a Vincent. Eu tinha sentido isso mesmo
antes de ver sua foto nos obituários. Tinha alguma coisa um pouco fora do
normal, mas muito obscura para eu colocar meu dedo nela. Então tinha a
ignorado. Mas agora iria descobri-la. Um calafrio de expectativa me causou um
tremor. Vincent me viu tremer e franziu a testa com pesar.
Nós fomos
interrompidos por uma batida na porta. Charlotte se levantou para abri-la e
ficou de lado, uma por uma, as pessoas entraram no quarto.
Jules andou
primeiro na minha direção e, gentilmente tocando meu ombro, perguntou ―, Você
está se sentindo melhor?
Eu assenti.
― Estou tão, tão arrependido por como
lidei com as coisas antes ―, ele disse com remorso. ― Foi uma reação
instintiva, tentando te levar pra longe
do Vince o mais
rápido possível. Fui grosseiro com você. Não estava pensando.
― Sério. Está tudo bem.
Uma figura
familiar chegou por trás dele e, de forma brincalhona, o empurrou para o lado.
O garoto musculoso do rio se virou para Jules e disse
―, Tentando
pegá-la para si mesmo? ― e então, curvando-se à minha altura, ele estendeu a
mão e disse ―, Kate, encantado em conhecê-la. Eu sou o Ambrose ―, ele disse, em uma
voz de barítono que era tão grossa quanto melaço. Então, mudando para um
perfeito sotaque inglês, ele disse ―, Ambrose Bates de Oxford, Mississipi. É
legal encontrar um compatriota nessa terra de loucas pessoas francesas!
Claramente
apreciando o fato de que tinha me surpreendido, Ambrose riu profundamente e me
deu uma palmada no braço antes de se sentar próximo a Jules no sofá, dando uma
piscadela amigável.
Um homem que eu
nunca tinha visto antes entrou e, parando na minha direção, me deu um pequeno
arquejo nervoso. ― Gaspard ―, ele se introduziu simplesmente. Ele era mais
velho que os outros, nos final de seus trinta ou início dos quarenta. Alto e
magro, de olhos profundos e um cabelo que parecia ter tomado um choque, era
preto, curto, mal cortado e espetado para todas as direções. Ele se virou e
andou na direção dos outros.
― Este é o meu irmão gêmeo, Charles ―,
disse Charlotte, que tinha ficado ao meu lado enquanto as apresentações eram
feitas. Ela puxou para frente uma cópia avermelhada de si mesma. Arqueando e me
dando na mão um beijo de gozação, ele disse sarcasticamente ―, Prazer em
conhecê-la de novo, agora que não está chovendo tijolo. ― Sorri
desconcertantemente para ele.
Eu não sei se
foi a minha imaginação, ou se todos realmente deram um passo para trás, mas de
repente pareceu como se as únicas pessoas no quarto fosse eu e o homem que
estava me encarando. Era o cavalheiro aristocrático de ontem ― o dono da casa.
Apesar de todos os outros terem me cumprimentando de forma amigável, o meu
anfitrião não estava sorrindo. Diante de mim, ele se curvou rigidamente a partir
da cintura. ― Jean-
Baptiste Grimod
de La Reyniere
―, ele disse, olhando friamente dentro dos meus olhos. ― Embora o resto da
minha tribo possa residir aqui, essa é a minha casa, e eu, por só, acho a sua
presença aqui muito imprudente.
― Jean-Baptiste ―, veio a voz de Vincent
atrás de mim. ― Nada disso foi intencional. ― Ele se deitou no travesseiro e
fechou os olhos, parecendo ter usado toda a sua energia com essas seis
palavras.
― Você, meu jovem... Você foi quem quebrou
as regras a trazendo para dentro da nossa casa, em primeiro lugar. Eu nunca
tinha permitido a qualquer um de vocês trazerem seus amantes humanos aqui, e
você desrespeitou a minha regra mais notória.
Senti minhas
bochechas queimarem com suas palavras, mas não tinha certeza a que eu estava
respondendo: a parte “humanos” ou a parte “amantes”. Nada mais fazia sentido.
― O que eu deveria ter feito? ― Vincent
argumentou ―, Ela apenas tinha visto Jules morrer! Estava em choque.
― Aquilo era seu próprio problema para
resolver. Você não deveria ter se envolvido com ela em primeiro lugar. E agora
você terá que limpar a sua própria bagunça.
― Ah, alivia essa, JB ―, disse Ambrose, se
inclinando para trás e casualmente esticando seus braços por todo o comprimento
do sofá. ― Não é o fim do mundo.
Nós a verificamos e ela, definitivamente, não é uma espiã. Além do mais, ela
não é a primeira humana a saber o que nós somos.
O homem mais
velho lhe lançou um olhar fulminante.
O que tinha se
apresentado como Gaspard falou em uma tímida voz. ― Se me permite esclarecer...
A diferença aqui é que todo outro humano que interagiu conosco era... Ah... Era
individualmente escolhido de famílias que tem servido Jean-Baptiste por
gerações.
Gerações? Pensei
com espanto. Um dedo gélido roçou ao longo da minha espinha.
― Ao contrário de você ―, Jean-Baptiste
continuou com uma indisfarçável aversão ―, que a conheço a menos de um dia, e
você já está se intrometendo na privacidade da minha família. Você é mais do
que indesejada.
― Xiii!
― exclamou Jules.
― Não esconda
seus verdadeiros sentimentos,
Grimod. Vocês dos velhos tempos realmente precisam aprender a se abrir e se
expressar. ― Jean-Baptiste agiu como se não tivesse escutado.
― Bem, o que devemos fazer então? ―
Charlotte disse, se dirigindo ao nosso anfitrião.
― Ok, pare. Todos. ― Vincent disse com a
respiração fraca. ― Vocês são a minha família. Quem vota que contemos a Kate?
Ambrose,
Charlotte, Charles e Jules levantaram as mãos.
― E o que vocês querem que façamos? ―
Vincent direcionou sua pergunta para Jean-Baptiste e Gaspard.
― Isso é problema seu ―, Jean-Baptiste
disse. Ele me encarou de cima a baixo por mais alguns segundos e, então, se
virando em seu calcanhar, rumou rapidamente para fora do quarto, batendo a
porta atrás de si.
13
Então ―, Ambrose
disse com uma risadinha, esfregando as mãos. ― Regras majoritárias. Vamos
começar a festa.
― Aqui ―, disse
Charlotte, colocando duas das grandes almofadas do sofá no chão. Sentando em
uma dela em estilo indiano, ela sorriu para mim e bateu na outra
convidativamente.
― Está tudo bem ―, Vincent me assegurou
quando hesitei e soltou a minha mão.
― Kate ―, Jules disse ―, você compreende
que o que falamos aqui não vai para fora dessas paredes.
As palavras do
Vincent foram baixas e precisas. ― Jules está certo. Nossas vidas estão em suas
mãos uma vez que você saiba Kate. Odeio forçar esse tipo de responsabilidade
para qualquer pessoa, mas a situação foi longe demais. Você promete guardar
nosso segredo? Mesmo se você... ― soou como se ele estivesse ficando sem fôlego
―, Mesmo se você for embora hoje e decidir nunca mais voltar?
Eu assenti com a
cabeça. Todos esperaram. ― Prometo ―, sussurrei, o que foi o melhor que pude
fazer com um caroço na minha garganta do tamanho de uma uva. Alguma coisa
extremamente bizarra estava acontecendo, e eu tinha poucas pistas para
adivinhar o que era. Mas com o uso superficial de Jean-Baptiste da palavra
“humano” e Vincent e Jules, ambos aparentemente terem sido ressuscitados, eu
sabia que estava metida em algo profundo. E não saber o que esse profundo
significava ― me assustava ao ponto de quase fazer xixi nas calças
― Jules... Você
começa ―, Vincent disse, fechando seus olhos e parecendo mais morto que vivo.
Jules mediu a
situação e decidiu ter piedade. ― Talvez seja mais fácil se deixarmos a Kate
nos perguntar o que ela quer.
Por onde começar
mesmo? Pensei, e então lembrai o que tinha colocado tudo dentro de um espiral
em primeiro lugar. ― Eu vi uma foto sua e do Vincent num jornal de 1968 que
dizia que vocês morreram em um incêndio. ― eu disse, me virando para Ambrose.
Ele assentiu
para mim com um pequeno sorriso, me incitando.
― Então como vocês podem estar aqui agora?
― Bem, estou agradecido que estejamos
começando com as perguntas fáceis ―, ele disse, esticando seus poderosos braços
e então se inclinando na minha direção. ― A resposta seria... Porque nós somos
zumbis! ― e ele soltou um horrível rugido, escancarando bem a boca e
arreganhando seus dentes enquanto curvava as mãos em garras.
Vendo minha
expressão aterrorizada, Ambrose começou a se rachar de rir e deu um tapa no seu
joelho. ― É zoeira ―, ele riu, e então se recompondo, me olhou serenamente. ―
Mas não, sério. Nós somos zumbis.
― Nós não somos zumbis ―, disse Charlotte,
sua voz aumentando com aborrecimento.
― O termo correto, acredito, seria, ah,
morto-vivo ―, disse Gaspard numa voz vacilante.
― Fantasmas ―, disse Charles, sorrindo
maliciosamente.
― Parem de assustá-la, vocês rapazes ―,
disse Vincent ―, Jules?
― Kate, é muito mais complicado que isso.
Nós nos chamamos de revenants.
Eu olhei em
torno deles, um por um.
― Ruh-vuh-nahnt ―, Jules pronunciou,
devagar, claramente pensando que eu não tinha entendido.
― Eu conheço a palavra. Significa
“fantasma” em francês. ― Minha voz vibrou. Estou sentada num quarto com um
bando de monstros. Pensei.
Indefesa. Mas
não podia me dar ao luxo de enlouquecer agora. O que eles poderiam fazer comigo
se eu surtasse? O que podiam fazer comigo mesmo se eu não surtasse? A menos que
eles fossem o tipo de monstro que podia apagar a memória das pessoas, eu estava
no segredo deles agora.
― Se você voltar à origem da palavra, na
verdade significa “aquele que retorna” ou “aquele vem de volta”. ― ofereceu
Gaspard presunçosamente.
Embora o quarto
estivesse quente, me encontrei tremendo. Todos eles me encaravam cheios de
expectativas, como se eu fosse o projeto de ciência do grupo deles: será que eu
explodo ou apenas borbulho? Charles sibilou ―,
Ela irá pirar e
fugir, como eu disse.
― Ela não irá pirar e nem fugir ―,
argumentou Charlotte.
― Ok, todos fora ―, veio a voz de Vincent,
mais poderosa do que tinha estado até agora. ― Sem ofensas, mas prefiro falar
com a Kate eu mesmo.
Vocês estão
fazendo uma confusão da coisa toda. Obrigado pelos seus votos de confiança,
mas, por favor... Vão.
― Impossível. ― O quarto ficou em silêncio
enquanto todos encaravam Gaspard. Sua voz perdeu a autoridade e ele começou a
cutucar a unha. ― Quero dizer, se me permite ―, ele gaguejou conscientemente ―,
Vincent, você não pode assumir a tarefa de informar a humana, quero dizer,
Kate, você mesmo. Nós fomos todos afetados por essa violação. Todos nós
precisamos ser alertados sobre quais informações ela tem... e não tem. E eu
irei dar um completo relatório ao Jean-Baptiste mais tarde. Antes que ela tenha
permissão para sair.
Minha tensão
relaxou apenas um instante. Eles vão me deixar ir embora.
Aquele
conhecimento se tornou minha luz no fim de um aterrorizador tunel escuro.
― Posso, ah, também ressaltar que você
está muito fraco até mesmo para se sentar ―, Garpard continuou. ― Na sua
condição, como você está pretendendo lidar com a explicação de algo tão
importante para todos nós?
O silêncio durou
um momento enquanto todos olhavam Vincent. Finalmente ele suspirou. ― Tudo bem.
Eu entendo. Mas pelo amor de Deus, tentem se comportar. ― Ele olhou para mim e
disse ―, Kate, por favor, venha sentar aqui comigo. Pelo menos isso me dará a
ilusão de ter algum controle sobre a situação.
Levantando,
andei até cama e olhei quando Vincent, com esforço, esticou seu braço e
envolveu minha mão com a sua. No instante em que nossas peles se tocaram, senti
a mesma paz que tive quando Charlotte me tocou em seu quarto. Eu estava nadando
em uma maré de calma e segurança, como se nada de ruim pudesse acontecer desde
que Vincent segurasse a minha mão. Dessa vez eu soube que tinha que ser algum
tipo de truque sobrenatural.
Sentei
cuidadosamente na lateral da cama, observando o rosto do Vincent enquanto eu me
sentava. ― Não estou com dor ―, ele me tranquilizou, segurando a minha mão
enquanto eu me ajeitava mais próxima a ele.
― Tudo bem, Kate, primeiro de tudo, você
está me tocando ―, Vincent disse para o quarto escutar. ― Então não sou um
fantasma.
― E não somos zumbis de verdade ―, Charles
disse com um sorriso ―,
Ou ele poderia
já ter comido a sua cara.
Vincent o
ignorou. ― Não somos vampiros, lobisomens ou qualquer outra coisa que te
assuste. Nós somos revenants. Não somos humanos ―, ele fez uma pausa, reunindo
suas forças ―, mas não vamos machucar você.
Tentei me
recompor antes de dizer para o quarto com a voz mais firme que pude reunir ―
Então vocês estão todos... Mortos. Mas vocês parecem vivos. Exceto você ―, eu
disse, hesitando, quando olhei de relance para Vincent. ― Embora pareça melhor
do que ontem à noite. ― reconheci.
Vincent estava
sério. ― Jules, você poderia contar a Kate sua história? É provavelmente a
melhor maneira de explicar. Gaspard tem razão: não posso lidar com isso sozinho.
Jules prendeu o
meu olhar e não o deixou. ― Beleza, Kate. Eu sei que isso irá soar
inacreditável, mas eu nasci em 1897. Em uma pequena vila não muito longe de
Paris. Meu pai era médico e minha mãe uma parteira. Mostrei talento artístico,
então aos dezesseis anos eles me mandaram para estudar pintura em Paris. Meus estudos
foram interrompidos quando fui recrutado para a guerra, em 1914. Lutei contra
os alemães por dois anos, até que, em setembro de 1916, fui morto em ação. Batalha de
Verdun.
― E esse seria o fim da minha história...
se eu não tivesse acordado três dias depois.
O quarto ficou
em silêncio enquanto eu tentava embrulhar minha mente em volta do que ele tinha
dito. ― Você acordou? ― finalmente falei. O rapaz que eu encarava não parecia
nem ser mais velho que vinte, mas estava afirmando ter mais de cem anos de
idade.
― Tecnicamente, ele “animou” ―, ofereceu
Gaspard, segurando para cima um dedo para fazer seu ponto. ― não “acordou”.
― Eu voltei à vida ―, Jules clareou.
― Mas como? ― perguntei em descrença. O aperto
do Vincent na minha mão sustentou minha coragem. ― Como você poderia
simplesmente voltar à vida? A não ser que não estivesse realmente morto em
primeiro lugar.
― Oh, eu estava morto. Sem dúvidas quanto
a isso. Você não pode ficar em tantos pedaços e viver depois disso. ― O sorriso
de Jules tornou-se um olhar de arrependimento quando me viu pálida.
― Dê um tempo à dama ―, disse Ambrose. ―
Nós estamos despejamos tudo isso sobre ela de uma só vez. ― ele olhou para mim.
―
Tem esse
especial... Como eu deveria chamar? Que não soe muito Twilight Zone, mas “lei
do universo”, certo? Ela diz que se, sob algumas circunstâncias, você morre no
lugar de outra pessoa, subsequentemente irá voltar à vida. Você fica morto por
três dias. E então acorda.
― Anima ―, corrigiu Gaspard.
― Você acorda ―, insistiu Ambrose ―, e,
exceto por estar tão faminto como o inferno, você é exatamente como era antes.
― Exceto que depois disso você não dorme
―, acrescentou Charles.
― Você já ouviu falar alguma vez de TMI,
Chucky? ― Ambrose perguntou, apertando as mãos em exasperação.
― Kate ―, Charlotte disse suavemente ―,
morrer e animar são realmente difíceis no corpo humano. É um tipo de nos dar um
pontapé dentro do nosso ciclo de vida. “Animado” é uma boa maneira de colocar,
na verdade. Nós somos tão animados quando acordamos que ficamos assim por três
semanas sem parar. Então nosso corpo se desliga e nós “dormimos como os mortos”
por três dias. Como Vincent há pouco fez.
― Você quer dizer, estamos mortos por
três... ― Charles começou, corrigindo-a.
Charlotte o
interrompeu. ― Nós não estamos mortos. Nós chamamos de “estar dormente”. Nossos
corpos apenas estão num tipo de hibernação, mas nossas mentes ainda estão
ativas. E uma vez que nossos corpos despertam, nós voltamos por mais algumas
semanas de absoluta, mas sem dormir, normalidade.
Charles murmurou
―, Sim, certo.
― Bem, pode se dizer que isso lhe dá o
básico da história ―, Gaspard disse prestativamente.
― Você estava... Dormente ontem? ―
perguntei a Vincent.
Ele acenou com a
cabeça. ― O fim dos três dias ―, ele disse ―, Agora eu ficarei bem por quase um
mês.
― Você não parece muito bem para mim ―,
respondi, encarando a palidez de cera da sua pele.
― Leva várias horas para se recuperar da
dormência ―, Vincent disse com um fraco sorriso. ― Para um humano seria o
equivalente a uma cirurgia cardiovascular. Você não pode simplesmente sair da
cama de hospital assim que a anestesia passa.
Aquilo fazia
sentido. Se ele continuasse com a analogia humana, eu poderia ser capaz de
digerir todo esse cenário bizarro um pouco melhor. Da maneira que eles estavam
discutindo, claramente eles não estavam acostumados a ter que explicar a
situação deles. Cabia a mim, dar conta das coisas.
Eu me virei para
Jules. ― Você tem mais de cem anos de idade.
― Tenho dezenove ―, ele disse.
― Então você nunca envelhece? ― perguntei.
― Oh sim, nós envelhecemos tudo certinho.
Olhe para Jean-Baptiste ― ele morreu aos trinta e seis, mas está nos seus
sessenta! ― disse Charles.
― E quantos anos ele teria se não
tivesse... Você sabe? ― me atrapalhei com as palavras.
― Duzentos e trinta e cinco ―, respondeu
Gaspard sem hesitação e, olhando para os outros, continuou ―, Eu posso?
Charles assentiu
e os outros permaneceram quietos.
― Depois que animamos, nós envelhecemos no
mesmo ritmo de qualquer outra pessoa. Contudo, cada vez que nós morremos,
subsequentemente reanimamos com a mesma idade em que morremos da primeira vez.
Jules morreu quando ele tinha dezenove, portanto, cada vez que morre, começa
novamente aos dezenove. Vincent tinha dezenove quando morreu, mas não ter
morrido por, quanto tempo agora? Pouco mais de um ano? ― ele direcionou sua
pergunta a Vincent, mas eu o interrompi.
― O que você quer dizer com “cada vez que
nós morremos”? ― perguntei. O arrepiante dedo gelado estava fazendo outra
aparição. Vincent segurou firme minha mão. ― Vamos
apenas dizer que existe um grande número de pessoas que precisam ser salvas ―,
disse Jules, piscando.
Eu o encarei,
lutando para entender o que ele estava sugerindo. Então meus olhos se
arregalaram. ― O homem do metrô! ― ofeguei. ― Você salvou a vida dele!
Ele confirmou
com a cabeça.
― Mas como ― quero dizer, não... ― explodi
para fora, incapaz de formular um único pensamento ao mesmo tempo em que dúzias
enchiam a minha cabeça simultaneamente. Eu me lembrei de Vincent se jogando
depois da garota, e Charlotte me salvando da morte-por-esmagamento.
― Você morreu salvando alguém e continua
fazendo isso após a morte ―, eu disse finalmente. Talvez eu estivesse
declarando o óbvio, mas a lâmpada tinha finalmente sido acesa acima da minha
cabeça.
― Essa é toda a razão do que somos ―,
Vincent disse. ― Nós estamos ligados a essa missão pelo resto da nossa
existência.
Eu o encarei,
não sabia nem ao menos como reagir. Minha mente estava em branco.
― Eu acho que está na hora de encerrar
essa sessão de perguntas e respostas ―, Vincent disse aos outros. ― Kate já
está ficando no limite de sobrecarga de informações. E eu estou muito cansado
para continuar.
― Você não pode dizer a ela... ― começou
Gaspard.
― Gaspard! ― Vincent gritou, e então
fechou seus olhos pelo esforço.
― Eu... Juro que eu não irei contar a Kate
qualquer coisa... Importante... sem consultar você primeiro. Prometo de coração.
― Vincent desenhou um X no peito e olhou para o homem.
― Bem, então ―, Ambrose disse, se
levantando. ― Agora que nós acabamos de assustar a humana ― quero dizer,
Kate-Lou aqui ―, ele se levantou e me deu um tapinha no ombro carinhosamente ―,
É hora de algum desbravamento ―, e saiu pela porta.
Charlotte tocou
o meu braço delicadamente enquanto os outros saiam.
― Venha tomar café-da-manhã conosco. Você
provavelmente não será permitida a ― ela olhou de relance para Vincent ―, ir
embora logo, de qualquer forma.
― Que horas são? ― perguntei me dando conta que eu não tinha
nenhuma noção de quanto tempo dormi.
Charlotte olhou
para o seu relógio. ― Quase sete.
― Sete da manhã? ― perguntei atônita por
ter caído no sono na casa de um estranho sob tais circunstâncias perturbadoras.
― Obrigada, mas eu acho que irei ficar e falar com o Vincent.
― Você deveria comer ―, disse Vincent
suavemente. ― Jean-Baptiste virá atacado pela porta em alguns minutos, de
qualquer maneira, depois de
Gaspard dar a
ele suas atualizações.
― Me deixe ficar com você até lá ―, pedi.
― Irei me encontrar com você quando Jean-Baptiste me chutar daqui ―, eu disse a
Charlotte.
― Certo! ― ela disse com um sorriso
encorajador e fechou a porta atrás de si.
Eu me virei para
Vincent. Mas antes que eu pudesse abrir a boca para falar, ele roubou minhas
palavras. ― Eu sei ―, ele disse. ― Nós precisamos conversar.
14
Estávamos
sozinhos. Finalmente. E o que poderia ter sido uma situação aterrorizante ―
eu... Sozinha... Em um castelo antigo...
Sentada perto de
alguém que eu tinha apenas descoberto que era um monstro ― bem, isso não era
nem um pouco aterrorizante.
Inacreditavelmente,
isso parecia mais esquisito que qualquer outra coisa.
Eu me sentei de
frente para ele em sua cama, desse rapaz que parecia estar à beira da morte.
Até mesmo em seu estado enfermo ele era bonito. Eu tinha todas as razões para
ficar com medo, mas ao invés disso, estava tomada por uma entranha emoção.
Sentia como se estivesse protegendo-o.
― Então... ― Vincent disse.
― Então... Você é imortal?
― Temo que sim.
Ele parecia
cansado, preocupado e, pela primeira vez, muito vulnerável. De repente senti
como se eu tivesse segurando todo o poder em minhas mãos. O que, no quesito
nós, eu supostamente tinha.
― Como isso a faz se sentir? ― ele
perguntou.
― Hum. É muita coisa para absorver de uma
vez. Mas isso definitivamente explica as coisas. ― Senti seus dedos apertarem
os meus. ―
O motivo pelo
qual não estou com medo agora é porque você está segurando a minha mão?
― O que você quer dizer? ― ele disse com
um sorriso torto.
― Isso é um dos seus superpoderes, não é?
O que é? O toque tranquilizante ou algo assim?
― Superpoderes! ― ele riu. ― Um. Sim,
senhorita perceptiva. Como você descobriu isso?
― Charlotte usou isso em mim mais cedo. E
duvido que eu teria conseguido passar por essa reunião informativa sem alguma
das sensações que você me deu.
Os cantos da sua
boca levantaram levemente. Seus dedos afrouxaram e se curvaram de volta em
torno da minha mão. ― Entendi. E não, apesar de estar tocando você, eu não
estou fazendo o “toque tranquilizante” como você chamou. Não acontece toda vez
que te toco. Tenho que direcionar. Mas no momento, você parece estar lidando
bem por conta própria.
Eu olhei de
relance para o criado-mudo ao lado da cama e vi que minha foto tinha sido
colocada para baixo. Descansando em cima do que era a carta que eu tinha
escrito a ele no dia anterior. Isso já parecia como anos atrás.
― Você recebeu meu bilhete ―, eu disse.
― Sim. E isso ajudou a explicar porque
você veio toda a me perseguir.
― Ele riu. ― Eu ainda não consigo
acreditar que Jean-Baptiste deixou você entrar. É tanto culpa dele por você ter
me encontrado quanto minha por te
trazer aqui da
primeira vez. Eu definitivamente não vou deixar que ele jogue tudo isso em cima
de mim. Como você o contornou para convencê-lo a te deixar passar pela porta da
frente, nunca irei entender.
A risada do
Vincent estava afiada com alguma coisa que soou como vitória. ― Você é maravilhosa
―, ele disse seus olhos radiando calor. Fiquei
lá,
deleitando-os, até que ele os fechou e deitou sua cabeça de volta no
travesseiro.
― Você está bem? ― perguntei, preocupada.
― Sim, estou bem. Só estou me sentindo
realmente fraco. Você se importaria em me trazer alguma coisa daquela mesa? ―
ele acenou com a cabeça em direção a uma bandeja dobrável arrumada próxima a
cabeceira da cama dele, contendo uma variedade de frutas e nozes.
Peguei um prato
de tâmaras e então me sentei de volta próxima a ele com o prato.
― Obrigado ―, ele disse, tocando minha mão
de novo antes de pegar uma fruta e jogá-la dentro da boca.
― Então o colar era para a Charlotte ―, eu
disse, observando a sua face cuidadosamente.
Ele sorriu. ―
Viu? Amiga. Não namorada. Apenas alguém que eu conheço por o que... A última
metade do século?
― Não que isso importasse ―, eu disse
rapidamente, embaraçada.
― Claro que não ―, Vincent disse, fingindo
estar sério e concordando
com a cabeça
solenemente.
Eu olhei para
baixo, para as minhas mãos. ― Você disse que leva um tempo para se recuperar
do... O que quer que seja. Quando você vai estar se sentindo bem?
― Isso depende da condição em que se está
quando se torna dormente. Eu não estava lesionado ou qualquer outra coisa,
então hoje à noite eu estarei tão bom quanto novo. Melhor, na verdade.
Eu poderia dizer
que ele estava tentando suavizar o clima, mas ele parecia tão exausto que eu
não podia deixar de sentir muito por ele. ― Oh,
Vincent.
― Não é ruim, sério, Kate. Na verdade, é
bom ter um tempo de inatividade... Para recarregar um pouco, desde que depois
eu não irei dormir de novo por semanas.
Minha carranca o
fez parar. ― Nós não precisamos falar sobre isso agora. Não se preocupe comigo,
apesar de tudo. Sou eu quem está preocupado com você. Como ― como você está?
Eu rolei meus
olhos e sorri. ― Bem, se você não está fazendo a coisa calmante e eu não pirei,
nem sai correndo da sua casa gritando, acho que estou me saindo muito bem.
― Maravilhosa ―, ele disse de novo.
― Está bem. Pare com a bajulação ―,
brinquei. ― Guarde isso para a próxima vítima que você arrastar, sem ajuda, ao
seu leito.
A risada do
Vincent foi cortada pelo curto som da porta se abrindo. Virei para ver
Jean-Baptiste caminhando a passos largos para dentro do quarto, com Gaspard se
arrastando ao longo do seu rastro.
― Kate, vá
encontrar Charlotte e os outros―, Vincent disse suavemente ―, mas, uma vez que
for dito que você pode ir, não vá embora sem voltar para me ver. Por favor.
Gaspard me
acompanhou até a porta aberta. ― Eles estão na cozinha ―, disse ele, indicando
o final do corredor. Então, deixando-me lá fora, fechou a porta atrás de si.
Eu segui o
cheiro delicioso de pão fresco até a cozinha, mas hesitei na frente da porta.
Dando uma respirada nervosa, empurrei a porta para abri-la e entrei. O grupo
todo estava sentado em torno de uma enorme mesa de carvalho. Ao mesmo tempo,
eles olharam para cima e esperaram que eu fizesse alguma coisa.
Ambrose quebrou
o gelo. ― Entre, humana! ― disse em uma voz Star Trek, abafada ligeiramente por
causa da boca cheia.
Charlotte e
Charles riram, e Jules acenou para mim uma cadeira vazia próxima a ele. ― Então
você sobreviveu à ira de Jean-Baptiste ―, ele disse.
― Muito bravo.
― Muito estúpido de vir aqui ―, Charles
adicionou, sem desviar o olhar do seu prato.
― Charles! ― Charlotte repreendeu.
― Bem, foi! ― Charles disse
defensivamente.
― O que você gostaria, querida? ―
interrompeu uma voz materna de cima do meu ombro.
Eu me virei para
ver uma mulher gordinha de meia idade vestindo um avental. Ela tinha bochechas
suavemente rosadas e seu cabelo loiro-grisalho estava amarrado em um coque.
― Jeanne? ― perguntei.
― Sim, querida Kate ―, ela respondeu. ―
Sou eu. Tenho escutado tudo sobre a sua eventual noite através dos outros.
Sinto muito não conseguir conhecê-la antes, mas diferente dos outros aqui, eu
preciso de uma boa noite de sono.
― Então você não é... ― hesitei.
― Não, ela não é uma de nós ―, Jules
respondeu. ― Porém a família da Jeanne tem estado a serviço de Jean-Baptiste
há...
― Mais de duzentos anos ―, Jeanne disse,
terminando a sentença dele enquanto escorregava uma montanha de ovos fritos no
prato de Ambrose. Ele deu a ela um radiante sorriso e disse ―, Case-se comigo,
Jeanne ―, se inclinando para cima e beijando a mão que segurava a espátula.
― Em seus sonhos ―, ela sorriu, e lhe
bateu de brincadeira na mão com a colher.
Colocando a mão
em seus quadris, ela olhou para o teto como se estivesse tentando lembrar um
poema que tinha memorizado. ― Meu tata- tata-tata-tataravô (mais alguns) era o
criado particular do Monsieur Grimod de La Reyniere , e foi para a guerra com ele quando
lutou por Napoleão. Foi aquele ancestral, com apenas quinze anos na época, quem
o Senhor Grimod salvou, o empurrando do trajeto de uma bala de canhão que tirou
sua própria vida. É uma boa coisa que o garoto estava determinado a trazer o
corpo do Monsieur de volta da Rússia para o enterro, porque ele estava lá três
dias depois quando o Monsieur acordou e assim foi capaz de cuidar dele. E minha
família está com o Monsieur desde então.
Ela contou essa
incrível história como se estivesse descrevendo seu passeio ao mercado aquela
manhã. Deveria parecer natural para ela, ter sido criada por uma mãe e avó que
lhe contaram a mesma história. Mas me senti sobrecarregada, como se minha mente
tentasse de algum jeito dar a volta por essas repercussões.
― Obrigado, Jeanne. Kate parecia quase
normal de novo até que você começou a falar. ― Jules disse.
― Estou bem ―, respondi, sorrindo para
ela. ― Vou só ficar um pão e café, obrigada.
Jeanne tirou uma
jarra de café de uma cafeteira de alta tecnologia e a virou antes de voltar
para o forno e pegar uma bandeja de croissants.
― Vou sair ―, Charles disse, empurrando
sua cadeira para debaixo da mesa e, friamente, depois de bater punhos com Jules
e Ambrose, marchou
para fora da
cozinha sem um segundo olhar de relance para mim. Olhei para os outros. ― Foi
algo que eu disse?
― Kate ―, Ambrose disse, encolhendo os
ombros ―, Você tem que se lembrar de que embora o corpo do Charles deva ser de
dezoito anos, o seu nível de maturidade está preso aos quinze.
― Irei com ele ―, Charlotte gorjeou,
parecendo embaraçada pela rudeza de seu irmão gêmeo. ― Tchau, Kate. ― se
inclinou para me beijar nas duas bochechas. ― Tenho certeza que nos veremos em
breve.
― Então, o que acontece agora? ― perguntei
quando a porta se fechou atrás dela. Senti-me estranhamente dividida entre a
urgência de voltar para a casa dos meus avós e ver a minha real, viva e
respirante família, e o desejo de ficar aqui, em torno dessas pessoas que,
apenas algumas horas após terem me conhecido, já pareciam me aceitar. Ou pelo
menos a maioria delas parecia. Não importa que não fossem humanos.
Antes que alguém
pudesse responder, Gaspard pendeu seu cabelo porco-espinho na porta. ― Você já
pode ir, Kate. Mas Vincent pediu para te ver antes de sair. ― Então desapareceu
novamente dentro do corredor.
Quando girei e
fiquei em pé, Jules parou e disse ―, Quer que eu te acompanhe até em casa?
Ambrose acenou
com a cabeça e com a boca cheia disse ―, Ande com ela até em casa.
― Não, está tudo bem, posso chegar em casa
sozinha.
― Te acompanharei até a porta então ―,
Jules disse, empurrando sua cadeira para debaixo da mesa.
― Tchau, Jeanne. Obrigada pelo café da
manhã. Tchau, Ambrose ―, falei, enquanto Jules educadamente abria a porta para
eu passar primeiro, andou comigo ao longo de todo o corredor até a porta de
Vincent. Entrei e ele fechou a porta atrás de mim, esperando do lado de fora.
― Então, o que eles disseram? ― perguntei,
me aproximando da cama. Vincent estava com a mesma aparência pálida e fraca de
antes, mas sorrindo levemente.
― Está tudo bem. Tive que prometer tomar
total responsabilidade sobre você.
Embora não soubesse
o que isso significasse, me senti arrasada pensando que não precisava de uma
babá em uma mão, e muito menos da ideia de ser a custódia de Vincent na outra.
― Você pode ir para casa agora ―,
continuou ―, Mas como Jean-Baptiste disse antes, não pode falar sobre nós para
ninguém. Não que fossem acreditar em você de qualquer maneira, mas tentamos
ficar tão debaixo do radar quanto possível.
Olhei para ele
zombeteiramente.
― Já ouviu falar de vampiros? ― perguntou,
sorrindo misteriosamente. Confirmei balançando a cabeça.
― Já ouviu falar de lobisomens?
― Claro.
― Alguma vez já ouviu falar de nós?
Balancei a
cabeça.
― Isso se chama “ficar debaixo do radar”,
querida Kate. É que somos bons nisso.
― Entendi. ― Peguei sua mão estendida.
― Posso te ver em uns dois dias? ― ele
perguntou.
Confirmei com a
cabeça, repentinamente incerta quando pensei no que o futuro podia reservar.
Parando na porta, falei ―, Cuide-se ―, e então me senti imediatamente estúpida.
Ele era imortal. Não tinha que se cuidar. ― Quero dizer... Descanse. ― corrigi.
Ele sorriu
divertido com a minha confusão, e me saudou.
― Minha senhora.
― Jules se postou na minha frente, como um porteiro de um filme de
Merchant-Ivory e colocou minha mão em seu braço. ― Podemos? ― não pude deixar
de rir. Ele estava se fazendo todo para recompensar por me ter perturbado.
De volta ao hall
de entrada, peguei minha bolsa de livros. Quando sai ao pátio, ele tocou o meu
braço e disse ―, Escute. Desculpe-me se fui rude hoje mais cedo, você sabe...
No meu estúdio e no museu. Juro que não era nada pessoal. Estava apenas
tentando proteger Vincent e você... E todos nós. Agora é muito tarde para isso,
bem, por favor, aceite minhas desculpas.
― Entendo totalmente ―, disse a ele. ― O
que mais você poderia ter
feito?
― Ow... Ela me perdoou ―, ele disse, mão
no coração, a brincadeira obviamente retornando. ― Então, você tem certeza que
ficará bem? ― Ele me perguntou, chegando mais perto com um olhar que me
prendeu, que era mais do que apenas preocupação amigável pelo meu bem-estar.
Ele me viu ler seu rosto e sorriu provocantemente, levantando uma sobrancelha
como se fazendo uma pergunta.
― Ficarei bem, sério. Obrigada ―,
respondi, ruborizando, e pisando sobre o paralelepípedo.
― Vince irá te ver assim que puder ―,
disse, colocando suas mãos dentro dos bolsos do jeans e acenando com a cabeça
um tchau.
Acenei de volta
e andei lentamente para fora do pátio a caminho da rua, sentindo como se
estivesse em um sonho.
15
Final de semana
passou num borrão, com meu corpo fazendo uma coisa e minha mente lá na casa da
Rue de Grenelle.
Não sabia quanto
esperar por notícias de Vincent. Na manhã de segunda, quando Geórgia e eu
saímos para a escola, vi um envelope debaixo da porta da frente do nosso prédio
com o meu nome impresso em caligrafia de curvas bonitas à moda antiga. Eu o
abri e de dentro tirei um cartão branco de papel grosso, no qual estava escrito
em letras deitadas “Em
breve. V.” .
― Quem é V? ― perguntou Geórgia, com as
sobrancelhas levantadas.
― Oh, só um cara.
― Que cara? ― perguntou, parando morta em
seu rastro e agarrando meu braço. ― O criminoso?
― Sim ―, ri, me livrando do seu aperto e a
colocando de volto no caminho para o metrô. ― Exceto que ele não é um
criminoso. Ele é... ― É
um fantasma,
como um anjo guardião morto-vivo do tipo de monstro que corre ao redor salvando
vidas humanas. ― Ele apenas sai com algumas pessoas duvidosas.
― Hmm... Acho que eu devia conhecê-lo.
― De jeito nenhum, Geórgia não sabe nem ao
menos se irei continuar a vê-lo. Tudo o que não preciso é da sua interferência
complicando as coisas antes de realmente decidir se gosto dele.
― Oh, você gosta dele, isso certo.
― Ok. Eu gosto dele. Quero dizer, se eu
for continuar a vê-lo. Ela me olhou com ceticismo.
― Não posso explicar, Geórgia. Apenas não
vamos falar sobre isso.
Prometo deixar
você saber se qualquer coisa acontecer.
Andamos em
silêncio por uns dois segundos antes de ela dizer ―, Não se preocupe. Não irei
tentar roubá-lo de você.
Bati nela com a
minha bolsa de livros enquanto corríamos escada abaixo para o metrô.
Vincent tinha
dito que queria me ver em “dois dias”, mas nós estávamos no quarto dia, já
tinha começado a me perguntar quando e se iria mesmo poder vê-lo de novo.
Talvez tivesse mudado de opinião sobre mim assim que ficou mais forte. Ou
talvez Jean-Baptiste a tinha mudado para ele. Apenas pensei sobre a sua nota e
torci para que ele pudesse aparecer.
Após o último
sinal na terça-feira, passei pelos portões da frente do colégio e fui em
direção à parada de ônibus. Meu passo diminuiu quando vi uma figura familiar
parada do outro lado da rua. Era Vincent.
Seu cabelo preto
brilhava sob o sol de final de setembro e ele irradiava energia e vida. Parecia
como algum tipo de criatura mitológica perfeita. Ele é um tipo de criatura
mitológica perfeita, me lembrei. Fiquei sem ar. Embora seus olhos estivessem
escondidos atrás das lentes dos óculos de sol, vi seus lábios se curvarem em um
sorriso quando me viu saindo pelos portões.
Uma Vespa17
vintage vermelha estava estacionada perto dele, e quando atravessei a rua indo
na sua direção, ele estendeu um capacete vermelho da mesma cor. Após quatro
dias de espera, eu me vi jogando os meus braços em torno dele aliviada. Mas
quando cheguei a um metro de distância, hesitei, relembrando como ele
aparentava na última vez em que o vi.
17 Modelo
clássico de moto.
Parecia que
estava próximo da morte. Deitado lá, quase sem vida em sua cama, como uma cena
de um filme antigo de terror em preto-e-branco. E agora aqui estava ele, quatro
dias depois, cada poro do seu corpo exalando saúde. O que tinha de errado
comigo? Deveria estar correndo para longe dele tão rápido quanto fosse
possível, não para dentro de seus braços. Monstro, não humano, me lembrei.
Ele me viu
hesitar e, embora estivesse se inclinado para me cumprimentar, deu um passo
para trás e esperou eu dar o primeiro passo.
― Hey. Você
parece bem mais... Vivo. ― disse, dando a ele um tenso sorriso, enquanto dentro
de mim a batalha entre impulso e cautela continuava.
Ele riu e
esfregou a parte de trás do pescoço com uma mão, sua expressão era uma mistura
de timidez e remorso. ― Sim. Andando, falando...
― Sua voz
sumindo enquanto observava minha expressão cuidadosamente. Decida-se. Pensei,
me estimulando a agir. Esticando-me, peguei o capacete reserva da sua mão. ―
Então, a coisa de-volta-da-morte... Belo truque de festa ―, disse, colocando o
capacete.
A expressão de
Vincent se aliviou imediatamente. ― Sim, terei que te mostrar como se faz
qualquer dia desses ―, riu e, jogando uma perna por cima da moto, esticou uma
mão para mim.
Eu a peguei meio
vacilante. Estava quente. Suave. Mortal. Eu me coloquei atrás dele e empurrei
todas as duradouras duvidas para um canto distante da minha mente. ― Para onde
estamos indo? ― perguntei finalmente, me deixando sentir a excitação que estava
lutando para se libertar.
― Apenas uma
pequena volta ao redor da cidade ―, disse, dando o impulso inicial na Vespa e
indo para dentro da rua.
Segurando
Vincent, me senti como se estivesse no paraíso e, passeando por Paris numa
Vespa vintage, senti como se fosse a melhor aventura que tinha tido em anos. Atravessamos
a ponte acima do rio Sena em Paris, ficamos do outro lado da cidade para seguir
ao longo da margem do rio. A água brilhava na luz de outono.
Após vinte
minutos de passeio, fomos à Ilha Saint-Louis, uma das duas ilhas naturais no
meio do Sena que são conectadas ao continente por pontes e ligadas uma a outra
por uma passarela.
Vincent trancou
a moto em uma passagem e então, segurando minha mão, me levou para baixo por um
lance de degraus de pedra até a beira da água.
― Escute, me desculpe se não pude vir até
você mais cedo ―, ele disse, andando ao longo do cais comigo de mãos dadas. ―
Tinha um trabalho para
fazer para
Jean-Baptiste. Vim tão rápido quanto pude.
― Está tudo bem ―, respondi, abstendo-me
de lhe fazer perguntas. Preferi esquecer sobre todos aqueles eventos de novelas
fantasiosas do final de semana anterior. Queria fingir que éramos apenas um
garoto e uma garota passando a tarde às margens do rio. Mas tinha um incomodo
sentimento de que o sonho não iria durar muito tempo.
Quando nós nos
aproximamos do cume da ilha, a calçada estreita se abriu em um largo terraço de
pedras cobalto. ― Esse lugar é sempre lotado durante o verão, mas ninguém nem
mesmo pensa em vir aqui no resto do ano. O que o deixa vazio para nós ―,
Vincent disse enquanto me levava para o lado norte.
Se abaixando na
beira do terraço, ele estendeu seu casaco na pedra e levantou a mão para que eu
a segurasse. Senti como se nós fossemos as últimas duas pessoas na Terra. Esse
cavaleiro de armadura brilhante tinha me varrido para a sua pequena ilha de paz
no meio da ocupada cidade e queria se sentar comigo para alguns momentos de
contos de fadas. Isso não pode ser real.
Observamos as
pequenas ondas brilharem e piscarem como espelhos sob o sol na superfície de um
rio viridiano de forte correnteza. Enormes nuvens derivarem na vasta extensão
do céu, que raramente se vê quando se está andando no meio dos prédios da
cidade. As ondas dobrarem altas contra a base do muro, o som delas se
amontoando em uma crescente interrupção quando os barcos passavam por elas.
Fechei meus olhos e deixei a tranqüilidade do lugar fluir por mim.
Vincent tocou a
minha mão quebrando o encanto. Sua testa estava revestida de preocupação
enquanto parecia procurar pelas palavras.
Finalmente falou.
― Você sabe o que eu sou, Kate. Ou pelo menos sabe o básico.
Assenti com a
cabeça, me perguntando o que poderia possivelmente vir depois.
― O
problema é... Quero
chegar a conhecer
você. Tenho um sentimento em relação a você que não tenho
há muito, muito tempo. Mas ser o que sou torna as coisas ― fez uma pausa ―,
complicadas.
Vendo sua
expressão de agonia, me vi tocando-o, reconfortando-o, mas exerci cada fibra de
autocontrole para me manter parada e segurar a minha língua. Ele tinha, obviamente,
pensado sobre o que queria dizer e eu não queria distraí-lo.
― Você acabou de passar por uma grande
perda. E a última coisa que quero é fazer com que as coisas sejam mais
dolorosas para você do que já são. Se eu fosse um cara normal, vivendo uma vida
cotidiana, não iria nem ao menos estar falando com você sobre isso. Nós
poderíamos apenas sair, ver como isso ia acontecendo e se as coisas funcionassem,
ótimo. Se não, podíamos ir cada um para o seu próprio caminho.
― Mas não posso fazer isso com a
consciência tranquila. Não com você. Não posso deixar alguém que sinto que
poderia me importar profundamente estar nesta jornada sem saber as
consequências. Sabendo que sou diferente. Que não tenho ideia do que isso
poderia significar se prolongar... ― ele parecia ambos, consternado pelas suas
próprias palavras e determinado a colocá-las para fora. ― Odeio até ter que
falar com você assim. É muita coisa, muito rápido.
Ele parou por um
momento e olhou para baixo para nossas mãos, separadas por meros centímetros de
pedras cobalto.
― Kate, eu não posso parar de querer estar
com você. Então estou colocando tudo sobre a mesa para que você considere. Para
decidir o que quer. Eu quero tentar. Para ver como podemos ficar. Mas vou
embora agora se me der à palavra ― apenas você sabe o que pode suportar. O que
acontece depois, conosco, é com você. Não tem que decidir logo agora, mas seria
bom saber como se sente a respeito do que estou dizendo.
Tirando meus pés
de onde pendiam fora da beira do cais, passei meus braços em torno das minhas
pernas. Balancei pra trás e para frente por alguns minutos e fiz uma coisa que
raramente me permitia fazer. Pensei sobre os meus pais. Sobre minha mãe.
Ela me aborrecia
por eu ser impetuosa, mas sempre me disse para seguir o meu coração. ― Você tem
uma alma antiga ―, disse uma vez. ― Não poderia dizer isso à Geórgia e, pelo
amor de Deus, não diga a ela que eu te disse isso. Mas ela não tem a mesma
intuição que você tem. A mesma habilidade de ver as coisas pelo o que elas são.
Não quero que você tenha medo de ir atrás das coisas que realmente quer na
vida. Porque penso que irá querer as coisas certas.
Se ela pudesse
apenas ver o que eu queria agora, iria engolir suas palavras.
Mudando meus
olhos dos passantes barcos para Vincent, sentado sem movimento ao meu lado,
estudei seu perfil enquanto ele olhava para a água perdido em seus próprios
pensamentos. Isso não era ao menos uma escolha. Quem eu estava tentando
enganar? Tinha tomado minha decisão da primeira vez em que o vi, o que quer que
seja que a minha mente racional tenha tentado me convencer desde então.
Eu me inclinei
na direção dele. Alcançando em cima com uma mão, varri meus dedos em uma
descida pelo seu braço, com as extremidades percorrendo ao longo da sua pele
quente. Rocei meus lábios contra a bronzeada superfície de sua bochecha e me
apoiei para ter a força de dizer as palavras que sabia que devia. ― Eu não
posso, Vincent. Não posso dizer sim.
Seus olhos
mostraram dor, aflição até, mas não surpresa. Minha resposta tinha sido a que
ele esperava.
― Também não estou dizendo não ―,
continuei, e ele visivelmente relaxou. ― Vou precisar de algumas coisas se
vamos ficar nos vendo.
Ele deixou sair
uma baixa e sexy risada. ― Então está fazendo exigências, não é? Bem, vamos
ouvi-las.
― Quero acesso ilimitado.
― Agora isso soa interessante. A que,
exatamente?
― Informações. Não posso fazer isso se não
entendo no que estou me metendo.
― E precisa saber de tudo imediatamente?
― Não, mas não quero sentir como se você
estivesse escondendo qualquer coisa também.
― Muito justo. Contanto que isso sirva
para ambos os lados.
Um leve sorriso
se elevou nos cantos dos seus lábios perfeitamente esculpidos. Olhei para
longe, antes que perdesse a coragem.
― Preciso saber quando não irei te ver por
um tempo. Quando faz a coisa do sono-morto. Assim não irei me preocupar que eu
esteja te deixando louco com a minha mortalidade. Ou minhas incessantes
perguntas.
― De acordo. Isso é fácil o suficiente de
planejar, quando as coisas são normais. Mas se alguma coisa vier a acontecer...
fora do normal...
― Alguma coisa tipo o que?
― Se lembra de ter sido falado sobre como
permanecemos jovens?
― Oh. Certo. ― A terrível imagem de Jules
pulando na frente do trem retornou aos olhos da minha mente. ― Quer dizer, se
você vier a “salvar alguém”.
― Então me assegurarei de que você seja
informada por alguém da minha tribo.
Eu me lembrei de
ter sido usada essa palavra antes. ― Por que você diz “tribo”?
― É como nos chamamos.
― Soa meio medieval, mas tudo bem ―, eu
disse ceticamente.
― Mais alguma coisa? ― perguntou,
parecendo cada vez mais como um aluno desobediente esperando para ser dada sua
punição.
― Sim. Não tem que ser imediatamente,
mas... Tem que conhecer a minha família.
Vincent riu
descaradamente, um rico som, que me assustou, com divertimento e alívio.
Se inclinando na
minha direção, me pegou em seus braços e disse ―, Kate, sabia que você era uma
garota à moda antiga. Uma garota para o meu próprio coração.
Deixei-me derreter
dentro do seu abraço por alguns segundos, e então me puxei de volta e assumi a
mais seria expressão que podia mostrar. ― Não estou me comprometendo à coisa
alguma, Vincent. Apenas ao próximo encontro.
De repente,
senti que a antiga eu ― a eu do Brooklyn pré-acidente-de-carro ― estava lá fora
procurando dentro da nova eu, o eu que tinha, a menos de um ano atrás, sido
forçada a crescer instantaneamente. Um eu que estava em uma batalha do medo
pela tragédia. Eu era testemunha de mim mesma sentando próxima a esse cara de
tirar o fôlego e falando aquelas palavras cautelosas a ele. Como na Terra eu
tinha me transformado tão rapidamente nessa pessoa equilibrada? Como podia
estar sentada aqui, estoicamente impondo condições para aquilo que queria mais
do que qualquer coisa que já tinha tido?
Autopreservação.
Aquela palavra veio a minha mente, e sabia que o que estava fazendo era o
certo. Toda a minha existência tinha sido despedaçada quando perdi meus pais.
Não queria me abrir para me apaixonar por Vincent e arriscar perdê-lo, também.
Lá no fundo, eu sabia que mal tinha sobrevivido ao “sumiço” dos meus pais.
Poderia não sobreviver a outro.
16
Vamos andar ―,
Vincent disse e, me ajudando a levantar, estendeu seu braço para eu me segurar.
Caminhamos enquanto assistíamos a vários barcos passarem por nós pela escura
água verde, deixandoespumosas ondas atrás deles e mandando largas, cilíndricas
ondas batendo contra as pedras debaixo de nossos pés.
― Então, como você... Morreu? Quero dizer,
da primeira vez ―, perguntei.
Vincent limpou a
garganta. ― Posso esperar até mais tarde para te contar a minha história? ―
perguntou, soando desconfortável. ― Não quero
te assustar
completamente falando sobre como eu costumava ser antes de ter a chance de
mostrar a você quem sou agora. ― Me atirou um sorriso esquisito.
― Isso quer dizer que não tenho que contar
a você sobre o meu passado também? ― me joguei para trás.
― Não ―, gemeu. ― Especialmente sendo que
mal comecei a entender você. ― Ele parou. ― Apenas, por favor, não me pergunte
ainda.
Qualquer outra
pergunta, apenas não essa.
― Ok. Que tal sobre... Por que você tem
uma foto minha próxima a sua cama? ― cutuquei.
― Aquilo te assustou? ― disse rindo.
― Sim, um pouco ―, admiti ―, Embora tenha
visto isso cerca de um segundo depois de ter te encontrado morto na cama, então
o fator assustador
já estava
bastante alto.
― Bem, Charlotte e eu tivemos que brigar
por ela ―, disse. ― Você notou as fotos nas minhas paredes?
― Sim. Nas de Charlotte também. Ela disse
que eram pessoas que tinha salvado.
Ele assentiu. ―
São nossos “resgates”. E depois que salvamos você, ambos reivindicamos sua
foto.
― Como assim? ― perguntei confusa.
― Bem, sabe aquele dia no café quando você
quase virou um pedaço da história de Paris?
Assenti.
― Charlotte acenou para você, que foi o
porquê de você ter se movido a tempo de evitar a queda da pedra. Mas fui eu
quem disse a ela sobre o que iria acontecer.
― Você estava lá? ― perguntei, parando no
meu caminho e o encarando.
― Sim... Em espírito. Não em
corpo ―, Vincent disse, me puxando junto a ele.
― Em espírito? Pensei que disse que não
são fantasmas.
Vincent colocou
sua mão na minha e comecei a sentir como se tivesse sido pega por uma pequena
dose de tranquilizante.
― Pare com a coisa
do “toque-calmante”. Apenas explique. Posso aguentar. ― Vincent deixou sua mão
na minha, mas o difuso sentimento aquecedor foi embora. Ele sorriu
culposamente, como se tivesse sido pego colando em uma prova.
Sem eu estar me
dando muitos tapinhas nas costas, senti que estava aguentando as coisas muito
bem. Menos em aprender que o cara que gostava era imortal, pensei em levar as
lições de como as coisas sobrenaturais funcionam com calma. Não tinha pirado.
Muito. Ok, exceto quando vi Jules ser morto. E descobri as fotos no obituário.
E me deparei com Vincent
“Morto” em sua
cama. Todas essas eram ocasiões enlouquecedoras totalmente aceitáveis, afirmei
para mim.
Vincent estava
falando, então tentei me focar. ― Irei voltar para a coisa do espírito. Mas o
que estava dizendo sobre estar com Charlotte e Charles ― isso é tipo como nosso
modo operante como revenants. Nós geralmente viajamos em três quando estamos
“andando”. Isso é o que chamamos quando estamos... Um... Em patrulha. Desse
jeito, se alguma coisa acontecer...
― Como o que fez Jules no metrô?
― Exatamente. Então os outros vão alertar
Jean-Baptiste, que irá garantir que consigamos o corpo.
― E como ele faz isso? Tem conexões com o
necrotério da cidade? Disse isso brincando, mas Vincent sorriu e assentiu com a
cabeça. ― E com a polícia, além de outras organizações.
― Conveniente.
― Muito ―, concordou. ― Provavelmente
pensam que Jean-Baptiste é algum tipo de gangster ou necrófilo, mas o montante
de dinheiro que paga pelos serviços que precisa parece fazer com que as pessoas
esqueçam suas perguntas.
Fiquei quieta,
pensando sobre quão complicado todo o negocio de morto-vivo/salvador-de-vidas
devia ser. E aqui tinha eu batido involuntariamente na festa cuidadosamente
planejada deles. Não me admira não estar na lista A de Jean-Baptiste.
― Charlotte explicou sobre como quando
estamos dormentes nossos corpos estão mortos, mas as mentes ainda estão ativas?
Afirmei com a
cabeça.
― Ela estava super simplificando um pouco.
Na verdade, durante o primeiro dia dos nossos três de dormência, estamos mortos
de “corpo- e - mente”. Tudo está desligado, como se fossemos qualquer outro
cadáver.
― Mas no dia dois mudamos para outro modo
― estamos apenas mortos de “corpo”. Se tivermos sido lesionados desde nossa
última dormência, nosso corpo começa a se curar. E nossa mente acorda. Por dois
dias nossas consciências podem, tipo... Se separar dos nossos corpos. Podemos
viajar. Podemos falar um com o outro.
Não conseguia
acreditar. Essas eram mais “regras revenants”. Isso não pode ficar mais
estranho, pensei. ― Flutuando por aí fora de seus corpos? Agora entendi porque
Charles disse que eram fantasmas.
Vincent sorriu.
― Quando nossas mentes deixam os corpos, chamamos isso de ser volante.
― Volante como “flutuante”?
― Exatamente. E, enquanto somos volantes,
temos esse tipo de sexto sentido refinado. Não é exatamente uma premonição, mas
podemos sentir quando alguma coisa está prestes a acontecer, assim os outros
podem usar para salvar alguém. É como ver dentro do futuro, mas apenas para o
que esta acontecendo perto da nossa localização imediata, e só um minuto ou
dois antes de onde nós estamos.
Cada vez... Fica
mais estranho.
Vincent deve ter
notado a hesitação nos meus passos e corretamente adivinhou que eu estava
ficando sobrecarregada. Ele me puxou para um banco de pedra de um lado do cais
e sentou-se comigo, me dando tempo para processar toda aquela história
impossível. Atrás de nós, os reflexos dos prédios por todo o rio, na superfície
da água.
― Sei que soa estranho, Kate. Mas isso é
um dos dons que possuímos como revenants. Um de nossos “super-poderes” únicos,
como você colocou.
Como quando viu
Jules e eu no metrô: estavam na verdade três de nós lá. Ambrose era volante, e
nos deixou saber apenas um pouco antes daquele homem pular. Jules disse que o
pegaria, enquanto eu blindava você de ver. Vincent deu um sorriso levemente
envergonhado. ― Ambrose é também
a razão de
esbarrarmos com você no Museu Picasso. Ele te viu do lado de fora e sugeriu a
Jules que entrássemos para uma “lição de cubismo”.
― Mas como Ambrose ao menos sabia quem eu
era? ― perguntei incrédula.
― A
ideia de Ambrose
de me fazer
esbarrar com você
foi uma brincadeira. Eu tinha
estado falando de você para os outros, até mesmo antes de te salvarmos no café.
― Ele pegou uma folha morta e começou a despedaçá-la entre os dedos.
― Você tinha? ― ofeguei atônita. ― Sobre o
que andou falando?
― Ah... Agora você gostaria de saber, não
é? ― sorriu maliciosamente.
― Não posso dar de presente todos os meus
segredos em uma única sessão. Deixe-me guardar ao menos um pouquinho da minha
dignidade!
Rolei meus olhos
e esperei pelo o que poderia vir depois. Mas estava secretamente entusiasmada
com essa revelação.
― Em todo caso. O dia em que quase foi
esmagada pela pedra que desabou, eu era volante com Charlotte e Charles e vi o
prédio caindo aos pedaços antes que acontecesse. Eu disse a Charlotte que você
tinha que ser movida e ela gesticulou para que se aproximasse. Esse é o porquê
de nós dois reivindicarmos sua foto para nossa ”Parede da Fama”. ― sorriu e
mudou o
olhar fixo da
agora desintegrada folha para os meus olhos, avaliando minha reação.
― Mas por que as fotos? Elas são ―
murmurei ― troféus?
― Não. Não é como se estamos exultando. Ou
competindo. É mais profundo que isso ―, Vincent disse, seu sorriso substituído
por um olhar aflito. ― É difícil não ficar meio que... Obcecado... Com os
nossos resgatados, especialmente aqueles por quem morremos. Morrer
repetidamente não é fácil. E é difícil não querer saber o que aconteceu com a
pessoa por quem você morreu no lugar. Se a experiência de quase-morte mudou a
vida deles. Se o sacrifício que fez teve um efeito borboleta neles, suas
famílias, as pessoas que os conhecem, e assim por diante.
Riu
desconfortavelmente. ― Se não formos cuidadosos, podemos acabar por
persegui-los. E isso acontece. É um artifício fácil para aqueles que não estão
avisados. Felizmente, Jean-Baptiste tem algumas centenas de anos de existência
como morto-vivo sob controle. Ele nos mantém no “Plano de Reconstrução Triplo”.
― Vincent sorriu. ― Podemos voltar e fotografar nossos resgates depois de
salvá-los. Depois podemos ir na forma de volante duas vezes checá-los, mas
nenhuma outra comunicação é recomendada. Depois disso, temos que nos satisfazer
pesquisando-os através do Google para o contentamento de nossos corações.
― Então Ambrose praticamente jogou essa
regra pela janela quando nos forçou para dentro da mesma sala no museu.
Ele sorriu. ― As
regras já estavam um pouco ferradas. Como disse, minha fascinação por você
começou bem antes do acidente do desmoronamento do prédio.
Vincent evitou
meus olhos. Jogando os restos da amassada folha dentro da água, esticou o braço
e cobriu a minha mão com a dele. Escutei uma campainha de alarme soar detrás da
minha mente quando peneirei a informação que tinha me dado. E então alguma
coisa bateu.
― Vincent, está me dizendo que, mesmo que
não tenha morrido no meu lugar, você se tornou “obcecado” por mim depois de
salvar a minha vida?
― Mais obcecado ―, Vincent admitiu,
continuando a olhar para longe.
― Então se a obsessão é inevitável, o que
me faz diferente de qualquer outro dos seus resgates? Talvez a razão pela qual
goste de mim é que acontece que eu apenas moro na rua debaixo da sua e
atravesso seu caminho com mais frequência que a maioria. Você me salvou, mas ao
invés de desaparecer da sua vida como todos os outros, continuei aparecendo e
alimentei a obsessão. Como sabe que isso não é o que existe por trás de tudo?
Ele ficou em
silêncio. ― É isso, não é? ― balancei a cabeça em descrença. Meu
estômago se revirou em um nó de desespero.
― Estava me perguntando como alguém como
você poderia se apaixonar por alguém como eu. Como foi de agir como se eu fosse
apenas uma admiradora estúpida, até as primeiras vezes em que o vi olhando para
mim como se fosse a garota dos seus sonhos. E aqui está a resposta. Não tem
nada a ver comigo. É apenas algum tipo de adição não natural de salva-vidas que
vai ao longo da existência de um revenant.
Sabia que não
podia ser verdade, pensei comigo mesma.
Vincent abaixou
a cabeça dentro das mãos e sentou assim por um minuto, massageando a testa
antes de falar. ― Kate, tenho salvado centenas de mulheres e nunca senti isso
por nenhuma delas. Estava interessado por você antes de salvar a sua vida.
Admito, a parte de salvá-la te fez mais inesquecível. É como se selasse minha
decisão de conhecer você. Talvez eu tenha agido como um babaca da primeira vez
em que nos falamos, mas tem sido um longo tempo desde que me deixei sentir
alguma coisa por qualquer pessoa. Estou apenas sem prática de ser um humano.
Você tem que acreditar em mim.
Procurei por
qualquer traço de decepção em seu rosto. Parecia completamente sincero. ― Você
tem que ser honesto comigo então, Vincent ―, disse. ― Se de repente se der
conta de que isso é tudo o que sou ― um resgate de quem decidiu se aproximar ―
então quero saber imediatamente.
― Serei honesto, Kate. Nunca irei mentir
para você.
― Ou guardar coisas de mim que eu deveria
saber.
― Tem a minha palavra.
Concordei. O sol
já tinha se posto, e as luzes começaram a aparecer nos prédios acima de nós,
seus reflexos batendo na água como chamas oscilantes.
― Kate, o que você está sentindo?
― Honestamente?
― Honestamente.
― Medo.
― Deixe-me te levar para casa ―, Vincent
disse, arrependimento preenchendo sua voz. Girou em seus pés e me puxou para o
seu lado.
Não! Pensei. E
em voz alta gaguejei ―, Não... Ainda não. Não vamos terminar hoje desse jeito.
Vamos fazer alguma outra coisa. Alguma coisa normal.
― Quer dizer, alguma coisa além de falar
sobre mortes, espíritos flutuantes e imortais obsessivos?
― Isso seria legal ―, disse.
― Que tal jantar? ― Vincent disse.
― Certo. ― concordei. ― Deixe-me apenas
avisar a Geórgia que não irei comer em casa, então. ― Tirei meu celular da
bolsa e digitei: Saindo para jantar. Por favor, diga a vovó e vovô que não
chegarei muito tarde.
Vincent pegou a
minha mão e entrelaçou seus dedos com os meus, enviando pequenas ondas de
choque ao meu coração. Meu celular tocou quando chegamos ao topo dos degraus.
Era Geórgia.
― Sim?
― Então, com quem você está indo jantar
fora?
― Então, por que você quer saber? ― sorri,
olhando de esguelha para Vincent.
― Vamos apenas dizer que estou levando
minha função de sua guardiã legal muito a sério. ― ronronou.
― Você não é mesmo a minha guardiã legal.
Geórgia riu. ―
Com quem está?
― Um amigo.
― V?
― Na verdade, sim.
― Oh meu Deus, para onde estão indo? Vou
passar por lá e apenas fingir que estava na área, assim posso dar uma olhada
nele.
― De jeito nenhum e, além disso, não sei
ao menos para onde estamos indo ainda.
Vincent me deu
um malicioso sorriso. ― Geórgia? ― perguntou. Acenei com a cabeça e ele
alcançou meu celular.
― Alô, Geórgia? É Vincent aqui. Deveria
ter esclarecido esse encontro com você antes de levar sua irmã para sair? ― ele
riu, e eu poderia dizer que
Geórgia já
estava trabalhando o seu irresistível charme sobre ele.
Finalmente ele
disse ―, Não, não acho que uma sessão de conhecer- pessoas estava nos planos
desta noite, mas tenho certeza que iremos nos esbarrar em breve. Por que não,
você pergunta? ― Piscou para mim e estremeci. Era incrível como ele me afetava.
De um jeito perigoso.
― Terá que perguntar a sua irmã. Ela é
quem está dando as ordens.
17
Nós nos
sentamos, de frente um para o outro, em uma mesinha num cavernoso restaurante
nas Marais. Dúzias
de oscilantes velas iluminavam o espaço ao nosso redor.
Nossas pernas estavam cruzadas debaixo da mesa, as minhas descansando entre as
dele, e a sensação do seu corpo tocando o meu manteve meu sangue em uma
constante baixa ebulição do momento em que entramos até nós sairmos.
Continuei
tentando lutar com o sentimento de que Vincent e eu já éramos um casal. Esse
era o nosso primeiro encontro real, depois de tudo, e, exceto pela quase não
acreditável informação que Vincent tinha me dado sobre seu capuz de monstro, eu
não sabia qualquer coisa sobre ele. Aquilo não era hora para deixar minha
guarda baixa. Resolvi manter as coisas light.
― Você falou inglês comigo toda a tarde e
não cometeu um erro ainda ―, eu o elogiei, enquanto esperávamos pela nossa
comida chegar.
― Quando se dorme tão pouco como dormimos,
você tem muito tempo para coisas como livros e filmes. Prefiro ler na língua
original e assistir filmes sem ter que ler as legendas. Então me direcionei a
aprender as minhas favoritas: inglês, italiano e um pouco de línguas
escandinavas.
― Ok, estou começando a me sentir
intimidada.
― Tenho certeza que se você tivesse
décadas suficientes para trabalhar nisso, teria absolutamente me mostrado
superior ―, respondeu, seus olhos vívidos na oscilante luz das velas.
O garçom colocou
nossos pratos nas nossas frentes. ― Bon appétit ―, disse Vincent, esperando eu
pegar meu garfo e faca antes de tocar os seus.
― Então você come comida normal ―,
comentei, assistindo Vincent cortar um pedaço do seu magret de canard.
― O que? Você estava esperando eu pedir cérebros
crus? Pensei que fossemos ficar longe dos tópicos não-deste-mundo da conversa
de hoje à noite ―, ele disse, sorrindo.
― Não é toda noite que tenho um jantar com
um imortal ―, brinquei.
― Me dê um pouco de luz.
― Comemos coisas normais. Não dormimos,
exceto quando estamos dormentes, o que realmente não conta como dormindo. De
qualquer maneira, todas as outras coisas funcionam do mesmo jeito... ― seus
olhos estreitaram descaradamente e seus lábios formaram um sorriso sexy. ― Ou
pelo menos é o que tenho ouvido.
Ruborizei e me
concentrei intencionalmente em meus talheres.x
― Kate?
― Mmm?
― Qual é o resto do seu nome?
Encontrei seus
olhos. ― Kate Beaumont Mercier. Beaumont é o nome de solteira da minha mãe.
― É francês.
― Sim. Peguei rotas francesas de ambos os
lados da minha família. De qualquer maneira, dar aos seus filhos o nome de
solteira é uma coisa sulista.
E o sul foi onde
minha mãe cresceu. Na Geórgia, para ser mais exata.
― Está tudo se encaixando agora. ― Vincent
sorriu.
― E quanto a você?
― Vincent Pierre Henri Delacroix. Nós
pegamos dois nomes do meio na França. Pierre era o nome do meu pai e o do meu
avô era Henri.
― Soa muito aristocrático.
― Talvez muito, muito antes ―, Vincent
riu. ― Mas minha família não era nada como Jean-Baptiste. É fácil dizer de qual
tipo de lugar ele vem.
― Jean-Baptiste ―, murmurei. -Ele não
parece gostar muito de mim.
O rosto do
Vincent escureceu. ― Quero que você saiba que, embora Jean-Baptiste seja como
minha própria família, a opinião dele sobre você não importa para mim. Se
quiser que ele goste de você, então devo te assegurar: irá acontecer. Você tem
que ganhar a confiança dele... ele não dá isso facilmente. Mas até lá, você
está comigo. Ele irá respeitar a minha escolha e ser civilizado de agora em
diante.
Vincent viu a
dúvida no meu rosto e disse rapidamente. ― Isso é claro, se nós continuarmos
nos vendo. O que espero que continuemos.
Assenti para
mostrar que entendi e Vincent, aparentemente aliviado por eu não ter tentado
fugir dele depois de sua mais séria diatribe, mudou de assunto. ― Então, você e
sua irmã são muito próximas?
― Sim, ela não é nem dois anos mais velha
que eu, então sempre brincamos sobre sermos gêmeas. Mas somos completamente
diferentes.
― Como assim?
Eu mordi o lábio
e pensei sobre como descrever minha irmã, a borboleta social, sem fazê-la
parecer superficial.
― Geórgia é uma extrovertida total. Não
como eu ― uma violeta encolhida ―, mas não me importo de passar um tempo comigo
mesma.
Minha irmã tem
que estar com pessoas vinte e quatro por dia, sete dias por semana. Em Nova York todo mundo a
conhecia. Ela sempre se direcionava a encontrar as melhores festas e estava
continuamente cercada pela sua comitiva: membros de bandas, DJs, artistas
performáticos.
― E me deixe adivinhar... Você está sempre
muito ocupada lendo e indo a museus para acompanhá-la. ― Eu ri quando vi o
torto sorriso de Vincent.
― Não, eu fui com ela algumas vezes. Mas
não era o centro das atenções como Geórgia. Era apenas a irmã caçula da
Geórgia, por onde ia.
Ela tomou conta
de mim. Sempre nomeava alguém em seu grupo para ter certeza que eu tinha tido
um bom tempo.
Não expliquei
como ela podia sempre escolher um “encontro” para mim: caras maravilhosos e
descolados que sempre, para o meu espanto, pegavam o desafio de entreter a irmã
da Geórgia. Alguns desses arranjos tinham se transformado em algo mais. Não
muito mais, na verdade, mas se acontecesse de um desses caras estar na festa em que Geórgia e eu
estávamos, eu tinha alguém com quem dançar, sentar perto e talvez até beijar em
algum canto escuro de uma sala tarde da noite. Geórgia os chamava de meus
“garotos festas”.
Agora, com
Vincent sentando do outro lado da mesma mesa, maior que a vida, eles pareciam
como fantasmas. Sombras em comparação a ele.
― Eu me perguntava como ela lidaria dando
um passo para baixo do trono de rainha da vida noturna quando nos mudamos ―,
continuei ―, mas
a subestimei.
Ela está bem em seu caminho de alcançar o mesmo nível aqui.
― Diferente cidade, mesma cena?
― Ela está basicamente fora todas as
noites que vovô e vovó não a forçam a ficar em casa. Mas não como em Nova York , eu não vou
com ela.
― Eu sei ―, ele disse, espetando a batata
com o seu garfo, e então parou e olhou rapidamente para cima para ver se eu
tinha notado seu deslize.
― O que? ― perguntei surpresa, e então as
palavras do Ambrose de repente voltaram para mim. Nós a verificamos e ela,
definitivamente, não é uma espiã. ― Você tem estado nos seguindo! ― Sentindo
simultaneamente lisonjeada e chocada, tirei minhas pernas em torno das dele e
as mantive do meu lado da mesa.
― Ninguém estava seguindo Geórgia, apenas
seguindo você. E não era eu. Pelo menos não depois do dia em que nos falamos no
Museu Picasso.
Depois daquilo,
senti que devia a você alguma privacidade. Foram Ambrose e Jules; uma vez que
souberam que eu estava... interessado por você, insistiram em ter certeza que
você não era um perigo para nós. Nunca duvidei de você, no entanto.
Honestamente.
― Um “perigo”? ― perguntei descrente.
Vincent confirmou.
― Nós temos inimigos.
― O que você quer dizer?
― Vamos mudar de assunto ―, Vincent disse.
― A última coisa que quero fazer é te envolver em alguma coisa que poderia
colocá-la em risco.
― Você corre risco?
― Não entramos em contato com eles tão frequentemente.
Mas quando entramos, termina com cada lado tentando destruir o outro. Então,
desde que você me pediu para ser honesto, tenho que dizer que sim. Mas tenho
décadas de experiência protegendo a mim mesmo. Não quero que se preocupe.
De repente me
lembrei da minha caminhada de madrugada com Geórgia ao longo do quarteirão. ― A
noite em que vi você se jogar dentro do Sena depois daquela garota. Pessoas
estavam lutando debaixo da ponte. Com espadas.
― Bem, então
você já os viu. Aqueles são os numa.
Até mesmo a
palavra soava demoníaca. Encolhi os ombros. ― O que são eles?
― São a mesma coisa que nós, mas em
sentido contrário. Eles são revenants, mas seus destinos não são salvar vidas.
São destruí-las.
― Não entendo.
― Nós nos tornamos imortais quando
morremos salvando a vida de alguma pessoa. Eles ganham as suas imortalidades
tirando vidas. O universo parece gostar de equilíbrio. ― Seu sorriso foi
amargo.
― Quer dizer que são assassinos
ressuscitados? ― senti uma fria lâmina cortar caminho do meu estômago ao
coração.
― Não apenas assassinos. Todos eles
traíram alguém para suas mortes. Inalei acidamente. ― O quê? Espere um minuto.
Quer dizer que qualquer pessoa que morre depois de trair alguém, causando assim
sua própria morte, se torna um cara imortal ruim?
― Não, não todos. Apenas alguns. É como a
gente. Nem todos que morrem salvando a vida de outra pessoa é ressuscitada.
Irei explicar outra hora ― está ficando um pouco complicado. Tudo o que você
precisa saber é
que os numa são
maus. São perigosos. E nunca morrem porque continuam matando. O que é
facilitado pelas suas linhas de trabalho: são basicamente proclamados mafiosos,
executando prostituição, tráfico de drogas e, a fim de terem uma face legal
para seus acordos de negócios, eles têm bares e clubes. Não surpreendentemente,
no mundo deles, a oportunidade para a morte e traição chegam juntas
suficientemente frequentes.
― E essas são as... Coisas que estavam
lutando debaixo da ponte aquela noite?
Vincent
assentiu. ― A garota que pulou. Estava envolvida com eles. Eles conduziram para
ela decidir se matar e então foram juntos para ter certeza que ela seguiu
adiante.
― Mas ela parecia tão nova. Quantos anos
tinha?
― Quatorze.
Encolhi. ― E por
que você estava lá? ― perguntei.
― Charles e Charlotte estavam caminhando
com Jules volante. Jules viu isso antes que acontecesse e correu para casa para
pegar eu e Ambrose.
Quando chegamos
à cena, os gêmeos seguraram alguns dos numa embaixo da ponte enquanto a
garota... Bem, você viu o que aconteceu. Eu a alcancei apenas antes de ela
pular.
― Você pegou os... Caras maus? ― não
queria dizer aquela palavra, ela tinha um inquietante efeito sobre mim.
― Dois deles, sim. Alguns outros foram
embora.
― Então você não apenas salva pessoas.
Você mata pessoas também.
― Numa não são pessoas. Se tivermos a
chance de destruir qualquer demônio revenant, nós destruímos. Humanos podem sempre
mudar; é por isso que evitamos matá-los se podemos. Há sempre uma possibilidade
de redenção aos seus futuros. Mas não os numa. Eles começaram nesse caminho
enquanto eram humanos. Uma vez que são revenants, estão fora de qualquer
esperança de salvação.
Então Vincent
era um assassino, pensei. Um assassino de caras ruins, mas ainda assim
assassino. Não estava certa de como lidar com isso.
― E a garota que se jogou da ponte?
― Está bem.
― Está obcecado por ela?
Vincent riu. ―
Agora que sei que ela está bem, não. ― Debaixo da mesa, ele colocou minhas
pernas de volta entre as dele, e um pouco do calor voltou. ― Tenho sorte que os
revenants não conseguem ler a mente uns dos outros, pois Jean-Baptiste poderia
me matar se soubesse que te contei sobre os numa.
― Quebra de
segurança? ― ri.
Vincent sorriu.
― Sim, mas confio em você, Kate.
― Sem problema ―, disse. ― Você
provavelmente já sabe disso pela sua rede de espionagem, mas não tenho ninguém
para contar mesmo se quisesse. Não é como se tivesse um monte de amigos
esperando ao redor para ouvir minha fofoca não morta.
Vincent riu. ―
Não. Mas você tem a mim.
― Serei extremamente cuidadosa para não
falar demais sobre monstros perto de você, então.
― Como é que nós acabamos de conversar por
duas horas e ainda não sei qualquer coisa sobre você? ― reclamei quando nós
saímos do restaurante.
― Como assim? ― Vincent respondeu, ligando
a moto. ― Despejei toneladas sobre nós.
― Sobre vocês como um grupo, muito, mas
você como pessoa, nada ―, gritei por cima do barulho da ignição. ― Não me
deixou te perguntar qualquer coisa. Me deixou em desvantagem.
― Suba ―, ele disse, rindo. Subi na garupa
e entrelacei meus braços ao se redor, sentindo-me próxima do êxtase.
Atravessamos o
rio e começamos a seguir em direção a nossa parte da cidade. Com o vento
chicoteando meu cabelo descontroladamente sob a base do capacete e o quente
corpo do meu... potencialmente namorado pressionado contra o meu, desejei que
ele pudesse continuar dirigindo até chegarmos no oceano atlântico, mais de
quatro horas de distância. Mas quando o museu do Louvre apareceu à vista do
outro lado do Sena, Vincent desacelerou e estacionou na beira do rio. Ele
desligou a moto e a prendeu a um poste antes de pegar a minha mão e me conduzir
para frente do rio.
― Ok, me pergunte algo ―, ele disse.
― Para onde está me levando?
Vincent riu. ―
Você ganha uma pergunta e a está gastando com isso? Ok, Kate. Só porque tem
sido tão paciente, vou responder. ― pisamos na Pont des Arts ― uma passarela de
madeira que leva ao outro lado do rio ― e começamos a atravessá-la.
A cidade estava
acesa como uma árvore de natal e as pontes brilhando com pontos de luz que as
faziam parecer majestosas e de outro mundo. A
Torre Eiffel
brilhava à distância e o reflexo da lua apareceu na superfície da água agitada
abaixo de nós.
Alcançamos o
centro da ponte. Vincent me levou gentilmente para a grade lateral e, ficando
atrás de mim, me envolveu em seus braços e me aproximou dele. Fechei meus olhos
e inalei, enchendo meus pulmões com o cheiro distinto do rio, que eu tinha, ao
longo dos anos, vindo a equiparar com um estado de tranquilidade. Meu coração
abrandou e, em seguida, quando os músculos de Vincent flexionaram ao redor dos
meus ombros, acelerou.
Ficamos ali,
olhando para a Cidade da Luz juntos por alguns eufóricos momentos antes de ele
inclinar a cabeça para baixo e sussurrar ―, A resposta à sua pergunta de para
onde eu estava levando você seria... para o lugar mais bonito de Paris. Com a
garota mais linda que tive sorte suficiente para botar meus olhos em cima e
que, desesperadamente, espero que irá concordar em se encontrar comigo
novamente. O mais rápido possível.
Olhei por cima
do ombro e registrei sua sincera expressão. Ele me virou lentamente para eu
encará-lo. Ele me olhou fixamente por um minuto completo com seus grandes olhos
escuros, como se tentando memorizar cada centímetro do meu rosto.
Então levantou a
mão para tirar um punhado de cabelo do meu rosto, colocando-o delicadamente
atrás da minha orelha enquanto levava seus lábios aos meus.
Nossas peles mal
se tocaram. Ele estava hesitante, como se soubesse o que queria, mas com medo
de me assustar. Nossos lábios roçaram, e senti como se um acorde tivesse sido
preso dentro de mim e meu corpo cantarolando com uma pura nota musical.
Vagarosamente, levantei meus braços para deixá-los em torno do seu pescoço, com
medo de que um movimento repentino pudesse quebrar o encanto. Mas quando seus
lábios encontraram os meu de novo, uma vez mais, a magia se intensificou e a
nota cresceu a um nível arrebatador que bloqueou todos os outros sons.
Paris
desapareceu. O movimento das ondas debaixo de nós, o barulho dos carros
passando em ambos os lados do rio, os sussurros dos casais passando por nós de
mãos dadas... Todos desapareceram, e Vincent e eu éramos as únicas pessoas
deixadas na Terra.
18
Alguma coisa
farfalhou ao pé da minha cama. Forcei um olho a abrir, e pela neblina de um
interrompido sonho, vi minha irmã na beirada do meu colchão. Ela parecia muito
animada para essa hora da manhã. Ou ainda era noite? Levantando uma
sobrancelha, ela soltou ―, Me conte tudo! ― e então, puxando de volta os
cobertores que joguei em cima da minha cabeça, tentou soar severa. ― Se você
não me contar, não vou te autorizar a vê-lo novamente.
Gemendo, ampliei
meus olhos turvos e me apoiei nos cotovelos. ― Que horas são? ― bocejei,
notando que Geórgia estava completamente vestida.
― Você tem exatamente quinze minutos para
ficar pronta para a escola. Eu deixei você dormir.
Olhei acima para
o meu relógio e vi que ela estava certa. Em pânico, joguei meus cobertores para
fora e comecei a saltar ao redor do quarto, pegando um sutiã e calcinha de uma
gaveta e escavando uma pilha de roupas limpas dobradas em uma cadeira. ― Pensei
que depois de chegar tão tarde, você deveria precisar de um sono extra ―, ela
balbuciou.
― Muito obrigada, Geórgia ―, grunhi,
passando uma camisa vermelha por cima da cabeça e rumando pelo meu closet atrás
de um par de jeans. E então, tendo um repentino flashback da noite anterior,
afundei na cama sentada. ― Oh meu Deus ―, disse, enquanto sentia meus lábios
formarem um revelador sorriso sonhador.
― O que aconteceu?
Ele te beijou?
Meu brilhante
rosto deve ter me denunciado, pois minha irmã pulou e disse ―, É isso, tenho
que conhecê-lo!
― Pare, Geórgia, você está me embaraçando.
Me dê um pouco de tempo para descobrir se pelo menos gosto do cara ―, disse e empurrei
meu pés pelas pernas da calça e me levantei para puxá-la para cima dos meus
quadris.
― Nós passamos por isso antes ―, minha
irmã disse, me agarrando pelo ombro e varrendo meu rosto, procurando por um
segundo. ― E sinto muito informá-la, Katie-Bean, mas pelo jeito que vão as
coisas, é muito tarde para isso. ― E dançou para fora do meu quarto, rindo e
batendo as mãos.
― Grata por fornecer o entretenimento
matutino ―, resmunguei, e me inclinei para amarrar os cadarços do tênis.
O dia passou
rapidamente ― sentia-me dentro de um estado sonhador assim que me sentava em
cada classe, e passava as horas refletindo sobre a noite passada. Parecia muito
bom para ser verdade: Vincent confessando seus sentimentos por mim no rio, o
jantar à luz de velas, e então... meu coração cambaleava toda vez que pensava
sobre o beijo na Pont des Arts. E como depois daquilo Vincent me levou para
casa e me deu outro beijo, breve, mas incrivelmente terno, em frente ao meu
prédio.
O olhar de total
devoção que eu tinha visto em seus olhos quando me tomou em seus braços, me
balançou. Não sabia se tinha que estar com medo ou retribuir da mesma forma.
Mas não podia me deixar corresponder. Eu não estava pronta para deixar a minha
guarda baixa.
No almoço,
liguei meu celular para checar minhas mensagens. Geórgia sempre me mandava
mensagens fúteis durante o dia e, com certeza, aquelas eram duas mensagens
dela: uma reclamando sobre seu professor de física e a segunda, também
obviamente enviada do seu celular:
Eu amo você,
baby. V.
Escrevi de
volta:
Pensei ter dito
a você para cair fora ontem à noite, seu esquisito perseguidor francês.
Sua resposta
veio de volta imediatamente:
Ah tá! Suas
bochechas beterrabas essa manhã sugeriram outra coisa... Mentirosa! Você está
tão na dele.
Eu gemi e estava
para desligar o celular, quando vi que tinha lá uma terceira mensagem de
DESCONHECIDO. Clicando nela, li:
Posso te pegar
na escola? Mesmo lugar, mesmo horário?
Enviei a
mensagem de volta:
Como você
conseguiu meu número?
Liguei-me do seu
celular quando você estava no banheiro do restaurante ontem à noite. Alertei
você que nós éramos perseguidores!
Eu ri e agradeci
as minhas estrelas da sorte que os revenants não podiam ler mentes, embora
tivesse de me lembrar de prestar atenção ao que fiz nos dias em que eles
estavam flutuando ao redor da cidade como espíritos que tudo vê.
Sim x 3. Vejo
você então, escrevi, e pelo resto do dia desisti de todo o fingimento de
prestar atenção nas aulas.
Ele estava
esperando por mim, quando eu sai pelos portões. Meu coração bateu acelerado
quando o vi inclinado casualmente contra uma árvore próxima ao ponto de ônibus.
Não pude impedir um imenso sorriso de se espalhar em meu rosto.
― Hey, maravilhosa ―, ele disse, segurando
um capacete para mim quando me aproximei da Vespa. Ele tirou seus óculos e se
inclinou na minha direção para me beijar em ambas as bochechas. E aquele
insignificante gesto que é repetido dúzias de vezes por dia na França ― toda
vez que se diz oi ou tchau, toda vez que se é apresentado a alguém, ou esbarra
em um amigo ― aquelas duas bitoquinhas que fazem os bises (beijos), de repente
tomaram um significado completamente diferente para mim.
No que parecia
em câmera lenta, a bochecha do Vincent tocou a minha, foi aí que meus pulmões
se esqueceram de trabalhar. Ele se afastou um pouco e nossos olhos se
encontraram enquanto ele se inclinava na direção da minha outra bochecha, então
roçou seus lábios gentilmente contra a minha pele. Abri minha boca para inalar,
tentando enviar um pouco de oxigênio para o cérebro.
― Humm ―, ele disse com um brilho nos
olhos. ― Isso foi interessante. ― Seu sorriso foi contagiante, e me encontrei
rindo, quando peguei o capacete das suas mãos e coloquei em minha cabeça,
agradecida pela chance de esconder meu rosto enquanto me recompunha.
― Desde que está anormalmente frio hoje,
estava me perguntando se você gostaria de tomar o melhor chocolate quente de
Paris ―, ele disse enquanto passava sua perna sobre a moto.
― Então agora você está seduzindo
estudantes com promessas de chocolate? Você é um cara mau, Vincent Delacroix ―,
eu ri, quando ele deu
a partida na
moto.
― Então o que isso faz de você por aceitar
minha oferta? ― gritou por cima do barulho da Vespa quando nós arrancamos.
― Culpada intencionalmente ―, eu disse,
passando meus braços em torno do seu corpo quente e fechando meus olhos com
prazer.
19
Naquela noite,
Geórgia me encurralou no meu quarto após o jantar.
― Então, para
onde você desapareceu depois da escola? Fiquei te esperando.
― Vincent me pegou depois da escola e me
levou ao Les DeuxMagots. Os olhos da Geórgia se ampliaram. ― Você o viu dois
dias seguidos?
― Bem, hoje não conta realmente, ao total
foram quinze minutos. Eu tinha que correr, desde que tenho que estudar para a
prova de amanhã.
― Não importa! Santa vaca, isso está
ficando sério! ― Ela se acomodou no pé da cama. ― Então. Fale sobre esse homem
ex-criminoso misterioso.
― Bem ―, disse, procurando por coisas que
poderia realmente dizer. ― Ele é um estudante.
― Onde?
― Um, na verdade não sei.
Geórgia olhou
para mim duvidosamente. ― O que ele está estudando?
― Ah... literatura? Eu acho ―, arrisquei.
― Você não sabe o que ele está estudando
também? Bem, sobre o que vocês falam?
― Oh, apenas outras coisas. Você sabe.
Arte. Música. ― Os mortos-vivos. Imortalidade. Zumbis demoníacos. Não havia
jeito de conseguir contar
a Geórgia coisa
alguma sobre ele.
Geórgia me
encarou de cima a baixo por um momento e então explodiu
― Tudo bem. Se você não quer me contar
sobre ele. Está tudo bem. Você não sabe muito sobre a minha vida também, mas
não é por falta de esforço
em tentar
incluir você. Parei de te chamar para sair, pois sei que você dirá não.
― Tudo bem, Geórgia. Quem você está vendo?
Minha Irmã
balançou a cabeça. ― Não dou informação a você se você não me dá alguma também.
Alcancei sua mão
e confessei ―, Geórgia, não estou intencionalmente tentando excluir você da
minha vida. Você sabe, tenho tido um tempo difícil com... Bem, tudo. Estou
finalmente botando os pés no chão e prometo fazer mais do que um esforço.
― Então você irá sair comigo neste fim de
semana? Eu parei. ― Tudo bem.
― Com Vincent?
― Um...
Geórgia me
atirou um olhar que dizia, e aí?
― Certo, certo. Nós vamos sair com
Vincent. Mas nada de clubes, Geórgia, por favor.
O mau humor de
Geórgia se transformou instantaneamente e ela saltou alegremente da cama. ―
Nada de clubes. Tudo bem. Que tal um restaurante?
― Claro. Irei checar se ele estará por aí.
― Mais como, se ele estará vivo.
― Ligue para ele agora.
― Alguma privacidade, por favor?
― Ok ―, Geórgia concedeu, se inclinando e
me dando um beijo na testa. Ela andou para a porta e então se virou. ―
Obrigada, irmã. Sério. Será bom ter você de volta.
As luzes da rua
estavam apenas começando a acender quando andamos para a estação de metrô.
Vincent e Ambrose, que estavam inclinados contra a banca de jornal e
conversando, se endireitaram quando nos viram. Meu coração se derreteu em uma
bagunça sentimental quando Vincent andou e me beijou nas bochechas e então,
olhando para Geórgia, deu a ela o seu mais arrebatador sorriso. ― E você deve
ser a guardiã legal da Kate... quero dizer, irmã. Geórgia, certo?
Geórgia riu e
exclamou toda coquete ―, Bem, apenas olhe para você! Kate certamente sabe como
escolher homens! ― ela olhava como se quisesse ficar bem ali a noite toda,
encarando dentro dos olhos dele.
― Geórgia! ―
exclamei, balançando a cabeça.
Ignorando-me,
Geórgia olhou sobre o ombro do Vincent para Ambrose e deu a ele uma piscada de
olho sedutora. ― Não se preocupe Katie-Bean. Parece que Vincent trouxe alguém
pelo caminho para me manter ocupada. E você seria...
― Ambrose. Encantado em conhecer a
adorável irmã da Kate ―, ele disse em francês, me dando um breve olhar de canto
de olho. Eu entendi. Se ela soubesse que ele era americano, iria começar a
fazer perguntas. Talvez muitas perguntas, embora eu tivesse certeza de que ele
estava acostumado a inventar histórias. ― Então, para onde vocês estão nos
levando, senhoritas?
― Pensei que poderíamos ir a um pequeno
restaurante que conheço no bairro quatorze ―, ela disse.
Vincent e
Ambrose se deram olhar fugaz, justo quando o celular da Geórgia tocou. ― Com
licença ―, ela disse, e se virou para responder a ligação.
― Não é o nosso bairro favorito ―, disse
Ambrose em voz baixa.
― Por quê? ― perguntei.
― É uma espécie de território “deles”.
Você sabe, aquelas pessoas sobre as quais contei a você. O “outro time” ―,
Vincent disse, olhando de relance para Geórgia para ter certeza de que ela não
tinha ouvido.
― O que eles podem fazer conosco do lado
de fora, em um bairro lotado, com duas humanas junto? ― perguntou Ambrose. Ele
encarou o espaço por um segundo e então acenou com a cabeça e se virou para
mim.
― Jules me disse para te dizer, “Olá
linda”.
― Hey, cuidado aí! ― Vincent disse.
― Ele disse, “O que você vai fazer a
respeito disso?” ― Ambrose disse, cutucando Vincent.
― Jules é volante... aqui? Agora? ― eu
disse surpresa.
― Sim ―, Vincent disse. ― Nós não estamos
em negócios oficiais hoje à noite, claro, mas ele insistiu em vir junto. Disse
que não queria perder toda
a diversão.
― Posso falar com ele? ― perguntei.
― Quando somos volantes só podemos ser
ouvidos por outros revenants
― não humanos. Então Jules pode ouvir o
que você diz em voz alta, mas só pode responder por mim ou Ambrose ―, Vincent
disse. ― Mas você vai querer ser cuidadosa. ― ele gesticulou em direção à
Geórgia, que estava desligando o celular.
― Muito ruim ―, ela disse. ― Eu tinha um
casal de amigos que iria se juntar a nós, mas não será capaz de vir.
― Podemos? ― perguntou Ambrose, segurando
seu braço formalmente para Geórgia pegar. Ela riu prazerosamente, entrelaçando
seu braço ao dele e rumou escada abaixo.
Uma vez que
estavam fora do alcance auditivo, eu disse ―, Oi, Jules! Vincent riu e disse ―,
Parece que alguém pegou um pouco de paixonite.
― O que você quer dizer? ― perguntei.
― Jules quer que eu te diga que é uma
vergonha você ter que se apaixonar por alguém tão chato como eu. Ele desejava
que pudesse pegar o meu lugar e mostrar a você quão bem um homem antigo pode
tratar uma dama. ― ele falou de volta para o ar. ― Sim, certo, companheiro. O
que você é, uns vinte anos mais velhos que eu? Bem, no momento temos ambos
dezenove, então desista.
Fiz um rápido
cálculo mental. Jules tinha me dito que nasceu no final do século dezenove.
Então Vincent devia ter nascido em 1920. Sorri enquanto guardava essa
informação para mais tarde. Se Vincent não iria me dizer coisa alguma, talvez
eu pudesse descobrir algo sozinha.
Nós saímos do
metrô, próximos ao extenso cemitério Montparnasse e andamos por rua exclusiva
para pedestres que estava lotada de bares e cafés. Nós paramos em frente a um
restaurante que tinha uma aglomeração de umas vinte pessoas paradas ao redor do
lado de fora. ― É esse! ― Geórgia disse muito entusiasmada.
― Geórgia, olha quantas pessoas estão
esperando. Isso vai levar uma eternidade até conseguirmos uma mesa.
― Tenha um pouco de fé em sua grande irmã
―, ela disse. ― Um amigo meu trabalha aqui. Aposto que consigo uma mesa para
nós imediatamente.
― Vá em frente. Nós vamos
esperar por você aqui fora, eu disse, direcionando Vincent e Ambrose para o
outro lado da rua, fora da multidão.
Nós nos apoiamos
em uma loja fechada em frente e assistimos quando Geórgia trabalhou seu caminho
pelo formigueiro de pessoas.
― Sua descrição sobre ela foi certeira. ―
Vincent sorriu, enquanto colocava seu braço em volta de mim e apertava meu
ombro carinhosamente.
― Minha irmã, o fenômeno ―, disse,
aproveitando o toque.
Ambrose ficou do
meu outro lado, assistindo a multidão e mexendo a cabeça para cima e para baixo
com algum ritmo em sua mente, quando repentinamente parou e olhou duro para
Vincent. ― Vin, Jules disse que viu o Homem na vizinhança. Apenas alguns quarteirões
longe.
― Ele sabe que
nós estamos aqui? ― Vincent perguntou. Ambrose balançou a cabeça. ― Eu acho que
não.
Vincent afastou
seu braço e disse ―, Kate, nós temos que sair daqui. Agora.
― Mas Geórgia! ― Eu disse, olhando na
direção da porta de vidro. Eu podia ver a minha irmã conversando com o garçom.
― Vou pegá-la ―, disse Vincent, e começou
a empurrar seu caminho pela multidão.
Justamente aí,
dois homens que estavam andando por lá colidiram duramente em Ambrose, o
empurrando violentamente contra a parede. Ele gemeu e tentou se arrancar deles,
mas os homens se esquivaram e caminharam rapidamente para longe quando ele caiu
no chão.
― Hey! Parem! ― gritei para eles, quando
viraram a esquina. ― Alguém pare. Eles! ― gritei para a multidão de pessoas do
outro lado da rua.
Pessoas viraram
e olharam na direção que eu estava apontando, mas os homens já tinham
desaparecido de vista. A coisa toda tinha acontecido tão rápido que ninguém
tinha sequer notado.
― Vincent! ― chamei sobre a multidão.
Vincent virou e, vendo meu alarme, começou a trabalhar seu caminho de volta
para mim.
― Ambrose, você está bem? ― eu disse,
ficando de cócoras próxima a ele. ― Aquele cara... ―, comecei, mas parei, vendo
que a sua camisa estava rasgada do pescoço ao peito e encharcada de sangue. Ele
não estava se movendo.
Oh, por favor,
ajude-o a não estar morto, pensei.
Eu vi mais
violência no último ano do que tinha visto na minha vida inteira. Perguntei,
não pela primeira vez, por que eu? Garotas adolescentes não deveriam estar em
tais íntimas circunstâncias com a mortalidade, raciocinei amargamente, enquanto
um sentimento de pânico levantou-se da boca do meu estomago. Eu me ajoelhei
próxima a sua forma sem movimento.
― Ambrose, você pode me escutar?
Alguém começou a
andar na nossa direção da multidão. ― Hey, ele está bem?
Bem nessa hora
Ambrose estremeceu e, se inclinando para frente com as duas mãos, começou a se
levantar do chão. Enquanto se levantava, fechou a jaqueta, efetivamente
escondendo o sangue na camisa, mesmo que já tivesse uma grande poça no chão. ―
Oh meu Deus, Ambrose, o que aconteceu? ― perguntei. Coloquei um braço para
apoiá-lo e ele se apoiou pesadamente em mim.
― Ambrose não. É o Jules. ― As palavras
vieram dos lábios de Ambrose, mas seus olhos olhavam cegamente para frente.
― O quê? ― perguntei confusa.
Vincent
finalmente nos alcançou. ― É o Ambrose ―, eu disse. ― Ele foi esfaqueado ou
baleado, ou algo assim. E está delirando. Ele me contou justamente agora que
era o Jules.
― Nós temos que tirá-lo daqui antes que
eles voltem com reforços pelo corpo dele ―, Vincent me disse em voz baixa, e
então disse mais alto ―, Ele está bem, ele está bem... obrigado! ― para um
pequeno grupo de pessoas que estava agora vindo para nos ajudar. Ele agarrou um
dos braços do Ambrose e o colou ao redor do seu ombro.
― Mas e a Geórgia? ― ofeguei.
― Quem quer que tenha feito isso viu você
com Ambrose. É muito perigoso para você aqui.
― Não posso deixar a minha irmã ―, eu
disse, virando para fazer meu caminho pela multidão para buscá-la.
Vincent me
agarrou pelo braço e me puxou de volta para ele. ― Ela estava dentro do
restaurante quando eles atacaram. Ela está a salvo. Venha comigo! ― ele
ordenou, e eu peguei o outro braço do Ambrose e o coloquei pelas minhas costas.
Ele estava andando, mas parecia muito fraco. Nós chegamos ao final do
quarteirão, e Vincent chamou um táxi e nos moveu para dentro antes de bater a
porta. Olhei para baixo da rua quando fomos embora. Nenhum sinal de Geórgia.
― Ele está bem? ― perguntou o motorista,
olhando em seu retrovisor e checando o grande homem caído em seu banco
traseiro.
― Bêbado ―, Vincent respondeu
simplesmente, tirando seu casaco enquanto falava.
― Bem, certifique-se de que ele não vomite
no meu táxi ―, o homem disse, balançando a cabeça em desgosto.
― O que aconteceu? ― Vincent me perguntou
rapidamente em inglês, olhando de relance para cima para ver se o motorista
podia entender.
Estendeu seu
casaco para Ambrose, que abriu sua jaqueta e a colocou debaixo da camisa. Ele
apoiou a cabeça contra o banco a sua frente.
― Apenas estávamos lá quando dois caras o
empurraram contra a parede. Eles correram antes de eu ao menos saber o que
estava acontecendo.
― Você viu quem fez isso? ― perguntou.
Balancei a
cabeça.
Ambrose disse ―,
Foram dois deles. Não vi isso acontecendo antes do tempo ou poderia ter
alertado vocês.
― Está tudo bem, Jules ―, Vincent disse,
colocando a mão confortavelmente nas costas do Ambrose.
Por que você
acabou de chamá-lo de Jules?
― Ambrose não está aqui. É o Jules ―,
Vincent disse.
― O quê? Como? ― perguntei, tomada pelo
horror enquanto me empurrava para longe da forma caída próxima a mim.
― Ambrose ou está inconsciente ou...
Morto.
― Morto ―, respondeu Ambrose.
― Ele vai... Voltar à vida? ― eu disse,
horrorizada.
― O ciclo recomeça quando somos mortos. O
dia um de nossa dormência começa assim que morremos. Não se preocupe ― Ambrose
irá reanimar em três dias.
― Então o que é isso que Jules está
fazendo? Possuindo?
― Sim. Ele queria tirar Ambrose de lá
antes que nossos inimigos pudessem voltar e pegar o corpo.
― Você pode fazer isso, quero dizer,
possuir alguém?
― Outros revenants, sim, sob certas
circunstâncias.
― Tipo?
― Tipo se o corpo ainda está em uma forma
suficientemente boa para se mover. ― Vendo meu espanto, ele esclareceu. ― Se
nós não estivermos
― Eww. ― Fiz uma careta.
― Você perguntou! ― ele olhou de relance
para o motorista que, julgando pelo seu leque de interesse, estava obviamente
de fora da conversa.
― E sobre os humanos? ― perguntei.
― Se eles estão vivos, sim, mas apenas com
a permissão deles. E levando-se em conta que é muito perigoso para o estado
mental humano ter duas mentes ativas de uma vez só. ― ele disse, batendo na
testa. ― Eles poderiam ficar loucos se isso fosse por um longo tempo.
Estremeci.
― Não pense nisso, Kate. Raramente isso
acontece. É algo que só fazemos nas mais extremas circunstâncias. Como essa
aqui.
― O que... Eu estou te assustando, minha
querida Kate? ― As palavras vieram dos lábios de Ambrose.
― Sim, Jules ―, respondi, franzindo meu
nariz. ― Posso dizer honestamente que eu estou completamente assustada agora.
― Legal ―, ele disse, um sorriso se formando
nos lábios de Ambrose.
― Jules, péssima hora para fazer piadinhas
―, Vincent disse.
― Desculpe, cara. Não é com frequente que
consigo fazer meus truques de mágica para uma humana, entretanto.
― Você pode apenas se concentrar em
diminuir o sangramento se for possível? Esse motorista vai enlouquecer se
bagunçarmos seu banco traseiro ―, Vincent sussurrou.
― Então, se já o mataram, por que aqueles
caras iriam querer voltar pelo corpo dele? Por que quiseram até mesmo matá-lo
em primeiro lugar, se sabem que ele apenas iria voltar à vida três dias depois?
― perguntei a
Vincent,
ignorando a conversa surreal entre eles.
Vincent pareceu
pesar se deveria ou não me dizer. E então, olhando para o corpo do Ambrose meio
caído sobre o meu, sussurrou ―, É a única maneira que podemos ser destruídos.
Se eles nos matam e então queimam nossos corpos, nós vamos para sempre.
Geórgia estava
furiosa. E eu não a culpava.
Durante o tempo
que nós chegamos à casa de Vincent, nós tínhamos brigado quanto a isso por
mensagens.
Geórgia: Onde
estão vocês, pessoal?
Eu: Ambrose está
doente. Teve que ser levado para casa. Geórgia: Por que você não veio e me
buscou?
Eu: Tentei. Não
consegui passar pela multidão.
Geórgia: Eu de
verdade odeio você este momento, Kate Beaumont Mercier.
Eu: Eu SINTO
MUITO.
Geórgia: Vi
alguns amigos aqui que me resgataram da completa humilhação. Mas eu ainda odeio
você.
Eu: Desculpa.
Geórgia: Você
NÃO está perdoada.
Vincent e eu
tentamos ajudar Ambrose, mas ele se endireitou depois de sair do táxi e afastou
nossas mãos. ― Eu consigo agora. Droga, esse cara é pesado. Como ele consegue
ao menos se mover com todos esses músculos inchados por toda parte?
Quando chegamos
à porta, Vincent se virou para mim, parecendo conflituoso.
― Acho que vou
para casa ―, eu disse, dando nele com um soquinho. Ele pareceu aliviado. ―
Posso caminhar com você se puder esperar apenas alguns minutos, até o deixarmos
estabilizado.
― Não, ficarei
bem. Sério ―, eu disse. E curiosamente, eu quis dizer isso. Ape de todo o
horror e esquisitice da noite, eu me sentia estranhamente bem. Posso aguentar
isso, pensei comigo mesma, enquanto andava para longe dos portões, em direção à
casa dos meus avós.
20
Geórgia
emburrada não é um bom sinal. Embora eu tenha me desculpado um milhão de vezes,
ela não estava falando comigo.
As coisas
estavam bem desconfortáveis em
casa. Vovô e vovó tentaram ignorar o fato de que alguma coisa
estava errada, mas no quinto dia após o meu imperdoável crime, vovô me puxou e
disse ―, Por que você não vem me ver no trabalho hoje? ― ele olhou de relance
para a pensativa silhueta da Geórgia e me deu um olhar significativo, como se
dissesse, Não posso falar aqui. ― Faz meses desde que você parou por lá e eu
tenho muito estoque novo que você não viu.
Depois da escola
me dirigi diretamente para a galeria do vovô. Andando dentro de sua loja, era
como estar em um museu. Nas luzes silenciadas, estátuas antigas estavam
alinhadas uma de frente para a outra em ambos os lados da sala, e caixas de
vidro exibiam artefatos feitos de cerâmica ou cheios de metais preciosos.
― Ma princesse18 ―, vovô cantou quando me
viu, quebrando o silêncio opulento da sala. Eu encolhi. Aquele era o apelido
favorito do meu pai para mim e ninguém havia me chamado assim desde sua morte.
― Você veio. Então, o que parece novo para
você?
― Ele, para começar ―, eu disse, apontando
para uma estátua em tamanho real de um jovem de aparência atlética avançando
com um pé e
18 Minha
princesa segurando um punho cerrado firmemente para baixo ao seu lado. O outro
braço e o nariz estavam faltando.
― Ah, meu Kouros ―, vovô disse, andando
até a estátua de mármore.
― Século cinco a.C., um verdadeiro prêmio.
O governo grego nem sequer teria deixado sair do seu país hoje em dia, mas o
comprei de um colecionador suíço cuja família o adquiriu no século dezenove. ―
Ele me direcionou a passar por um relicário de joias em uma caixa de vidro. ―
Você nunca sabe o que está recebendo nesses dias, com todas essas providências
duvidosas.
― O que é esse aqui? ― perguntei, parando
em frente a um grande vaso preto. Sua superfície era decorada com dúzias ou
mais figuras humanas avermelhadas em poses dramáticas. Dois grupos armados se
enfrentavam e,
no meio, um
homem nu de aspecto feroz ficava na cabeça de cada exército. Eles seguravam as
lanças na direção um do outro em combate. ― Soldados nus. Interessante.
― Ah, a ânfora. É mais ou menos cem anos
mais jovem que o Kouros. Mostra duas cidades em batalha, lideradas pelos seus
numina.
― Seus o quê?
― Numina. Singular, numen. Um tipo de deus
romano. Eles eram meio-humano, meio-divindade. Podiam ser feridos, mas não
mortos.
― Então por serem deuses, lutam nus? ―
perguntei. ― Sem armadura necessária? Soa como exibicionismo para mim.
Vovô deu de
ombros.
Numina, pensei,
e murmurei baixinho. ― Soa como numa.
― O que você disse? ― Vovô exclamou,
balançando a cabeça verticalmente do vaso para me encarar. Pareceu como se
alguém tivesse lhe dado um tapa.
― Eu disse que numina soa como numa.
― Onde ouviu essa palavra? ― perguntou.
― Eu não sei... tv?
― Eu sinceramente duvido muito disso.
― Eu não sei, vovô ―, eu disse, quebrando
seu olhar fixo e procurando por outra coisa na galeria que pudesse me tirar da
situação. ―
Provavelmente a
li num livro velho.
― Hmm. ― Ele assentiu, hesitantemente,
aceitando minha explicação, mas mantendo seu questionador olhar.
Acredito que
vovô tenha ouvido falar de cada deus arcaico e monstro que já existiu. Eu
deveria falar a Vincent que os revenants, ou pelo menos a arte demoníaca dos
revenants, não estava tão “debaixo do radar” como eles pensavam. ― Então
obrigada pelo convite vovô ―, disse, aliviada por mudar de assunto. ― Tem
alguma coisa sobre a qual queira me falar? Além de estátuas e vasos, é isso.
Vovô sorriu
palidamente. ― Pedi para você vir até aqui para checar você e Geórgia. Isso é
apenas um conflito ―, ele disse, olhando para o vaso ―,
Ou uma completa guerra? Não que isso seja da minha
conta. Só estou me perguntando quando você está planejando levantar uma trégua
e restaurar a paz ao nosso lar. Se isso for muito mais
adiante, deverei ter que partir em uma imprevista viagem urgente a negócios.
― Sinto muito, vovô ―, disse. ― É
totalmente minha culpa.
― Eu sei. Geórgia disse que você e um
jovem rapaz a deixaram abandonada no restaurante.
― Sim. Teve um tipo de emergência e nós
tivemos que ir embora.
― E não teve tempo suficiente para levar
sua irmã com você? ― perguntou ceticamente.
― Não.
Vovô pegou o meu
braço e gentilmente me direcionou na direção da entrada da loja. ― Não soa como
o tipo de coisa que você faz, princesse. E não soa muito cavalheiresco da parte
dos seus acompanhantes.
Balancei a
cabeça, concordando, mas não havia nada que eu pudesse falar para me defender.
Nós chegamos à
porta da frente. ― Seja cuidadosa com quem você escolhe passar o tempo, chérie.
Nem todo mundo tem um coração tão bom como o seu.
― Desculpa,
vovô. Irei por as coisas em ordem com Geórgia imediatamente. ― Dei a ele um
abraço e sai da escurecida sala, intermitente a luz do sol. E após pegar um
buque de genebras margaridas de uma floricultura do bairro, fui para casa num
esforço de última hora para fazer as pazes com a minha irmã. Não sei se foram
as flores que fizeram o truque, ou se ela estava apenas pronta para me perdoar
e esquecer. Mas dessa vez, meu pedido de desculpa funcionou.
Ao invés de me
desencorajar a ver Vincent, o discurso do vovô me deixou ainda mais ansiosa
para vê-lo. Tinham sido cinco longos dias e, embora tenhamos planejado nos ver
no final de semana, falado por mensagens e celular todos os dias, ainda parecia
uma eternidade. Depois da minha missão de paz com Geórgia, peguei meu celular
para ligar para ele. Mas antes que eu pudesse terminar de discar, vi seu nome
aparecer na tela e meu celular começou a tocar.
― Estava justamente ligando para você ―,
eu disse, rindo.
― Oh, isso é bom ―, sua voz aveludada veio
do outro lado da linha.
― Ambrose já se levantou? ― Perguntei. A
meu pedido, ele começou a me dar atualizações da recuperação do seu parente. No
dia seguinte em que foi esfaqueado, tinha começado a se curar e Vincent me
assegurou que, como de costume, Ambrose estaria novo em folha uma vez que
“acordasse”.
― Sim, Kate. Eu te disse que ele estava
bem.
― Sim, eu sei. Ainda é difícil acreditar,
só isso.
― Bem, você pode ver por si mesma se
quiser vir aqui. Mas você quer sair primeiro? Já que conseguimos passar pelo
Les DeuxMagors sem ninguém ser morto ou mutilado, pensei que eu deveria te
levar lá de novo.
― Claro. Tenho algumas horas antes do
jantar.
― Pego você em cinco minutos?
― Perfeito.
Vincent estava
esperando do lado de fora na sua Vespa pelo tempo que levei para descer as
escadas.
― Você é rápido!
― eu disse, pegando o capacete dele.
― Tomarei isso
como um elogio ―, replicou.
Era o primeiro
dia frio de Outubro. Nós nos sentamos do lado de fora do café, na Alameda
Saint-Germain, debaixo de um aquecedor alto tipo lâmpada, que se espalhava por
todo o terraço do café assim que começava a esfriar ali fora. O ar aquecido
esquentava meus ombros, enquanto o chocolate quente aquecia meu interior.
― Agora isso é um chocolate ―, Vincent
disse, quando derramou a espessa lava de chocolate derretido em sua xícara e
adicionou leite fervido ao vapor de uma segunda jarra. Nós nos sentamos e
observamos as pessoas passarem com casacos esportivos, chapéus e luvas pela
primeira vez no ano. Vincent se inclinou para trás no seu assento. ― Então,
Kate, minha querida ―, começou. Levantei minhas sobrancelhas e ele riu. ― Ok,
apenas boa e velha Kate. Em nosso harmônico espírito de informação, pensei que eu
poderia oferecer uma resposta a alguma pergunta sua.
― Que pergunta?
― Qualquer uma, contanto que pertença ao
século vinte e um e não ao vinte.
Pensei por um
momento. O que eu realmente queria saber é quem ele era antes de morrer. A
primeira vez. Mas, obviamente, ele não estava pronto para me contar.
― Ok. Quando você morreu pela última vez?
― Um ano atrás.
― Como?
― Um resgate de fogo.
Parei,
imaginando o quão longe ele poderia me deixar ir. ― Isso dói?
― Isso dói o quê?
― Morrer. Quero dizer, suponho que a
primeira vez não seja a mesma que qualquer outra morte. Mas depois disso,
quando você morre para salvar alguém... Dói?
Vincent estudou
minha expressão cuidadosamente antes de responder.
― Tanto quanto se você, como humana, fosse
atingida por um vagão de metrô. Ou asfixiada debaixo de uma pilha de madeira
pegando fogo.
Minha pele se
arrepiou quando tentei imaginar me colocar na pele de algumas pessoas... Ou
revenants... O que seja... Que experimentam a dor da morte não apenas uma vez,
mas repetidamente. Por escolha. Vincent viu meu mal-estar e alcançou minha mão.
Seu toque me acalmou, mas não da maneira sobrenatural.
― Então por que você faz isso? É apenas
sobre ter um demasiado senso de serviço comunitário? Ou reparar seu débito com
o universo por fazer você imortal? Quero dizer, eu respeito o fato de que você
está salvando as vidas das pessoas, mas depois de alguns resgates, por que
apenas não se deixar envelhecer, como Jean-Baptiste, até que finalmente morre
de velhice? ― fiz uma pausa. ― Você morre de velhice?
Ignorando a
minha última pergunta, Vincent se inclinou para mim e disse seriamente, como se
fazendo uma confissão. ― Porque, Kate. É como uma compulsão. É como uma pressão
se acumulando dentro de você até que tenha que fazer alguma coisa para
conseguir alívio. Os “filantrópicos” ou “imortais” motivos não poderiam fazer a
dor e o trauma valerem a pena por si só. É contra a nossa natureza não fazer
isso.
― Então como Jean-Baptiste tem resistido
isso por... o que? Trinta anos direto?
― Quanto mais tempo você é um revenant,
mais fácil consegue resistir. Mas mesmo com um par de séculos no seu currículo,
toma dele uma gigantesca quantidade de autocontrole. Ele tem uma razão
realmente boa, no entanto. Ele não só abriga nosso pequeno clã, mas também
oferece suporte a outros grupos de revenants pelo país. Ele não pode ficar
morrendo direto por aí e ainda gerenciar essa tamanha responsabilidade.
― Tudo bem ―, cedi. ― Entendo que você tem
uma compulsão de morrer. Mas isso não explica por que, entre todas as mortes,
você faz coisas como se jogar no Sena após uma tentativa de suicídio. Você
obviamente não ia morrer com aquilo.
― Você está certa ―, Vincent disse. ― As
ocasiões onde realmente morremos salvando alguém são raras. Uma... Duas vezes
por ano, no máximo.
Geralmente
estamos apenas fazendo coisas como prevenir garotas bonitas de serem esmagadas
por desmoronamentos de prédios.
― Muito suave ―, eu disse, o cutucando. ―
Mas isso é exatamente o que quero dizer. Onde está a recompensa nisso? Isso é
uma compulsão também?
Vincent pareceu
desconfortável.
― O que? Essa é uma pergunta válida.
Estamos falando ainda do século vinte e um aqui ―, eu disse defensivamente.
― Sim, mas estamos indo um pouco além da
pergunta original. ― Enquanto ele estudava minha teimosa expressão, seu celular
tocou.
― Ufa, salvo pelo gongo ―, disse, piscando
para mim enquanto atendia. Escutei uma voz aguda e apavorada vindo do outro
lado da linha. ― Jean-Baptiste está com você? Bom. Apenas tente se acalmar
Charlotte ―, suavizou. ― Estarei logo aí.
Vincent pegou
sua carteira e deixou uns trocados na mesa. ― É uma emergência familiar. Tenho
que ir ajudar.
― Não posso ir com você?
Ele balançou a
cabeça quando nos levantamos para sair. ― Não. Houve um acidente. Deve estar um
pouco ― ele parou, pesando suas palavras ―, bagunçado.
― Quem?
― Charles.
― E Charlotte está lá com ele? Vincent
assentiu.
― Então quero ir. Ela soou triste. Posso
ajudá-la enquanto você toma conta do... Do que quer que seja que você precisa
fazer.
Ele olhou para o
céu, como se esperando por uma ajuda divina para poder explicar as coisas para
mim. ― Isso não é como as coisas geralmente são. Como eu estava dizendo ―
normalmente morremos por alguém apenas uma vez ou duas por ano. Foi uma
casualidade que Jules e Ambrose tenham morrido justamente quando você e eu
começamos a sair.
Nós alcançamos a
moto. Vincent a destrancou e colocou o capacete.
― Essa é a sua vida, certo? E você
prometeu não esconder coisas de mim. Então, talvez, isso seja algo em que eu
pudesse ver para saber o que sair com revenants verdadeiramente significa. ―
Uma pequena voz dentro de mim estava me dizendo para desistir, para ir para
casa e ficar fora dos negócios “familiares” de Vincent. Eu a ignorei.
Ele tocou o meu
maxilar teimosamente cerrado com um dedo. ― Kate, eu realmente não quero que
você venha. Mas se insiste, não vou te impedir.
Esperava que
levasse mais tempo antes de você ter que ver o pior disso, mas você está certa
― não devo esconder de você a nossa realidade.
Colocando meu
capacete, me prendi atrás dele na moto. Vincent deu a partida na ignição e
dirigiu em direção ao rio. Passamos pela torre Eiffel e estacionamos em um
pequeno parque em frente à ponte Grenelle. Conhecia o lugar por que era o ponto
final para os barcos turísticos antes de partirem de volta para o centro de
Paris.
Um dos barcos
turísticos estava ancorado na margem do rio e, na frente, uma inquieta multidão
observava do lado de fora de uma barreira policial de proteção. Duas
ambulâncias e um caminhão de bombeiro estavam estacionados no gramado próximo
ao rio, suas luzes piscando.
Vincent apoiou a
moto em uma árvore sem se preocupar em trancá-la e, segurando a minha mão,
jogou a faixa para cima para falar com um policial parado atrás dela. ― Sou da
família ―, disse ao homem, que não se moveu, mas olhou de relance, questionando
o seu superior.
― Deixe-o passar. Ele é meu sobrinho ―,
veio uma voz familiar, e Jean-Baptiste caminhou por um grupo de paramédicos e
empurrou a barreira para o lado para nos deixar passar. Vincent manteve seu
braço envolvido firmemente ao redor da minha cintura, mostrando ser óbvio que
eu estava com ele.
Agora que
tínhamos uma visão desobstruída, vi três corpos na beira do rio. Um estava a
uma boa distância dos outros. Era um garotinho, provavelmente de cinco ou seis
anos de idade, e estava deitado em uma maca, envolvido com um cobertor. Uma
mulher sentada perto da sua cabeça, chorando silenciosamente enquanto esfregava
seu cabelo molhado com uma toalha. Após um momento, dois paramédicos, que
acompanhavam sua forma pequena e trêmula, o ajudaram a se levantar a uma
posição sentada de costas para os outros dois corpos, enquanto faziam a ele e a
mulher perguntas. Ele estava claramente bem.
Diferente do
corpo estendido a poucos metros de distância. Era uma garotinha, provavelmente
da mesma idade que o garoto. A cabeça deitada numa poça de sangue. Uma mulher
perturbada sentada próxima a ela, gritando ininteligivelmente.
Oh não, pensei,
Não sei se vou ser capaz de aguentar isso. Levou toda a minha força para ficar
calma e não cair em lágrimas eu mesma. Eu sabia que não poderia servir de ajuda
se eu começasse a perder isso.
E finalmente, a
três metros de distância, estava o terceiro corpo ― esse adulto. Não conseguia
dizer se era um homem ou uma mulher, pois a face estava coberta de sangue. Um
cobertor de emergência foi colocado em cima do corpo, que nem de longe estava
precisando disso para se aquecer. Eles devem estar escondendo alguma coisa
ensanguentada, pensei, e então meus olhos se fixaram na garota ajoelhada
próxima a ele.
Ao contrário dos
outros sobreviventes, Charlotte não estava histérica. Estava chorando
amargamente, mas sua linguagem corporal comunicou derrota ao invés de choque.
Suas mãos estavam no topo do cobertor, pressionando o cadáver do seu irmão,
como se estivesse tentando impedi-lo de sair voando pelo ar. Ela olhou ao redor
quando Vincent chamou seu nome e, nos vendo, levantou-se.
― Vai ficar tudo bem, Charlotte ―, Vincent
sussurrou uma vez que seus braços estavam ao redor dela. ― Eu sei que vai.
― Eu sei ―, ela soluçou ―, Mas isso não
torna mais fácil...
― Shh ―, Vincent a cortou, a segurando
contra ele num poderoso abraço antes de deixá-la ir e a entregando gentilmente
para mim. ― Kate veio para ficar com você. Ela pode te levar para casa em um
táxi agora se você quiser.
― Não ―,
Charlotte balançou a cabeça, ao mesmo tempo alcançando minha mão como se fosse
uma rede de segurança. ― Vou esperar até que vocês rapazes o coloquem na
ambulância.
Vincent se virou
para mim. Você ficará bem? Murmurou. Eu assenti, e ele nos deixou ao caminhar
em direção a Jean-Baptiste. Os dois homens se aproximaram da terceira
ambulância que tinha acabado de chegar. Ambrose saiu do lado do passageiro da
cabine, parecendo tão forte e saudável quanto um modelo de um panfleto de
academia.
Charlotte tinha
sentado de novo no chão e estava correndo sua mão sobre o cobertor de Charles,
como se tentando aquecê-lo com a fricção. ― Então ―, eu disse gentilmente ―, Se
você não quiser fala sobre isso, apenas diga. Mas o que aconteceu?
Ela exalou
profundamente, seu rosto contorcido, me dando uma noção do que ela poderia
parecer se estivesse em sua verdadeira idade. Ela levantou uma mão tremula e
apontou na direção do deserto barco turístico. ― O barco. Estava alugado para
uma festa de aniversário infantil. Charles e eu estávamos andando nas
proximidades, com Gaspard volante, e ele nos deixou saber antes das duas
crianças caírem. Charles pulou e alcançou o garoto logo depois que ele afundou.
E nadou com ele até a costa para mim, onde fiz boca-a-boca na criança. E então
ele voltou para a menininha quando foi puxada para baixo. Ele tentou pegá-la,
mas a hélice a pegou primeiro. E então o pegou também.
Sua voz estava
entorpecida enquanto recontava a história, mas assim que terminou, começou a
chorar levemente de novo, seus ombros balançando contra o meu braço. Senti
lágrimas escorrerem dos meus olhos e me reprimi duramente. Controle-se, pensei.
Charlotte não precisa de mim chorando junto com ela.
Olhei para baixo
na direção da margem da água, onde dois mergulhadores de polícia emergiram. O
paramédico parado próximo a Ambrose os notou também e andou rapidamente na direção
deles. Não foi até que ele chegasse a poucos passos de distância e eles
segurarem um objeto na direção dele que eu comecei a adivinhar o que estava
acontecendo.
Charlotte sentiu
meu corpo tenso e olhou para cima na direção dos mergulhadores. ― Oh, bom. Eles
encontraram ―, ela disse calmamente, enquanto o paramédico alcançava a sacola
de plástico, metade cheia de água ensanguentada.
Não consegui
parar as lágrimas dessa vez e, apesar do borrão, vi o que estava dentro. Meu corpo
ficou entorpecido e a respiração deixou meus pulmões tão violentamente quanto
se eu tivesse sido chutada no estômago. Na sacola estava um braço humano.
21
Quando os
paramédicos ziparam Charles em um saco de corpo que eu perdi a batalha.
Enquanto assistia, o saco de corpo se replicou e lá estavam dois. E agora eram
meus próprios pais que eu estavaolhando nos sacos, meu corpo voou para o outro
lado do Atlântico e de volta no tempo para o necrotério da cidade de Nova York
em menos de um ano atrás.
Eles nem ao
menos podiam me mostrar meu pai. Mas eu tinha insistido em ver a minha mãe,
que, com “apenas” um pescoço quebrado, foi julgada mais apresentável que meu
mutilado pai. E agora eu estava de volta nessa sala, encarando as unhas
coloridas de coral nos pés nus da minha mãe. Geórgia próxima a mim chorando
enquanto eu arrancava fios do meu cabelo e os trançava com os da minha mãe. Eu
sabia que ela seria cremada e queria parte de mim para acompanhá-la. Naquele
pensamento, minhas memórias vieram ao fim, mas eu fiquei na cena, relutante em
deixar minha mãe no ofuscante quarto branco.
― Kate, Kate? ― mãos fortes me viraram até
que o rosto de Vincent estivesse a centímetros do meu. ― Você está bem?
Assenti,
atordoada.
― Por que você não vai à ambulância? Eu
vou levar a moto para casa e te encontro lá.
Assenti de novo
e tentei para me manter firme quando me encravei entre Charlotte e o motorista
na cabine do veículo.
Quando nós
chegamos à casa de Jean-Baptiste, Jeanne nos encontrou na porta da frente. Ela
levou Charlotte para longe de mim, a encaminhando escada acima para o seu
quarto de uma maneira familiar que deixou claro que eles tinham passado por
isso antes. Pela janela do corredor, vi Jean-Baptiste segurar um maço de notas
para o motorista da ambulância enquanto Jules carregava o pesado saco de corpo
pela porta da frente e gentilmente colocando-o no chão. Consegui ir até o
quarto do Vincent oscilando em meu caminho, onde me joguei de bruços na cama e
me deixei chorar.
Eu sabia que não
estava chorando pela morte de Charles. Aquilo tinha apenas me desligado. Ou me
jogado de volta ao passado, mais assim. E agora eu me sentia empoleirada na
borda do mesmo abismo que eu tinha conseguido me arrastar para longe poucos
meses antes. Senti a irresistível tentação de me inclinar para frente, apenas
um centímetro, e me deixar cair de cabeça ao longo da reconfortante escuridão.
O pensamento de deixar a minha mente largar o meu corpo para trás era
tentadora. Não iria ao menos precisar estar ao redor para limpar a bagunça.
Alguém se sentou
na cama, mas mantive meu rosto enterrado no travesseiro. A aquecida voz de
Vincent veio de cima de mim. ― Está tudo bem, Kate. Eu sei que é muito difícil
ver algo como aquilo e eu gostaria que você não tivesse visto. Você só tem que
se lembrar de que aquilo não é real ― mortal ― morte. E aquilo é por uma razão.
Charles salvou a vida de um garotinho dando a sua própria. Temporariamente.
Suas palavras
entraram em meus ouvidos, mas não pararam em meu cérebro. Eu não podia
processar o que ele estava dizendo. Aquilo somente não fazia sentido de acordo
com tudo o que eu já tinha aprendido ou experimentado na vida. Não conseguia
apenas cortar meus sentimentos fora, sabendo que alguém estava mutilado por uma
hélice de um barco ― mesmo que só estivesse “temporariamente” morto. ― Charles
está.. ―, comecei.
― Todo mundo
está bem. O corpo do Charles está de volta ao seu quarto. Ele estará em
perfeita forma em poucos dias. Charlotte está bem agora que o tem de volta aqui
em casa e pode observá-lo se curar. ― Ele parou. ― Você é a única com quem
estou preocupado.
Tentei peneirar
tudo o que tinha visto e o que ele tinha dito para pensar sobre aquilo
racionalmente, mas tudo dentro de mim rejeitou isso. Deslizei para longe dele e
tirei minha mão da sua. Não conseguia olhá-lo.
― Como você consegue viver desse jeito? ―
perguntei finalmente, minha voz vacilante.
― Bem, eu tive um longo tempo para me
acostumar ―, disse, mordendo o lábio inferior.
― Exatamente quanto tempo? ― minha voz
soou vazia. Sabia que Vincent tinha estado guardando coisas de mim por alguma
razão, mas me ressenti com o fato de que ainda sabia tão pouco sobre ele.
― Você quer escutar isso agora? ―
perguntou, e suspirou.
― Eu tenho que escutar isso agora ―,
respondi calmamente.
― Eu nasci em 1924.
Fiz a conta. ―
Você tem oitenta e sete anos.
― Não, eu tenho dezenove. Morri em 1942,
quando tinha dezoito. Passou-se um ano desde que morri resgatando alguém, então
tenho dezenove agora. E o mais velho que já fui foi vinte e três. Nunca fui
casado. Nunca tive filhos. Nunca experimentei qualquer coisa que pudesse fazer
eu me sentir muito mais velho do que sou agora.
― Mas você tem visto oitenta e sete anos
se passarem. Você já teve oitenta e sete anos de vida.
― Se isso é o que você chama de vida. ―
Ele disse, balançando a cabeça. ― É mais um compromisso. Começo a agir como um
anjo da guarda com desejo de morte e em troca consigo uma certa versão de
imortalidade.
― Sua
voz estava tingida
com algo um
pouco abaixo da
amargura.
Arrependimento,
talvez.
Ele tentou
sorrir, e então me olhou suplicante. ― Por favor, Kate. Isso pode ser verdade o
suficiente para dizer por agora? Esse tem sido um dia difícil o bastante para
você sem eu chateando-a com mais ficção científica. Concordei. Ele correu seus
dedos pelo meu cabelo e colocou um punhado solto para trás, prendendo-o atrás
da minha orelha. Estremeci ao seu toque. ― O que foi Kate? Por favor, fale
comigo.
Meus pensamentos
voaram em dúzias de direções diferentes. Finalmente, eu o olhei de frente, me
armando para dizer as difíceis palavras.
― Tenho que ser honesta. Nunca me senti
desse jeito antes. Nunca...
― meus olhos vasculharam o teto por algo
que pudesse me dar coragem para continuar, e achando nada, suspirei
profundamente antes de encontrar o seu olhar. ― Nunca senti algo forte por
alguém. E se continuar a deixar eu me sentir desse jeito por você...
O rosto de
Vincent estava sereno, mas seus olhos estavam cheios de tormenta enquanto
esperava pelo meu veredito, que ele sabia que estava vindo.
Eu me forcei a
continuar.
― Não consigo imaginar tendo que viver com
o que aconteceu hoje como base regular. E quando for a sua vez será ainda pior,
não posso suportar a idéia de ver você morrer de novo e de novo. Isso lembra
muito a morte dos meus pais.
Engasguei com
minhas palavras e comecei a chorar, e Vincent se moveu na minha direção, mas
segurei uma mão no alto para impedi-lo. ― Se fosse para acabar amando você, eu
não conseguiria viver desse jeito. Em constante agonia. Sabendo que você
estaria indo ser ressuscitado, ou o que quer que seja isso que você faz depois,
não seria o suficiente ter uma vida através da sua morte repetidas vezes. Você
não pode me pedir para fazer isso. Eu não posso fazer isso.
Girei
abruptamente em meus pés, limpando as lágrimas para longe, e tropecei em
direção à porta. Ele me seguiu silenciosamente pelo corredor até o hall de
entrada e ficou imóvel quando peguei o meu casaco do banco e comecei a lutar
com a maçaneta da porta. Vincent a abriu para mim e, colocando uma mão em meu
ombro, gentilmente me virou de frente para ele.
― Kate, por favor, olhe para mim. ― eu não
conseguia levantar meus olhos para o seu rosto. ― Eu entendo ―, ele disse.
Finalmente,
olhei para cima e sustentei o seu olhar. Seus olhos estavam ocos. Vazios. ―
Sinto muito pela dor que te causei ―, ele sussurrou e deixou cair sua mão do
meu ombro.
Eu me virei para
ir enquanto ainda tinha forças para deixá-lo e, quando o portão se fechou atrás
de mim, comecei a correr.
22
Consegui chegar
ao meu quarto sem ver meus avós ou Geórgia, e me fechei dentro dele. Quando me
enrolei num canto da minha cama, o tempo pareceu parar e permaneceu assim. Eu
me senti despedaçada entre a certeza de ter feito a coisa certa e a incomoda
dúvida que no espaço de dez minutos eu tinha arruinado qualquer chance de poder
ter tido um futuro brilhante e esperançoso. De amor.
Embora eu não o
conhecesse há muito tempo, sabia que se as coisas continuassem do jeito que
vinham sendo, eu poderia ter me apaixonado por Vincent. Não havia dúvidas
disso. E se isso era só o começo, eu sabia que não seria apenas um romance
passageiro. Meu coração poderia ser varrido. Eu estava certa disso.
E sentindo isso
sobre ele, não podia arriscar a dor de vê-lo várias vezes lesionado, morto ou
até mesmo destruído. Ele tinha dito que é possível: Sua imortalidade tinha seus
limites. Após perder mamãe e papai, recusei perder outra pessoa que eu amava.
O antigo ditado
estava em sentido contrário, deveria ser “Melhor não ter amado em tudo, do que
ter amado e perdido.” Eu tinha feito a coisa certa, me assegurei. Então por que
parecia que eu tinha cometido o maior erro da minha vida?
Eu me envolvi
num casulo de cobertor e avancei mais profundamente na minha miséria. Deixei a
dor me consumir. Merecia isso. Nunca deveria ter me aberto.
Horas depois,
vovó bateu para me dizer que estava na hora do jantar. Levei um segundo para
recompor a minha voz e então gritei ―, Sem fome, vovó. Obrigada! ― poucos
minutos depois escutei uma gentil batida na porta.
― Nós podemos entrar? ― A voz de Geórgia
veio do outro lado, e sem esperar por uma resposta, minha irmã e minha avó,
cautelosamente, na ponta
dos pés,
entraram no quarto. Sentando em ambos os lados de mim, elas colocaram seus
braços ao meu redor e esperaram.
― É sobre mamãe e papai? ― Geórgia
finalmente perguntou.
― Não, por uma vez isso não é sobre mamãe
e papai ―, gaguejei, meio sorrindo ―, pelo menos, não só sobre mamãe e papai.
― É o Vincent? ― perguntou.
Assenti em
lágrimas.
― Esse... Vincent ― senti vovó e Geórgia
olharem uma para outra por cima da minha cabeça ―, fez alguma coisa para
machucar você? ― vovó disse, correndo seus dedos ao longo das minhas costas.
― Não, fui eu. Apenas não consigo... ―
Como possivelmente eu ia explicar isso a elas? ― Não posso me deixar aproximar
dele. Isso parece muito arriscado.
― Sei o que quer dizer ―, Geórgia disse. ―
Você está com medo de amar alguém de novo. No caso deles desaparecerem também.
Coloquei a
cabeça no ombro de vovó e respirei ―, É muito complicado.
Alisando meu
cabelo com a sua mão e plantando um beijo no topo da minha cabeça, ela
respondeu calmamente ―, Isso sempre é.
Comprei uma
sacola cheia de livros na livraria English e depois me retirei para a escura
caverna do meu quarto, dizendo a vovó que eu estaria “hibernando” pelo final de
semana. Ela entendeu e, depois de deixar uma bandeja com água, chá, frutas e
uma seleção de queijos e biscoitos na minha cômoda, me deixou sozinha.
Passei o resto
do dia dentro da história de outra pessoa. Nos raros momentos em que deixei o
livro de lado, minha própria dor retornou em punhaladas ardentes. Eu me senti
como o alvo da faca circense do atirador. Se eu segurasse minha mente imóvel,
poderia evitar ser atingida pelas lâminas que passavam a toda velocidade pela
minha cabeça. De tempos em tempos eu adormecia, mas era imediatamente acordada
pelos sonhos sombrios e torturantes que, uma vez que eu acordava, se dissolviam
sem deixar rastros.
Não podia me
conter em olhar sobre o ombro as vezes, me perguntando se iria ver Vincent a
espreita nas sombras. Ele vem me ver quando é volante? Eu me perguntei. Ele
podia estar flutuando ao redor do meu quarto por tudo o que eu sabia. Ou talvez
não. Talvez esse fosse o caso de “fora de vista, fora da mente” para ele, e
minha explosão tivesse sido efetiva o suficiente para pará-lo de tentar me ver
de novo. Isso era o que eu queria, disse a mim mesma. Não era?
Se eu me
deixasse pensar, isso poderia ser o fim. Então desconectei meu cérebro e deixei
meu corpo seguir sem uma mente para dirigi-lo. Com tudo, parecia que eu estava
o retirando. Podia viver sem ele. Eu era autônoma. Autossuficiente. Talvez eu
não estivesse feliz, mas não estava triste. Eu estava apenas... Ali.
A escola era um
bem-vindo alívio. Isso ajudou os dias a passarem em uma entorpecida monotonia.
Finalmente, retornando para casa um dia, me dei conta em um choque de clareza
que mal se tinha passado duas semanas desde que deixei Vincent parado na sua
porta de entrada. Isso tinha parecido como meses. Tinha estado me parabenizando
por ter completado uma maratona quando mal tinha passado a linha de partida.
Quando subi as
escadas do metrô da minha rua, fui surpreendida ao ver uma figura apoiada em
uma cabine telefônica próxima. Era Charlotte. Quando ela me viu, seu belo rosto
se iluminou. ― Kate! ― gritou, pulando e se inclinando para me beijar em ambas
as bochechas.
― Charlotte. Que surpresa! ― sorri,
olhando de relance ao redor, curiosamente para ver se ela estava com outra
pessoa.
― Esperando Charles. E aqui está ele ―,
ela disse, seus olhos fixando nas escadas do metrô atrás de mim.
Charles caminhou
até nós, todos os seus membros intactos, parecendo mais saudável que nunca e em
um mais negro humor. Ele fez uma careta quando me viu. ― O que a humana está
fazendo aqui? ― perguntou.
― Um, tenho um nome. E para responder a
sua pergunta, eu moro aqui ―, respondi defensivamente. ― Você não é a única
pessoa em Paris que usa
a rua du Bac
Métro.
― Não, quero dizer, o que você está
fazendo aqui com Charlotte?
― Apenas esbarrei nela. Acidentalmente. ―
Por que estou inventando desculpas para esse desagradável adolescente? Eu me
perguntei, aborrecida comigo mesma.
― Pensei que desde que você abandonou
Vincent, nós não iríamos nunca mais te ver de novo.
― Bem ―, eu disse, passando um sorriso
falso pelo meu rosto ―, Aqui estou. Então, Charlotte, foi bom te ver. Tenho que
ir.
Eu me virei para
ir embora, mas Charles gritou atrás de mim. ― Você apenas não pode obter o
bastante de nós caras mortos, huh? O que quer agora? Quer que salvemos a sua
vida de novo? Ou está indo nos levar para uma armadilha mortal como fez com
Ambrose?
― Do que você está falando? ― gritei,
fuzilando seu rosto.
― Nada, não estou falando nada. Apenas
esqueça que eu algum dia disse uma palavra ―, cuspiu. Colocando as mãos nos
bolsos do jeans, se virou e, desengonçado, foi embora. Charlotte olhou para mim
se desculpando.
― Sobre o que foi isso? O que eu fiz? ―
ofeguei.
― Nada, Kate. Você não fez coisa alguma.
Não se preocupe, é tudo problema do Charles.
― Bem, então por que ele me atacou desse
jeito? ― eu ainda estava sem reação pelo choque.
― Hey, você quer andar até o rio? ―
perguntou, ignorando a minha pergunta. ― Eu estava meio que esperando esbarrar
em você em algum momento, sendo que somos vizinhas e tudo. Não que eu não tenha
te visto por aí, claro. Só não achei que era apropriado correr rua abaixo até
você.
― Não me diga que você estava me seguindo
―, disse, meio brincando. Charlotte não respondeu, mas sorriu para mim como um
gato.
― O que? Você tem me seguido?
― Não se preocupe, Vincent não me pediu
nada. É só que seguir pessoas é o que fazemos e quando estamos sem o que fazer,
é difícil não seguir pessoas que nos interessam.
― Eu interesso a você?
― Sim.
― Por quê?
― Vejamos. Bem, você é a primeira garota
que Vincent se apaixonou desde que se tornou um revenant. O que já te qualifica
como fascinante para
o resto de nós.
― Eu não posso falar sobre... ele ―,
comecei a protestar.
― Ok. Iremos evitar o tópico Vincent
completamente. Prometo.
― Obrigada.
― Você também me interessa porque... ―
pela primeira vez, ela pareceu mais jovem que seu corpo de quinze anos. ― Eu
tinha meio que esperado que você fosse uma amiga. Antes de partir, é claro. É
um pouco solitário sair com rapazes o tempo todo. Felizmente, Jeanne está lá ou
eu provavelmente estaria perdida.
Minha expressão
deve ter sido zombeteira, pois ela rapidamente foi se explicar. ― Não é como se
eu pudesse sair e fazer amizade com qualquer humano. Eles não iriam entender.
Mas desde que você já conhece o que nós somos...
Eu gentilmente a
cortei. ― Charlotte, estou extremamente lisonjeada que você queira ser minha
amiga. Eu realmente gosto de você, também. Mas ainda estou muito chateada sobre
Vincent e, se eu sair com você e encontrarmos com ele, isso seria muito difícil
para mim.
Ela desviou o
olhar e assentiu desinteressadamente, como se já tivesse se afastando de mim.
― Pensei que você saía com Charles a maior
parte do tempo ―, disse.
― Oh, ele está por conta própria muito
ultimamente ―, ela disse, tentando soar superficial, mas não conseguindo muito
bem. Sua voz tremeu quando continuou ―, Então, recentemente, tenho me
encontrado um pouco mais sozinha do que estou acostumada. ― Sua intenção de
parecer corajosa foi arruinada por uma lágrima que notei escorrendo por sua
bochecha quando ela se virou para longe.
― Espere! ― eu disse, pegando sua mão e a
puxando de volta para me
olhar.
Encarando o
chão, ela afastou outra lágrima. ― Me desculpe. Só que as coisas têm estado um
pouco... Difíceis ultimamente.
Acho que não sou
a única com problemas, disse a mim mesma, minha determinação ficou em ruínas
quando vi a tristeza em seu rosto. ― Está bem, sim. Vamos andar até o rio. ―
Seus olhos vazios encontraram os meus e ela conseguiu uma sombra de um sorriso
quando pegou o meu braço e nós andamos rua abaixo juntas.
A medida que nos
aproximávamos da água, apontei para uma loja antiga de taxidermia19. ― Minha
mãe e eu costumávamos ir lá sempre ―, disse. ―
É como um zoológico, exceto que todos os
animais estão mortos. Agora mal posso passar por ali sem pensar em mamãe. Nem me atrevo a
entrar, no caso
de ter um
colapso bem no meio de todos os esquilos de pelúcia.
Charlotte riu ―
a resposta que eu estava esperando. ― É assim que eu
me sentia após
meus pais terem morrido. Tudo me lembrava eles. Paris pareceu como uma cidade
fantasma para mim por anos depois ―, ela disse, enquanto descíamos os degraus
para o cais.
19 Taxidermia é
a arte de conservar ou reproduzir animais mortos para exibição ou estudo.
― Seus pais morreram? Quero dizer, antes
de você? ― perguntei, o buraco no meu coração começando a doer de novo. Nós
começamos a passear por uma longa linha de casas flutuantes que estavam
ancoradas na margem do rio.
Charlotte
assentiu. ― Foi na Segunda Guerra Mundial. Durante a Ocupação. Meus pais
dirigiam uma imprensa clandestina dentro do nosso apartamento, próxima ao
Sorbonne, onde meu pai ensinava. Os alemães encontraram e atiraram neles.
Charles e eu estávamos na casa da nossa tia aquela noite, ou eles provavelmente
teriam nos matado também.
― Nós estávamos orgulhosos dos nossos pais
e quisemos continuar seus passos. Então, quando começamos a ouvir sobre as
rondas... ― Ela parou, então explicou ―, Quando a polícia rondava os judeus
para mandá-los para os campos de concentração. ― Eu assenti para mostrar a ela
que entendi, e ela continuou ―, Nós escondemos alguns amigos da escola e seus
pais em nosso apartamento, num quarto com uma parede falsa, onde a imprensa
tinha sido ocultada. Garantimos suprimentos suficientes para alimentar e vestir
nós seis por mais de um ano antes de um vizinho pegar e nos reportar. Parei no
lugar. ― Quem poderia fazer uma coisa dessas? ― disse horrorizada.
Ela encolheu os
ombros e continuou, pegando meu braço e forçando eu me mover de novo. ― Nós
éramos capazes de levar a família em segurança
para outro
esconderijo, mas Charles e eu fomos pegos no dia seguinte e baleados.
― Mal posso acreditar que isso aconteceu
aqui em Paris.
Charlotte
assentiu. ― Eles dizem que trinta mil de nós “resistentes” foram fuzilados
durante o período da Ocupação. Pelo menos, esse é o número oficial. Alguns eram
na verdade infratores da lei. Mas outros eram espectadores inocentes que foram
levados como reféns e assassinados para vingar os atos de seus compatriotas
resistentes.
― Isso foi tão corajoso da sua parte e de
Charles, ajudar aquela família.
― Bem, você não teria feito a mesma coisa?
Como poderíamos ter agido diferente?
Nós nos
aproximamos de um banco de pedra e sentamos.
― Não sei ―, Respondi, finalmente. ― Gostaria
de esperar que eu tivesse agido como você agiu. Mas deve haver pouquíssimas
pessoas que são realmente corajosas. Talvez seja por isso que você tenha se
tornado uma deles. Quero dizer, uma revenant ―, disse.
― Isso é o que Jean-Baptiste pensa. Que
salvar vidas estava programado para nós. Que isso veio naturalmente. Quem sabe?
― Ela fez uma pausa, pensativa. ― O que eu sei é que, agora que posso poupar
outros da dor que passei quando meus pais foram mortos ― salvando vidas ― isso
torna o trauma contínuo da nossa existência mais fácil de suportar.
Concordei e
fiquei assistindo enquanto ela distraidamente cutucava as unhas. ― Então, o que
está acontecendo com Charles? ― perguntei, finalmente.
― É tudo parte da mesma história ―, disse.
― Ele tem tido um tempo difícil lidando com o seu fracasso em salvar a vida
daquela garotinha, no acidente de barco. Durante as duas últimas semanas, ele
tem estado... ― Pareceu como se ela estivesse pesando o quanto me contar e
esclarecer ―,
...obcecado com
isso.
― Ele vai superar com o tempo? ―
perguntei.
Ela deu de
ombros. ― Finalmente contei a Jean-Baptiste sobre isso esta manhã. Ele vai ter
uma conversa com Charles.
― Talvez isso vá
ajudar ―, ofereci.
Ela balançou a
cabeça, como se não estivesse convencida. ― Vamos mudar de assunto.
― Certo ―,
disse, procurando um novo tópico de conversação. ― Então, o que é tão ruim em
viver numa casa cheia de homens gatos? Excluindo Gaspard e Jean-Baptiste, digo,
acho que poderiam ser chamados de “gatos” de um jeito próprio... ― parei.
Ela caiu na
gargalhada. ― Definitivamente não gatos ―, concordou. ― Há tanta testosterona
espalhada pelo ar que estou surpresa de não ter crescido um bigode em mim
apenas por respirá-lo!
Agora era a
minha vez de rir. Isso pareceu estranho para mim, como se de repente eu
estivesse falando chinês. Não pareceu natural, mas tampouco pareceu ruim.
Charlotte me
atirou um torto sorriso, orgulhosa de ter quebrado minha armadura. ―
Honestamente ―, ela admitiu ―, Eles são todos como uma família para mim. Nós
temos vividos juntos por décadas.
― Os revenants fora do nosso campo têm que
constantemente se recolocarem para que as pessoas locais não os reconheçam uma
vez que
tenham morrido
salvando alguém. Estão sempre mudando de uma das casas de campo de Jean-Baptiste
para outra. Isso atende a eles bem, mas eu não conseguiria fazer isso. Esses
homens são toda a família que consegui e eu não conseguiria nunca deixá-los.
― Você alguma vez... ― parei, incerta de
quão invasiva minha pergunta poderia ser.
― O quê? ― Charlotte perguntou, intrigada.
― Você tem um namorado?
Charlotte
suspirou. ― Seria apenas tão difícil ter um namorado quanto é ter amigas. Acho
que no início eu poderia inventar desculpas por desaparecer três dias todo mês,
mas não iria funcionar por muito tempo. E então desaparecer por alguns dias
toda vez que morresse. Não, isso apenas não daria certo. E eu não arrumo
relações casuais como Jules e Ambrose fazem. Quando eu me apaixono, isso gruda.
― Então você já
esteve apaixonada antes?
Ela ruborizou e
olhou para as mãos abaixo. ― Sim. Mas ele não... ele não se sentia da mesma
forma. ― Suas palavras eram quase inaudíveis.
― Então por que
não namorar um revenant?
Ela se inclinou
para frente, um triste sorriso se formando nos lábios quando envolveu os braços
em torno de si mesma e olhou à distância sobre a água. ― Não existem muitos de
nós ao redor, então as opções são bastante limitadas.
Não sabia como
responder, então peguei a sua mão e dei nela um aperto encorajador, ela sorriu,
e então disse ―, É melhor eu voltar para casa. Para Charles. Obrigada pela
conversa. Não posso dizer a você quão legal é sair com uma garota.
Eu me senti da
mesma forma. Não tinha feito amigos aqui em Paris. E mesmo que isso significasse passar um
tempo com alguém que era praticamente um membro da família de Vincent, tive que
admitir que realmente eu tinha gostado de estar com Charlotte. ― Nós faremos
isso de novo ―, Prometi.
Se você é amiga
da Charlotte, será obrigada a passar por Vincent em algum momento ou outro, uma
pequena voz em minha cabeça me cutucou. Oh, cala boca, disse, me perguntando se
a dor em meu coração iria alguma vez diminuir. Tinha que diminuir, decidi.
Quanto mais tempo passava longe de Vincent, melhor eu me sentiria. Estava certa
disso.
23
O invés de
melhorar, na semana seguinte eu me senti ainda pior, e na sexta-feira um
rastejante desespero começou a me engolir quando me dei conta de que o final de
semana inteiro se estendia a frente sem uma única atividade planejada como
distração.
No almoço, liguei
meu celular para ver minhas mensagens diárias de Geórgia:
Você já viu o
equipamento de você-sabe-quem?
Cálculo é uma
droga.
Saindo hoje à
noite, quer vir?
Hesitei, e então
me forcei a responder a última mensagem:
Onde?
Ela me escreveu
de volta imediatamente:
Encontro você
depois da escola.
Às quatro horas,
Geórgia estava esperando por mim no portão vestindo uma expressão de pura
surpresa. ― Sem chance, Katie-Bean... Você vai sair de verdade comigo hoje à
noite?
― Depende ―, disse alegremente, tentando
não soar tão desesperada quanto me sentia. ― Onde você vai?
― Há uma festa dance nessa boate
underground. O dono é muito amigo meu. ― Ela mostrou um sorriso malicioso.
Minha irmã, a incorrigível flerteira. ― Sério, é um lugar muito legal, naquele
labirinto de adegas antigas que fica embaixo de um par de prédios próximos a
Oberkampf. Está sempre cheio de músicos e artistas, você vai amar.
Embora meu
coração não estivesse afim de boates, essa era minha única oferta para o final
de semana. Na verdade, para o mês, se eu fosse realista. ― Estou dentro ―,
Disse. ― A que horas você vai sair?
― Pelas nove.
Pegamos o ônibus
no centro e então mudamos para o metrô. Uma vez na nossa rua eu disse a Geórgia
―, Não estou afim de ir para casa ainda. Acho que vou zanzar por aí. Não saia
sem mim.
― Vou escolher
as roupas ―, ela disse e, sorrindo, se dirigiu para a nossa rua. Eu me virei na
outra direção e fiz meu caminho passando a agitada avenida Saint-German,
flutuando pelas pequenas ruas sinuosas que cruzam a área próxima ao rio.
Em uma esquina
movimentada estava um café com um grande terraço onde minha avó me levava
quando criança para um delicioso tarte tain, uma torta de maça assada com uma
calda caramelizada. O Café foi chamado La Palette , como a paleta de um artista, seu nome
remonta quando ainda era um ponto de encontro de pintores e escultores locais.
Era muito longe de casa para ter escolhido como meu café local, mas com certeza
valia uma visita eventual.
Um vento gélido
soprava nas ruas e o normalmente cheio terraço estava quase deserto. Abri
caminho pela porta da frente para o aquecido e deliciosamente cheiroso café. Um
garçom me chamou a atenção e gesticulou em direção a uma mesa vazia posicionada
num nicho quase escondido atrás da porta da frente. Perfeito. Anonimato era
exatamente o que eu queria hoje.
Sentei, arrumei
minha bolsa de livros debaixo da mesa e comecei a checar a clientela do café
enquanto esperava o garçom retornar. Um grupo de estudantes conversando num
canto. Várias mesas com pessoas de negócios com bebidas ajustadas sobre seus
documentos. Uma mulher de impressionante aparência em seus vinte e poucos anos
sentada sozinha.
Foquei na última
dessas. Cabelo loiro, quase branco, caindo abaixo dos ombros, maçãs do rosto
altas e os olhos azuis claros a faziam parecer vagamente escandinava.
Um homem de
costas para mim se aproximou dela saindo do bar do café. Ele se sentou de
frente para ela, pegou a xícara próxima a dela e tomou o líquido com um
movimento rápido. Então ele alcançou o outro lado para segurar sua mão que
estava deitada delicadamente sobre a mesa.
Ele disse alguma
coisa para ela e o olhar caiu dele para a mesa. Eu vi uma lágrima correr pelo
seu belo rosto e a mão do homem subiu automaticamente para limpá-la de lá. Ele
alisou uma mecha solta de seu cabelo platinado, colocando de volta para trás da
orelha num movimento que eu reconheci.
E com uma súbita
descoberta, meu coração parou. Como se um frio gelado me atravessasse. Agarrei
minha bolsa, e o saleiro de vidro bateu no chão onde se despedaçou com um
barulho alto. Os olhos da mulher voaram para mim, então disse alguma coisa para
a sua companhia.
Ele se virou na
minha direção e então congelou com um olhar de devastação que deformaram seu
lindo rosto. Meus instintos não estavam errados. Era Vincent.
Neste momento o
garçom se materializou na minha frente, segurando uma vassoura e uma pá de
lixo. ― Desculpe ―, Consegui deixar escapar quando peguei meu casaco da cadeira
e o empurrei, tropeçando para fora do café.
Corri todo o
caminho para casa, minha face tão entorpecida que parecia que tinha sido
atingida por dardos de Novocaína20. Eu o deixei, lembrei a mim mesma, não o
contrário. Por que ele não podia ter encontrado outra pessoa?
20 Anestésico
atóxico, sem efeito narcótico, usado principalmente para anestesia local.
O pensamento
seguinte que veio para mim foi que ele poderia ter mentido sobre não ter se
apaixonado por alguém desde seu romance de infância. Ele pode ter estado com a
maravilhosa loira o tempo todo. Meu destruído coração me disse que aquilo
estava errado, no entanto. Vincent não iria mentir para mim. E nem Charlotte,
quando disse que eu era a primeira garota por quem Vincent tinha ficado caído
desde que se tornou um revenant.
Infelizmente,
mesmo admitindo que ele estivesse livre de culpa e que eu era a pessoa que
tinha ido embora, não fez a dor em meu peito doer nem um pouco menos.
Quando cheguei
em casa, fui direto para o quarto da Geórgia e abri a porta sem bater. ― Vamos
―, eu disse sem fôlego. Ela sorriu e ergueu um vestido curto e rendado.
24
Nós saímos pelas
nove de casa e entramos em um carro que nos aguardava do lado de fora. Eu me
espremi no banco traseiro com duas garotas que reconheci da escola, enquanto
Geórgia saltou para o assento do passageiro e deu a um cara maravilhoso que eu
nunca tinha visto um beijinho na boca.
Sabia que esse
era o jeito de Geórgia dizer oi para os caras que ela gostava, então decidi
perguntar por detalhes mais tarde. Ela fez apresentações.
―
Lawrence-britânico, Mags-irlandesa, Ida-sueca, essa é a minha irmã, Kate, que
está na desesperada necessidade de uma boa noitada. Se ela for para casa
chateada, vou me entender com todos os responsáveis pessoalmente. ― Ela
aumentou o rádio, Lawrence dirigiu o carro em direção ao rio, e nós estávamos
fora.
A boate ficava
em um bairro ligeiramente ao lado leste de Paris, em uma área popular entre os
artistas, modelos e músicos que ainda não tiveram seus grandes momentos. Vários
bares da moda surgiram lá nos últimos dois anos e as calçadas estavam lotadas
de grupinhos de pessoas descoladas e tremendo de frio, enquanto fumavam do lado
de fora.
Nós paramos em
frente a um prédio num beco que parecia estremecer como marteladas por causa da
batida da música do lado de dentro. Um porteiro grande estava na porta,
vestindo apenas jeans e um top branco, linhas esticadas firmemente através de
seus impressionantes músculos do peito. Lawrence gritou alguma coisa acima da
estridente música, e o homem escancarou a porta aberta para nos deixar entrar.
O espaço era tão
grande quanto um salão de baile, mas apenas com dois metros e meio de altura.
Uma cabine de DJ ficava num canto, com um bar fluorescente iluminando todo o
comprimento da parede oposta. O lugar era cinzelado de pedras brutas, com
colunas de concreto dispersas, suportando o teto. Enquanto pontos de luz
estabelecidos nos cantos faziam as desiguais paredes da caverna
assustadoramente teatrais.
― Bebidas! ― gritou Geórgia, e nós fomos
na direção do bar. Em um sotaque britânico amanteigado, Lawrence me perguntou o
que eu queria e pegou para nós duas Cocas. ― Motorista designado ―, ele disse,
piscando para mim e sorrindo. Batemos nossos copos num brinde e então viramos
para nos apoiarmos no bar.
― Então, você e Geórgia...? ― Perguntei a
Lawrence, o deixando completar o espaço vazio.
― Não ―, respondeu, seu sorriso crescendo
em suas bochechas com covinhas. ― Eu gosto de homens.
― Entendi ―, Eu disse, bebericando meu
canudo, e voltamos a delimitar o ambiente.
Nunca deixei de
admirar o impecável talento de Geórgia por encontrar o mais novo e quente lugar
para sair. Belas pessoas dançavam no meio da pista, enquanto outras se
misturavam aos redores. Uma jovem atriz famosa sentada num canto, com um bando
de admiradores fingindo não a bajular, esparramada em uma pilha de almofadas
num nicho cravado para fora da parede, vi uma cantora de uma banda britânica da
moda.
Minha irmã ficou
a poucos metros de distância de mim, beijando um cara de aparência de modelo
fotográfico, quando vi uma figura ríspida andando lentamente, mas firmemente
pelo salão em nossa direção. Pessoas o bateram nas costas enquanto fazia seu
caminho através da multidão.
Quando ele
estava a poucos passos de distância, Geórgia pousou seu copo no bar e jogou as
mãos ao ar quando ele a pegou pela cintura.
― Geórgia, minha belle sexy sulista ―, ele
disse, abaixando-a para o chão. Sorri. O fato de que nós nunca tínhamos vivido
no sul era um ponto discutível. Geórgia tinha usado dúzias ou mais de feriados
que passamos no país de origem de mamãe para cultivar um sotaque melado de tal
espessura que Scarlett O’Hara poderia ter trocado sua anágua por ele. Quando
ela estava no clima, usava sua fala arrastada, junto com o seu nome, para
implicar que nós viemos de algum lugar mais “exótico” que o Brooklyn.
Estrangeiros,
pelo menos aqueles que falavam inglês bem o suficiente para notar sotaques,
engoliam tudo.
O homem se
inclinou para dar-lhe um beijo nos lábios. O fato de que esse durou um segundo
a mais que todos os outros que ela esteve concedendo pra lá e pra cá, me fez
suspeitar que esse devia ser alguém especial.
Pegando-o pela
mão, ela o arrastou à minha frente. Finalmente, tendo uma vista desimpedida de
gente, vi que ele era tudo o que Geórgia sempre foi, mas combinado num homem.
Pelo menos um metro e oitenta e cinco, ele parecia uma mistura entre surfista e
jogador de futebol: cabelo loiro todo espalhado e pele bronzeada, mas
suficientemente grande para construir, sozinho, a formação de toda a linha
defensiva de um time de rugby. Seus olhos castanhos eram tão claros e
cristalinos que pareciam caramelo congelado. E o jeito como segurou Geórgia,
como se fosse uma posse, confirmou que eles eram um item.
― Finalmente nos conhecemos! A irmãzinha
da Geórgia, Kate. Ouvi falar de você. Você não me disse que ela era tão bonita,
Geórgia.
Minha irmã falou
lentamente ―, Agora, por que eu deveria fazer uma coisa dessas? ― Virando para
mim, ela disse ―, Kate, esse é Lucien. Ele é o dono da boate.
― Prazer em conhecê-lo ―, disse.
Ele apertou os
ombros de Geórgia e se inclinou para sussurrar alguma coisa em seu ouvido.
Então, se endireitando à sua altura total, fez um sinal ao barman indicando
nosso grupo.
― Doce Geórgia Brown ―, assobiou Lawrence
ao meu lado. ― Bebidas grátis a noite toda. Sua irmã tem o toque mágico.
― Eu sei ―, admiti, quando vi Lucien
beijar a mão da minha irmã antes de deixar ser puxado para longe por um gerente
de aparência frenética.
Enquanto ele
desaparecia pela multidão, sorriu e me deu uma piscadinha.
Um grupo de
rapazes de aspecto desleixado andou pelo local, vindo em nossa direção.
Lawrence se abaixou e disse ―, Banda alerta. Esses caras são o novo grupo mais
quente da cidade.
― Então eles
devem ser amigos da Geórgia ―, suspirei.
Ele sorriu e
assentiu enquanto eles se aproximavam. Um andou direto para a Geórgia e, sem
dizer uma palavra, a puxou para a pista de dança. Ela se esticou e gritou
alguma coisa em sua orelha, e então sorriu para mim quando um dos amigos dele
veio e pegou a minha mão. ― Alex ―, o cara gritou, roçando os longos cabelos em
meus olhos.
Nós dançamos
perto de Geórgia e seu amigo pelas duas músicas seguintes. Os brilhantes olhos
azuis de Alex e seu sorriso flertante definitivamente pegaram meu coração
batendo de novo. O jeito que ele sorria apreciativamente para mim me mostrou
que ele não se importava de ter sido assinalado como o meu “garoto festa”. Ele
era maravilhoso. Era humano. Então por que eu não era capaz de relaxar e me
divertir?
Finalmente, me
inclinei para dizer a Alex que eu estava indo pegar uma bebida. Ele me olhou
pesarosamente e imitou um beijo sexy quando sai. Mentalmente me chutei pela
estupidez, mas sabia que não conseguiria fazer qualquer outra coisa. Não hoje à
noite. Não por um tempo. Não até que o rosto de Vincent deixasse meu dolorido
cérebro em paz.
Lawrence tinha
saído pelo tempo que voltei ao bar, mas, ao me ver, o barman automaticamente
derramou outro copo de coca. Eu o peguei e fui me sentar numa gigante almofada
de couro encostada na parede.
Apoiando-me na
pedra fria, apertei meus olhos enquanto assistia os ondulatórios movimentos da
repleta multidão antes de fechá-los completamente. Deixei a música trabalhar o
transe da batida em meu cérebro. Poucos segundos depois, escutei uma voz baixa
e suave dizer ―, Cansada?
Abrindo meus
olhos, vi que Lucien tinha agarrado uma almofada e estava sentado próximo a
mim. Sorri para ele. Ele não parecia tão agressivo agora que não estava lutando
para se livrar dos muitos agarrões, mas havia uma leve áurea de gelo permanente
pairando sobre ele. Possuindo um dos bares mais modernos da cidade, tinha que
ter um efeito sobre o ego de alguém, disse a mim mesma.
― Não realmente cansada, apenas não no
espírito de dança.
― Então. A irmã da Geórgia tem namorado?
Ok, esse cara é
realmente direto. ― Ah, não ―, disse. ― Não no momento.
― Bem ―, ele disse, esfregando as mãos
para dar efeito. ― Isso é uma boa notícia para os meus amigos!
― Um. Eu... não estou realmente no
mercado.
― Mas também não se oporia a conhecer
pessoas. ― Ele levantou uma espessa sobrancelha loira.
― Na verdade...
Relutante em
ouvir minha resposta, ele se levantou e levou meu copo vazio de volta ao bar,
retornando com um cheio. ― Você terá que vir com Geórgia para a festa que
estarei dando daqui poucas semanas. Todos estarão lá. ― Ele se agachou e me
entregou o copo. ― E você também!
Seu tapinha
brincalhão em meu ombro me deu uma inesperada reação visceral: eu recuei. Do
jeito que seu corpo ficou tenso quando parou, eu podia dizer que ele tinha
notado. O que há de errado com você? Repreendi-me, surpresa pela minha reação.
Ele estava apenas tentando ser amigável ― mas devo estar extremamente sem
prática de interação social. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa para
reparar meu não intencional frio no ombro, ele se virou para falar com alguém
que tinha estado impacientemente esperando pela sua atenção. Bebi minha Coca e
verifiquei meu celular: ainda não era nem ao menos meia-noite.
Ficando em pé,
trancei meu caminho entre os dançarinos até que alcancei Geórgia. Ela me deu um
sorriso preocupado e balancei a cabeça. ― Sinto muito, Geórgia. Só não posso
entrar nessa. Estou indo para casa ―, gritei acima da música, gesticulando em
direção a porta de entrada no caso de não ter conseguido me escutar.
Ela acenou. ―
Você vai ficar bem voltando sozinha? ― Vou pegar um táxi.
Geórgia me deu
um abraço e então disse alguma coisa para o cara com quem estava dançando.
Sorrindo, ele pegou a minha mão e me guiou através da pista para a entrada.
Enquanto eu pegava meu casaco, ele puxou seu celular e pediu um táxi para mim,
andando comigo para rua e esperando comigo até que o táxi chegasse. ― Obrigada
―, agradeci. Ele acenou, já andando de volta para o clube.
Enquanto abria a
porta do táxi, olhei de relance para o beco e vi Lucien do lado de fora falando
em seu celular. Quando ele olhou para cima e pegou o meu olhar, levantei minha
mão para acenar um tchau. Ele me atirou um sorriso confiante e saldou.
Um garoto magro
de cabelo avermelhado que estava com ele virou-se para ver para quem Lucien
estava acenando, mas rapidamente desviou o olhar.
Respirei
avidamente e continuei a encarar enquanto o carro ia embora. Um segundo tinha
sido o suficiente para reconhecer o garoto com um olhar amargo no rosto. Era
Charles.
25
Não escutei
Geórgia chegar em casa aquela noite e dormi até tarde. Quando acordei, foi com
um sentimento de expectativa.
Meio dormindo, o
rosto de Vincent do dia anterior flutuou pela minha mente. Quando ele examinou
o café com uma expressão pensativa, eu fui bombardeada com uma mistura de
saudade e orgulho. O garoto moreno e maravilhoso era meu. Neste pensamento, um
delicioso sentimento me envolveu e eu lentamente abri meus olhos.
E então minha
mente consciente me chutou e meu coração despencou. Vincent não era meu. Ele
era de outra pessoa. E eu estava de volta diretamente ao buraco negro de
tristeza e arrependimento que tinha sido minha prisão pelas últimas três
semanas.
Resolvendo sair
de casa, decidi tomar meu café da manhã no Café Sainte-Lucie, que notei ter
sido reaberto no dia anterior.
Na minha passada
pela sala de estar, vi vovô em sua poltrona, lendo um jornal e olhando cada
parte como uma versão mais velha do meu pai. Ele ainda ostentava a cabeça cheia
de cabelo aos setenta e um. Seu olhar nobre, que tinha sido herdado por
Geórgia, infelizmente tinha escapado direto para mim.
Ele olhou sobre
o jornal. ― Como está a minha princesa? ― perguntou, empurrando seus óculos de
leitura para acima da sua testa.
― Bem, vovô. Apenas estou saindo para
tomar café da manhã com J.D.
― Levantei minha cópia de The Catcher in
the Rye antes de empurrá-lo para dentro da bolsa. Ele pegou minha mão e a
colocou ao seu lado na poltrona, usando a linguagem de sinal do vovô de Fique
por um minuto. Vovô falou suavemente. ― Vovó disse que está preocupada com
você.
Quer conversar?
Balancei a
cabeça e dei a ele um sorriso de agradecimento.
― Você sabe que eu estou aqui sempre que
precisar de mim ―, ele disse, levando seus óculos de volta ao nariz.
― Obrigada, vovô ―, murmurei, apertando
sua mão antes de me virar para partir.
Eu nunca poderia
dizer a ele sobre meus problemas. Mesmo se eu tivesse apenas terminado com um
normal namorado humano. Vovô não poderia realmente entender. Ele e vovó viviam
em um perfeitamente funcional mundo de sonhos. Eles ainda estavam insanamente
apaixonados e passavam seus tempos fazendo coisas que ambos gostavam. Eles
tinham uma vida normal. Uma vida estável. Tinham tudo o que eu queria.
O dono do café
me recebeu de volta pessoalmente, me sentando no canto dianteiro da sala, onde
eu poderia ter alguma privacidade. Beberiquei meu café crème e comi um
croissant enquanto me perdia no livro. Devia ter se passado meia hora quando
percebi que a cadeira do outro lado da mesa estava ocupada. Jules se sentou na
minha frente com um perverso brilho no rosto, seus olhos castanhos faiscavam
com humor.
― Então, Miss América, pensou que poderia
apenas dar um chá de sumiço e simplesmente abandonar a todos nós. Não com tanta
sorte.
Quase ri de
felicidade ao vê-lo novamente, mas joguei frio perguntando
― , Qual é o problema de vocês mortos?
Você está me seguindo ou o quê? Ontem à noite Charles e agora você!
― Você viu Charles?
― Sim, ele estava no clube que fui perto
de Oberkampf. ― Minha voz baixou quando vi o espanto de Jules.
― Que clube?
― Honestamente, não faço ideia como se
chama. Não tinha um letreiro ou qualquer outra coisa.
― Ele te disse alguma coisa?
― Não, eu estava indo embora quando eu o
vi parado do lado de fora. Por quê?
Jules considerou
o que eu tinha dito a ele, então levou nossa conversa para uma direção
diferente. ― Então... Quando vai voltar?
Meu sorriso
desvaneceu. ― Eu não posso, Jules.
― Não pode o quê?
― Não posso voltar. Não posso me deixar
ficar com Vincent.
― Que tal ficando comigo, então? ― vendo
sua piscada provocante, eu ri. ― Não pode me culpar por tentar ―, disse,
agarrando minha mão do outro lado da mesa e entrelaçando seus dedos nos meus.
Atirei-lhe um
sorriso envergonhado e disse ―, Você é incorrigível.
― E você está vermelha.
Revirei meus
olhos e disse ―, Sendo um jovem e arrojado artista, Jules, tenho certeza que
você tem várias garotas batendo na sua porta.
― Sim, nós caras mortos realmente
pontuamos com as franguinhas. ―
Ele soltou minha
mão e recostou-se na cadeira, vestindo uma expressão convencida. ― Na verdade,
já que você tem tão veemente recusado minhas atenções, eu me sinto livre para
te dizer que tenho várias namoradas que vejo em rodízios, só para garantir que
nada fique muito sério.
― Uma delas é a modelo pouco vestida que
vi no seu estúdio aquele dia?
― Aquela é uma relação puramente
profissional. Não como a nossa poderia ser se você pudesse apenas me dar uma chance.
― Ele franziu seus lábios num sorriso sexy.
― Oh, Jules. Pare! ― gemi e dei-lhe um
soquinho no braço.
― Ow! ― ele disse, esfregando o lugar com
a mão. ― Droga, você não é apenas bonita, é um tanto impactante, também!
― Se você vai ficar sentado aí me
torturando, então pode simplesmente se levantar e voltar para aquele mortuário
velho onde todos vocês vivem ―, eu disse.
― Ooooh! Ela ousa mandar o pobre garoto
zumbi ir embora, que vergonha! E se eu trouxesse novidades? Olhei para ele. ―
Novidades de que?
― Novidades de que Vince está definhando
por você. Que está inconsolável. ― O tom de Jules era sério agora. ― Que ele
não é apenas tecnicamente um “homem morto andante”... Agora é um emocionalmente
também.
Meu estômago se
remoeu e lutei para manter a minha voz firme. ―
Olha, Jules. Eu
realmente sinto muito. Gostaria de dar a isso uma chance, mas depois de ver
Charles ser carregado para casa num saco preto... ―
Parei. Jules
estava me encarando com desafio em seus olhos. Isso me deu força.
― Não posso me deixar apaixonar por
Vincent se isso significa ter um constante lembrete da morte. Já tive o
suficiente disso para lidar no ano passado.
Ele assentiu. ―
Eu sei sobre isso. Sinto muito pelos seus pais.
Respirei fundo e
meu coração dolorido endureceu quando falei. ― E, além disso, eu não acho que
você esteja sendo honesto comigo. Vi Vincent ontem compartilhando um momento
muito afetuoso com uma loira belíssima.
Jules agiu como
se não tivesse me escutado. Virando seu papel toalha, tirou um lápis artístico
de carvão vegetal do bolso de sua camisa e começou a rabiscar nele. Ele falou
enquanto desenhava.
― Vince quis que eu checasse você. Não se
atreve a se aproximar ele mesmo. Disse que não quer causar mais sofrimento.
Após ver você cair fora do La
Palette ontem, ele ficou com medo de que você pudesse ter
chegado à conclusão errada. O que claramente você fez.
Senti meu
temperamento incendiar. ― Jules, eu vi o que vi. Quanto mais óbvio poderia ter
sido?
Jules prendeu
meu olhar. ― Kate, você obviamente não é estúpida, então estou presumindo que
você deve estar incrivelmente cega. Geneviève é uma de nós. É uma antiga amiga
que é como uma irmã para nós. Vincent está apaixonado, mas não por ela.
Minha respiração
ficou presa na garganta.
Satisfeito por
ter prendido a minha atenção, ele olhou calmamente de volta para o seu papel,
se concentrando intencionalmente em seu rascunho quando continuou. ― Ele está
tentando entender as coisas. Para encontrar uma maneira de contornar a
situação. Ele me pediu para te dizer isso.
O olhar de Jules
cintilou para mim e então abaixou de volta para o papel toalha. ― Nada mal ―,
ele disse. Rasgou uma parte e então, estendendo-o, segurou para mim.
Era um esboço
meu, sentada ali no café. Eu parecia como uma Vênus de Botticelli, radiando
serenidade e natural beleza. ― Eu pareço linda ―, eu disse com admiração,
olhando por cima do desenho para o seu rosto sério.
― Você é linda
―, ele disse, se inclinando e me beijando suavemente na testa, antes de se
virar e caminhar para fora do café.
26
Quando eu
cheguei em casa na tarde seguinte depois de outra sessão de leituras no Café
Sainte-Lucie, vovó estava saindo do apartamento com um visitante. A maior parte
de sua clientela ― negociantes de pinturas
e conservadores
de museus ― parava por lá nos dias de semana durante as horas de trabalho.
Então se alguém veio no final de semana, você podia ter certeza que era um
colecionador privado.
O homem bem
vestido ficou no corredor de costas para mim, segurando um pacote grande e fino
embrulhado num papel marrom, observando vovó trancar a porta da frente. ― Você
pode pegar o elevador e eu irei carregar a pintura para cima pelas escadas ―,
ela estava dizendo quando o homem se virou. Era Jean-Baptiste.
― Oh! ― exclamei. Meu corpo congelou
enquanto a minha mente lutava contra essa colisão de frente entre meus dois
mundos: o clã morto-vivo com o qual eu tinha quase me misturado e minha própria
confortável família mortal.
― Minha querida menina, eu a assustei.
Minhas desculpas! ― Sua voz veio suave e monótona, como se estivesse lendo um
roteiro. Ele estava vestido como da primeira vez em que o vi, usando um terno
caro com um lenço de seda estampado no pescoço, o cabelo grisalho
cuidadosamente lubrificado e penteado para trás de seu rosto aristocrático.
― Katya, querida, esse é um novo cliente
meu: Senhor Grimod de La
Reyniere. Senhor Grimod, minha neta, Kate. Você chegou em
casa exatamente no momento certo, querida. Poderia carregar essa pintura lá
para cima pelas escadas para o meu estúdio? Tenho medo de colocar no elevador
já que é muito grande.
Jean-Baptiste
continuou me encarando com divertimento enquanto vovó abria a porta do estreito
elevador. Podia sentir minha raiva se amontando quando ele levantou uma
presunçosa sobrancelha. Sua invasão ao meu mundo parecia uma violação.
Como em vários
prédios parisienses. Nosso elevador era pequeno. Mal cabiam duas pessoas lado a
lado, quanto mais uma terceira ou um grande quadro, nesse caso, era impossível.
Levantei a
pintura embrulhada no papel cuidadosamente pelas bordas e comecei a avançar meu
caminho pelos outros três lances de escadas. A pintura tinha cerca de metade do
meu tamanho em altura, mas a moldura tinha sido removida, então não estava
pesada.
Cheguei ao topo
das escadas na hora em que vovó destrancou a porta do estúdio, conversando
animadamente com Jean-Baptiste quando entraram. Encarei a forma de suas costas
mantida rigidamente e me perguntei justamente o que o “tio” do Vincent estava
fazendo aqui em
casa. Primeiro Jules , agora Jean-Baptiste! Pensei. Como eu
poderia seguir em frente se a “família” de Vincent continuava a pular na minha
vida? Minhas emoções tinham estado no modo montanha-russa desde que conversei
com Jules, mas estava determinada a seguir com a minha decisão original ―
estaria colocando meu coração em perigo se continuasse a ver Vincent.
Quando passei
pela porta, respirei o odor reconfortante de tintas a óleo e vernizes
profundamente com os meus pulmões. O estúdio da vovó sempre tinha sido um dos
meus lugares favoritos para passear.
Seis quartos de
empregada que pegavam todo o andar superior do nosso prédio tinham sido
combinados para deixar um grande espaço de trabalho, e a maior parte do teto e
telhado tinha sido derrubada para instalar claraboias de vidro fosco que
enchiam a sala com difusa luz solar.
Os atuais
projetos de restauração de vovó estavam dispersos pela sala em cavaletes. A pintura
escurecida pelo tempo de um antigo mestre de rebanho de vacas no campo
posicionada ao lado de uma pintura pós-impressionista com cores-vivas de uma
dançarina de cancan chutando alto suas saias numa linha de dança de salão, que
dava a impressão de estar chocando uma mulher espanhola vestida de preto, que
pudicamente segurava um fã em frente aos seus lábios na próxima tela.
― Vamos dar uma olhada nisso ―, Vovó
disse, pegando o pacote comigo e o deitando em uma larga mesa de trabalho no
centro da sala. Ela cuidadosamente removeu o papel, e então virou a pintura
para cima e a segurou para inspecioná-la. Era um retrato do tamanho real de um
homem jovem da cintura para cima, vestindo uniforme de soldado azul escuro de
aparência napoleônica e um alto chapéu preto plumoso. O sujeito era obviamente
o próprio Jean-Baptiste.
― Meu, pode-se certamente notar o
semblante familiar ―, Vovó disse com admiração, olhando da pintura para o seu
cliente e de volta a ela de novo.
Se inclinando
para frente, ele tocou um pequeno rasgo na tela, no nível da testa do homem. ―
O corte é aqui ―, ele disse.
― Bem, é um pedaço limpo, então será fácil
de reparar. Apenas um remendo no verso e podemos nem mesmo precisar tocar em cima. O que disse que fez
a incisão?
― Eu não disse, mas foi uma faca.
― Oh ―, exclamou vovó surpresa.
― Nada com o que se preocupar. Algazarra
de netos, você sabe. Eles foram proibidos de brincar no estúdio de agora em
diante ―, ele disse, olhando calmamente para mim enquanto falava.
― Bem, se você puder esperar um pouco
aqui, deixei meu livro de recibos lá embaixo no apartamento. Kate, poderia, por
favor, fazer ao Senhor
Grimod um café?
Ela acenou em direção à cafeteira em cima de uma mesa no canto e movimentou-se
porta afora, deixando-a aberta atrás de si.
O idoso revenant
e eu ficamos sem ação até que ouvimos o som do antigo elevador balançando em movimento. E então
ele deu um passo em minha direção.
― O que você está fazendo aqui?
― Precisamos conversar ―, disse, sua voz
autoritária dissonante com meus nervos. ― Jules me disse que você viu Charles.
Por favor, me diga onde.
Decidi que
quanto mais cedo dissesse a Jean-Baptiste o que ele queria ouvir, mais cedo ele
poderia ir. ― Ele estava parado do lado de fora de um clube que fui, era
próximo a Oberkampf. Sexta-feira, por volta da meia-noite.
― Com quem ele estava lá? ― embora ele não
parecesse nada além de composto pela superfície, eu podia dizer pela contração
muscular no canto
de sua boca que
as coisas não estavam bem.
― Parecia que tinha chegado ali sozinho.
Por quê?
Ele olhou de
relance para a porta como se calculando o tempo que tinha para falar.
― Vim aqui por duas razões. ― Falou suave e rapidamente. ― A primeira foi para perguntar a você sobre
Charles. Ele desapareceu há poucos dias depois de... ― ele olhou de relance para
seu retrato com desgosto ―
Desossar suas
habilidades em atirar facas.
― E a segunda era para pagar uma discreta
visita a sua família.
Precisava ver de
onde você vem.
Minha raiva
retornou em um
segundo. ― O
que, você está me
espionando? O que você quer dizer “de onde você vem”? Se meus avós têm
dinheiro? ― Balancei a cabeça com desgosto. ― Bem, eles têm sim, não tanto
quanto você. Não vejo por que isso importa de qualquer forma. ―
Comecei a andar
para longe dele, em direção à porta.
― Pare! ― ele mandou, e eu fiz. ― Dinheiro
não importa para mim. Caráter sim. Seus avós são honráveis. E seguros.
― O que, honráveis o suficiente para
consertar sua pintura?
― Não. Honráveis o suficiente para serem
de minha confiança. Se a necessidade for alguma vez apresentada.
Quando o
significado de suas palavras começou a fazer sentido, minhas costas se enrijeceu.
Ele estava espiando minha família para ver se eu era boa o bastante para
Vincent. Ele devia não ter recebido o memorando de que isso estava definida e
decididamente acabado. ― Nunca vai haver uma necessidade. Não se preocupe
Senhor Grimod, não vou invadir a sua vida doméstica novamente. ― Terrivelmente,
senti uma lágrima correr por minha bochecha e eu a enxuguei raivosamente para
longe.
As linhas
acentuadas de seu rosto se suavizaram. Tocando meu braço levemente com os
dedos, ele disse ―, Mas querida menina, você deve voltar. Vincent precisa de
você. Ele está inconsolável.
Olhei para o
chão e balancei a cabeça.
Jean-Baptiste
colocou seus perfeitamente bem cuidados dedos debaixo do meu queixo e o
levantou até que meus olhos encontrassem os dele. ― Ele está disposto a fazer
extremos sacrifícios para estar com você. Você não deve a nós ― ele ― coisa
alguma, mas eu poderia implorar a você para, por favor, vir e escutá-lo.
Minha resolução
começou a cair. ― Vou pensar sobre isso ―, sussurrei finalmente.
Ele assentiu,
satisfeito.
― Obrigado. ―
Sua voz falhou quando seus lábios proferiram palavras que raramente ele devia
falar. Ele andou rapidamente em direção à porta e começou a fazer seu caminho
escada abaixo, quando escutei o elevador subir.
Vovó saiu
olhando para baixo o seu notebook, e então acima para mim quando passou pela
porta. Olhando ao redor para o estúdio vazio, confusa perguntou ―, Bem, para
onde ele foi?
27
Estava chovendo.
Forte. Observei as gotas de chuva atingirem do chão ao teto da janela, com uma
força que as fazia ricochetear de uma lagoa que estava se formando na minha
varanda.
Eu tinha estado
pensando em Vincent desde que Jean-Baptiste tinha falado comigo poucas horas
antes, comparando o que ele tinha dito com o que Jules falou no Café. Vincent
estava tentando dar um jeito nas coisas. Encontrar uma solução. Eu deveria dar
a ele uma chance de explicar, ou isso poderia apenas me abrir para o risco de
mais dor?
O que é melhor,
pensei, estar segura e sofrer sozinha, ou arriscar a dor e realmente viver?
Embora minha cabeça e meu coração estivessem me guiando em duas diferentes
direções, eu estava certa de que não queria que minha vida se assemelhasse com
o que tinha sido as últimas três semanas: uma monótona existência vazia de cor,
calor e vida.
Fui até a janela
e olhei o céu escurecido, desejando que a resposta para a minha pergunta
pudesse estar escrita em letras simples através das nuvens de chuva. Meu olhar
foi para o parque abaixo, e eu vi a forma de um homem apoiado no portão do
parque. Ele estava embaixo da torrente chuva, sem guarda-chuva, olhando para a
minha janela. Saí para a varanda.
Uma rajada de ar
frio me pegou e eu estava imediatamente encharcada pela rajada de chuva, mas
fui capaz de ver a face virada para cima três andares abaixo. Era Vincent.
Nossos olhos se encontraram.
Hesitei por um
segundo. Eu deveria? Eu me perguntei, antes mesmo de perceber que já tinha
feito minha escolha. Mergulhando de volta para o meu quarto, agarrei uma toalha
da cadeira e enxuguei minha rosto e cabelo enquanto procurava por minhas botas
de chuva. Peguei-as debaixo da cama, corri para o corredor, colidindo com vovó
do lado de fora da cozinha.
― Katya, onde está indo? ― perguntou.
― Tenho que ir. Ligarei para você se for
chegar tarde ―, disse, enquanto jogava meu casaco e segurava meu guarda-chuva.
― Tudo bem, querida. Apenas se cuide. Está
caindo uma tempestade lá fora.
― Eu sei, vovó ―, disse, a agarrando e
abraçando violentamente antes de correr porta afora.
― O que deu em você? ― eu a escutei chamar
quando a porta bateu atrás de mim e eu disparei para baixo nas escadas.
Uma vez fora da
porta de entrada, virei a esquina do prédio em direção ao parque e então vim a
parar bruscamente. Lá estava ele, embaixo da forte chuva, olhando para mim com
uma expressão que me fez ficar no caminho. Era uma expressão de alívio
estonteante. Como se tivesse encontrado uma lagoa de água cristalina no meio do
deserto. Eu a reconheci porque me sentia exatamente da mesma forma.
Deixei meu
guarda-chuva cair e me joguei em cima dele. Seus braços fortes se envolveram ao
meu redor, me levantando do chão em um abraço desesperado. ― Oh, Kate ―, ele
respirou, aconchegando sua cabeça contra
a minha.
― O que você está fazendo aqui fora? ―
perguntei.
― Tentando estar o mais próximo possível
de você ―, disse, beijando as gotas de chuva da minha bochecha.
― Por quanto... ― comecei a perguntar.
― Tem se tornado um pouco de hábito. Eu só
estava olhando até que a luz se apagasse. Nunca pensei que você me veria ―,
respondeu, me colocando para baixo. ― Mas vamos te tirar da chuva. Você voltará
comigo?
Para casa? Para
podermos conversar?
Assenti. Ele
pegou meu guarda-chuva e, brandindo-o sobre nossas cabeças, envolveu um braço
ao redor dos meus ombros e me segurou perto todo o caminho.
Quando pisamos
sob a manchada luz do hall de entrada, encarei Vincent e ofeguei. Ele estava
esquelético. Tinha perdido peso, e em seus olhos tinham círculos escuros
embaixo deles. Não tinha notado isso em La Palette , tendo outras coisas (como uma loira
revenant deslumbrante) em minha mente. Mas estando aqui, a poucos passos dele,
o seu estado deteriorado era evidente. ― Oh, Vincent! ― disse, alcançando em
direção ao seu rosto.
― Não tenho estado bem ―, explicou,
pegando minha mão antes que
eu o tocasse e a
cruzando na dele. Tão logo que sua pele tocou a minha, meu interior se
transformou em uma bagunça quente e ansiosa. ― Vamos para o meu quarto ―, disse
e me guiou pelo corredor de empregados até sua porta aberta.
As cortinas
tinham sido abertas. Brasas espalhadas brilhavam na lareira e o quarto cheirava
como uma fogueira. Parei e assisti Vincent adicionar alguns gravetos para
recomeçar o fogo. Ele empilhou algumas toras antes de retornar para mim.
― Você está com frio? ― perguntou.
― Eu não sei se é o frio ou os nervos ―,
admiti, levantando a mão para mostrar como estava tremendo. E imediatamente,
ele esticou as mãos para me pegar em se braços. ― Oh, Kate ―, respirou,
beijando o topo da minha cabeça. Eu o senti arrepiar quando seus lábios tocaram
meu cabelo.
Ele segurou
minha cabeça com as mãos e suas palavras saíram em uma torrente. ― Não posso te
dizer o quanto lutei durante essas últimas semanas.
Tentei
desaparecer da sua vida. Para te deixar ir. Queria que você fosse capaz de
viver uma vida normal, uma vida segura. E estava quase convencido de que tinha
feito a coisa certa até que fui te ver.
― Você foi me ver? Quando? ― perguntei.
― Comecei há uma semana. Tinha que ver se
você estava bem. Observei você ir e vir por dias. Você não parecia como se
estivesse ficando melhor. Na verdade, parecia pior. E então, quando Charlotte
ouviu por cima sua irmã e sua vó conversando no café, eu sabia que estava
errado ao ter te deixado partir.
― O que ela ouviu? ― perguntei, um ruim
sentimento se formando no fundo do estômago.
― Elas estavam preocupadas com você.
Falaram sobre depressão. Sobre o que poderiam fazer por você. Sobre se Geórgia
deveria te levar de volta a
Nova York.
Vendo meu
choque, Vincent me estabeleceu no sofá e se sentou próximo a mim. Seus dedos
massageavam os meus distraidamente enquanto falava, o movimento e a pressão me
fizeram sentir mais firme.
― Tenho conversado com Gaspard sobre isso.
Ele sabe muito, talvez até mais que Jean-Baptiste sobre nós. Sobre nossa
situação como revenants.
Acho que cheguei
a uma solução com a qual podemos viver. Que não irá demandar tanto de você. E
quase uma existência normal. Você pode ouvir?
Assenti e tentei
conter meus sentimentos de esperança. Não tinha ideia do que ele estava para
falar.
― Peço desculpas por não ter te contado
mais sobre mim desde o começo. Só não queria assustá-la. Acho que isso colocou
uma barreira entre nós. Então quero começar do início.
― Primeiro: minha história. Nasci em 1924,
como já te disse, em uma pequena cidade em Brittany. Nossa
cidade foi ocupada logo depois que a
Alemanha invadiu
em 1940. Nós nem ao menos tentamos lutar contra eles. Não tínhamos armas e tudo
aconteceu muito rápido para preparar uma defesa.
― Estava apaixonado por uma garota chamada
Hélène. Nós crescemos juntos e nossos pais eram melhores amigos. Um ano depois
que a Ocupação começou, eu a pedi para se casar comigo. Tínhamos só dezessete,
mas a idade não parecia importar em uma imprevisível atmosfera de guerra em que
vivíamos. Minha mãe nos pediu para esperar até que tivéssemos dezoito, e assim
fizemos.
― Nossa cidade estava à mercê das
guarnições alemãs estacionadas nas proximidades, e de nós era esperado prover a
eles comida, bebida e suprimentos. Bem como... Outros serviços não oficiais. ―
Podia ouvir a fúria crescente na voz de Vincent quando continuou, mas permaneci
em silêncio, sabendo que recordar essas memórias devia ser difícil para ele.
― Meus pais e eu estávamos jantando na
casa de Hélène na noite em que dois oficiais alemães bêbados apareceram na
porta da família dela, exigindo vinho. O pai de Hélène explicou que já tinha
esvaziado o conteúdo todo da adega para o exército, e nada tinha sobrado para
oferecer a eles.
― “Bem, nós vamos ver isso!” um deles
disse e, pegando suas armas, ordenaram a Hélène e sua irmã mais nova que
tirassem as roupas. Sua mãe bateu em direção aos oficiais, gritando em protesto. Eles
atiraram nela e então viraram e atiraram na minha mãe, que tinha pulado para
defender a amiga. Meu pai foi o próximo a ser morto.
― O pai de Hélène tinha saltado para trás
da porta para o seu rifle de caça que mantinha escondido lá, mas antes que
pudesse pegar a arma, um dos alemães o agarrou e atirou na perna dele, enquanto
o outro me dava uma coronhada quando tentei pegá-lo. Eles nos mantiveram vivos
somente para que pudéssemos assistir, sangrando e algemados a porta. Eles...
atacaram...
Hélène e sua
irmã. Hélène tentou lutar. E atiraram nela também. ― A voz de Vincent quebrou,
mas seus olhos tinham se tornado tão duros quanto pedra.
― Nós três fomos deixados para enterrar
nossos mortos. Eu me ofereci a ficar e cuidar do pai e da irmã de Hélène, mas
eles me pediram para ir e lutar pelos nossos ataques ao invés. Parti na mesma
noite para me juntar aos Maquis.
― A Resistência ―, eu disse.
Ele assentiu. ―
O exército rural da Resistência. Nós nos escondíamos na floresta durante o dia,
descendo para os campos alemães à noite, roubando armas e comida e matando
quando podíamos.
― Um dia, dois de nós foram presos à luz
do dia, suspeitos de invadir um galpão de armas na noite anterior. Embora eu
não tivesse feito parte da invasão, o amigo com quem eu estava tinha planejado
a coisa toda. Não tinham nada contra nós. Mas estavam determinados a fazer
alguém pagar pelo escândalo.
― Meu amigo tinha esposa e uma criança em
sua cidade natal. Eu tinha ninguém. Eu disse a eles que tinha sido eu e me
executaram na praça da cidade, como um exemplo para o resto dos habitantes.
― Oh, Vincent ―, eu disse horrorizada e
minhas mãos voaram para a boca.
― Está tudo bem ―, ele disse suavemente,
colocando meus braços para baixo e olhando firmemente em meus olhos. -Estou
aqui agora, não estou? Ele continuou ―, A história estava nos jornais do dia
seguinte e Jean-
Baptiste, que
estava em uma casa da família na região, veio ao “hospital” de campo onde
tinham me deitado. Alegando que eu era da família, ele levou meu corpo de volta
com ele e cuidou de mim até que eu acordasse dois dias depois.
― Como ele sabia que você era... como ele?
― Jean-Baptiste tem “o sinal”― é como se
fosse um radar para os “transformados mortos-vivos”. Ele vê auras.
― Como um tipo de New Agey21 de auras? ―
perguntei, duvidando. Vincent riu. ― Sim, tipo isso. Ele tentou me explicar uma
vez. A aura dos revenants tem sua própria cor e vibração. Depois da primeira
morte deles, Jean-Baptiste pode ver revenants à quilômetros de distância. Ele
disse que é como um ponto de luz apontando para o céu.
― Foi assim que encontrou Ambrose uns dois
anos depois, após o seu batalhão americano ser abatido no campo de batalha de
Lorraine. Jules morreu na Primeira Guerra Mundial, os gêmeos na Segunda Guerra
Mundial e Gaspard na guerra franco-austríaca da metade do século dezenove.
― Gaspard era um soldado?
Vincent riu. ―
Isso te surpreende?
21 Ney agey:
Adjetivo usado para descrever um indivíduo do tipo ‘nova era’, ou seja, alguém
que tem uma coleção de cristais, tem muitos livros de auto aperfeiçoamento,
acredita em medicina alternativa, práticas de yoga e meditação, come orgânicos,
usa meias e sandálias, e / ou acredita em auras e energia.
― Ele não ficaria um pouco nervoso para a
batalha?
― Ele foi um poeta forçado a ser soldado.
Uma sensível alma para ter visto o que viu nos campos de batalha.
Concordei
pensativamente. ― Então quase todos vocês morreram num período de guerra?
― Um período de guerra é apenas a época
mais fácil de encontrar pessoas que estão morrendo no lugar de outras. Isso
deve acontecer o tempo todo, só que geralmente não é noticiado.
― Então está me dizendo que há pessoas
morrendo por toda a França que podem voltar à vida... sob certas
circunstâncias. ― Meu coração doeu.
Isso era tudo um
abismo de sobrecarga, mesmo depois de ter tido mais de um mês para me acostumar
com a ideia de que o mundo em que vivia não era mais o mesmo do qual sempre
conheci.
Vincent riu. ―
Kate, isso não é somente uma coisa francesa. Aposto que você topou por um bom
numero de revenants na cidade de Nova York sem saber que estava cruzando o
caminho com um zumbi.
― Então por que você? Quero dizer, em particular. Não
acho que a maioria dos bombeiros, salva-vidas, policiais ou soldados acordam
três dias depois.
Vincent disse ―,
Ainda não entendemos porque algumas pessoas estão predispostas a ser revenants.
Jean-Baptiste acha que é algo genético. Gaspard acredita que é meramente
destino ― que alguns humanos apenas foram escolhidos. Ninguém encontrou
qualquer prova de que seja algo se não isso. Eu me perguntei se era a magia ou
natureza que tinha criado Vincent e os outros. Estava ficando difícil de dizer
os dois separados, agora que as regras que eu tinha sido ensinada estavam
virando de cabeça para baixo.
Vincent tirou de
cima da mesa e me serviu um copo d’água. Eu o peguei agradecidamente e bebi
enquanto o assistia pilhar mais duas toras no agora diminuído fogo.
Ele se sentou no
chão na minha frente. O sofá era tão baixo, e Vincent tão alto, que seus olhos
ficaram um pouco abaixo dos meus enquanto falava cautelosamente agora,
cuidadosamente pesando cada palavra.
― Kate, venho tentando descobrir como
trabalhar isso. Eu te disse que uma vez vivi até os vinte e três. Foram cinco
anos evitando a compulsão de morrer. Jean-Baptiste tinha me pedido para
aguentar até que conseguisse um diploma em Direito, a fim de cuidar dos papéis
da família. Foi difícil, mas fui capaz de fazer. Ele me deu essa tarefa, pois
sabia que eu era mais forte que os outros. E eu o tenho visto resistir suas
próprias vontades por mais de trinta e cinco anos. Então eu sei que é possível.
― A mulher com quem me viu no outro dia. Em La Palette... ―
Vincent vestiu uma dolorida expressão.
― Sim, Geneviève. Jules disse que é apenas
uma amiga.
― Esperava que você acreditasse nele. Sei
que pode ter parecido... comprometedor. Mas pedi a Geneviève que se encontrasse
comigo aquele dia para que então eu pudesse perguntar sobre a sua situação. Ela
é casada.
Com um humano.
Meu queixo caiu.
― Mas... como?
― Sua morte original foi aproximadamente
na mesma época que a minha. Tinha acabado de se casar. E seu marido viveu.
Então quando ela animou, voltou para ele e tem vivido com ele desde então.
― Mas ele dever estar...
― Ele está em seus oitenta anos. ― Vincent
terminou meu pensamento.
Minha mente tentou
se envolver em torno do pensamento de uma linda mulher loira casada com um
homem velho o suficiente para ser seu bisavô. Não conseguia imaginar como a
vida dela deveria ser.
― Eles ainda estão insanamente
apaixonados, mas tem sido uma vida difícil ―, Vincent continuou. ― Ela não foi
capaz de controlar sua vontade de morrer e seu marido a encorajou a seguir o
destino a que foi dado como um revenant. Ele tem orgulho dela e ela o adora.
Mas muito logo será a vez dele de morrer e ela ficará sozinha. Isso é uma
opção, mas não a que eu jamais pediria para outra pessoa suportar.
Vincent se
inclinou para frente e pegou as minhas mãos nas dele. As dele estavam quentes e
firmes, e seu toque enviou uma onda de excitação, percorrendo meu corpo até se
apresentar ao meu coração. ― Kate ―, disse
―, Eu posso
ficar longe de você. Seria uma existência miserável, mas poderia fazê-lo se
soubesse que você estaria feliz.
― Mas, se você
também quiser ficar comigo, eu te ofereço esta solução: vou resistir à morte
contanto que eu esteja com você. Estive conversado com Jean-Baptiste e
encontramos um jeito de eu lidar com isso. Não vou te expor repetitivamente a
um trauma de vida através de minhas mortes. Não posso fazer coisa alguma sobre
o fato de que você vai ficar sem a minha presença física por três dias ao mês.
Mas posso controlar o resto. E eu vou. Se você decidir me dar uma chance.
28
Em? O QUE EU
PODERIA TER DITO?
Eu disse ―, Sim.
29
Nós nos sentamos
no chão, aninhados um perto do outro, encarando o fogo. ― Você está com fome? ―
Vincent perguntou.
― Na verdade,
estou ―, confessei, surpreendendo a mim mesma. Não tinha tido muito apetite por
umas... Três semanas.
Enquanto ele ia
à cozinha, liguei para a minha avó. ― Vovó, se importa se eu pular o jantar?
Vou comer fora.
― Pelo tom de sua voz, eu estaria correta
em adivinhar que isso é sobre um certo garoto?
― Sim, estou na casa do Vincent.
― Bem, que bom para você. Espero que você
possa arrumar tudo isso e se juntar a nós novamente na terra dos vivos. ― Encolhi.
Se ela apenas soubesse.
― Nós temos muito sobre o que conversar ―,
eu disse ―, Devo chegar tarde.
― Não se preocupe, querida. Mas lembre-se
de que tem escola amanhã.
― Sem problema, vovó.
Minha avó ficou
quieta por tanto tempo que me perguntei se ela tinha desligado. ― Vovó? ―
perguntei, após alguns segundos.
― Katya ―, disse
suavemente, como se ponderando alguma coisa. Então, com uma voz decidida ela
continuou ―, Querida, esqueça o que eu disse. Penso que é melhor resolver as
coisas que tentar ser sensata sobre obter uma boa noite de sono. Vincent mora
com os pais?
― Com a família dele.
― Isso é bom. Bem, se você decidir passar
a noite aí, me ligue e então não me preocuparei.
― O quê? ― exclamei.
― Se isso significa ter que tirar um dia febril,
então está tudo bem. Você tem a minha permissão para ficar na casa da família
dele... na sua própria cama, é claro.
― Nada vai acontecer entre a gente! ―
comecei a protestar.
― Eu sei ―, podia ver seu sorriso pelo
fone. ― Você tem quase dezessete anos, mas é mais velha mentalmente. Confio em
você, Kate.
Apenas cuide das
coisas e não se preocupe em voltar para casa.
― Isso é muito... Progressivo da sua
parte, vovó ―, disse, paralisada pela surpresa.
― Gosto de pensar que eu estou de acordo
com os tempos ―, brincou, e então disse ardentemente ―, Viva, Katya. Seja
feliz. Corra riscos. Se divirta. ― E desligou o telefone.
Minha avó acabou
de me dar permissão para ter uma festa do pijama com o meu namorado. Isso leva
o bolo de esquisitice do dia, Decidi. Até mesmo mais do que a garantia de
Vincent de não morrer por mim.
Ele retornou com
uma imensa bandeja de comida. ― Jeane veio por nós mais uma vez ―, Vincent
disse, pousando a bandeja na mesa. Ela estava cheia de pequenas porções de
guloseimas, salsichas, queijo, baguetes e cinco ou seis diferentes tipos de
azeitonas. Tinha garrafas de água, suco e uma jarra de chá. Frutas exóticas
estavam empilhadas numa tigela e pequenos biscoitos de diferentes cores estavam
empilhados numa pirâmide alta de pratos de bolo.
Joguei uma
pequena bola de queijo de cabra em minha boca e o segui com um pedaço de tomate
seco encharcado de azeite. ― Me sinto mimada ―, disse, sonhando, apoiando a
cabeça no ombro de Vincent. Era tão bom tocá-lo após três semanas com apenas o
meu travesseiro para abraçar.
― Bom. É exatamente assim que quero que se
sinta. O único jeito que posso compensar por essa extraordinária situação é
recompensar você de uma maneira extraordinária.
― Vincent, é maravilhoso só de estar aqui
com você. Não preciso de mais nada.
Ele sorriu e
disse: ― Veremos.
Enquanto
comíamos, alguma coisa que Jean-Baptiste tinha dito mais cedo no dia pulou
dentro da minha mente.
― Vincent, o que aconteceu com Charles?
Ele ficou em
silêncio por um momento. ― O que Jean-Baptiste disse a você?
― Que Charles jogou uma faca no seu
retrato e fugiu.
― Sim. Bem, isso foi o final da história.
Começou com o naufrágio do barco e só foi piorando.
― O que aconteceu?
― Bem, no dia seguinte do resgate, quando
sua mente acordou, Charles teve Charlotte o ajudando a rastrear a mãe da garota
que tinha morrido. Ele começou a seguindo na forma volante, atolado na culpa
por não ter salvado sua criança. Logo que ele animou dois dias depois, começou
a perseguir a mulher. Levando presentes a sua porta. Levando flores a casa
funerária. Até mesmo foi ao enterro da garota.
― Muito arrepiante.
Vincent
concordou. ― Charlotte estava preocupada e contou a Jean-Baptiste a história
toda. Ele sentou com Charles e o proibiu de ver a mulher. Até mencionou mandar
os gêmeos para uma de suas casas no sul, para distanciar Charles da situação
até que colocasse a cabeça de volta no lugar.
― E aí foi
quando Charles desabou. Estava fora de controle, avaliando o quanto injusto as
coisas eram. Como não queria ser um revenant por toda a eternidade, forçado a
se sacrificar por pessoas que ele nem ao menos conhecia, e exilado se tentasse
se envolver nas vidas delas. Culpou Jean-Baptiste por alimentar e cuidar dele
após ter acordado, não o deixando morrer de “causas naturais” depois que foi
baleado. E isso foi quando ele atirou a faca.
― Pelo menos não a jogou em Jean-Baptiste.
― Ele bem que poderia ter feito isso do
jeito que machucou JB. Então fugiu de casa e deixou Charlotte a beira de um
ataque. ― Vincent parou. ―
Nós estamos
certos de que ele voltará assim que tirar isso do seu sistema.
― Parece ter tido um bocado em seu ombro
mesmo antes do acidente com o barco ―, eu disse.
― Sim. Ele sempre foi o que mais pensa
sobre essas coisas de todos nós. Não que eu não tenha pensado um longo tempo
sobre o nosso propósito
aqui. Ele apenas
tem o tempo mais difícil o aceitando.
Isso poderia
explicar muito, pensei, sentindo um pouco de pena de Charles.
― Quando ele partiu?
― Dois dias atrás.
― Foi quando o vi ―, disse. ― Sexta à
noite, um pouco depois da meia- noite.
― Isso foi o que Jean-Baptiste disse.
Então... você estava saindo sem mim? ― lançando um provocante sorriso. Senti
que ele estava tentando clarear a atmosfera mudando de assunto.
― Estava tentando dançar minhas tristezas
embora.
― Deu certo?
― Não.
― Talvez tivesse dado se eu estivesse lá
―, ele disse presunçosamente.
― Devemos sair para dançar qualquer noite?
― Não sei. Nunca vi um cara morto
dançando. Acha que pode me acompanhar? ― brinquei, e em resposta Vincent
agarrou meus ombros e se inclinou para pressionar seus lábios firmemente contra
os meus.
Meus sentidos
ficaram instantaneamente concentrados naqueles poucos milímetros de pele que
estavam se tocando. E então ele quebrou a conexão, deixando meu coração
pulsando na garganta, como se o beijo o tivesse puxado para cima do peito.
― Tiro isso como um sim? ― ofeguei.
― Senti sua falta ―, ele disse, e se
inclinou para mais.
― Está tarde.
Você deveria estar voltando ―, Vincent disse depois de umas duas horas deitado
no sofá me abraçando e se atualizando dos meus não eventos.
― Na verdade, tenho uma permissão especial
de vovó para ficar na casa
da sua família
hoje à noite se preciso de tempo para ajeitar as coisas com você. ― Senti um
perverso sorriso se espalhar pela minha face.
― O quê? ― do seu olhar de surpresa,
pareceu que eu tinha finalmente dito a ele algo chocante ao invés do usual vice
e versa. ― Tenho a sua avó do meu lado? Os milagres nunca irão parar?
― Não tenho certeza exatamente se é do seu
lado; é mais do meu lado. Ou talvez até do dela. Ela não quer que eu caia na
miséria debaixo do seu teto.
Vincent riu. ―
Bem, não devemos abusar da confiança de vovó. Você pode ficar com a minha cama.
Não preciso dela de qualquer forma. ― ele piscou. ― Qualquer coisa para passar
mais tempo com ma belle Kate.
Derreti por
dentro.
Enquanto ele se
concentrava em reascender o fogo, me levantei e andei pelo quarto, olhando suas
coisas para mais pistas de como quem esse misterioso garoto realmente era.
Quando cheguei à mesa ao lado da sua cama, congelei. Onde minha foto tinha
ficado estava um pequeno vaso de flores.
― Dei sua foto a Charlotte ―, Vincent
disse, andando atrás de mim. ― Era muito difícil olhar seu retrato todos os
dias quando sabia que não poderia ver você em carne e osso.
Toquei seu braço
para mostrar que não estava chateada. ― Te darei outra. Aquele não era o mais
lisonjeiro dos retratos, tenho que admitir.
― Boa ideia ―, Vincent disse e, escavando
a câmera da mesa próxima a cama, ele a segurou como um troféu.
― Agora? ― fiz uma careta, me perguntando
se eu parecia tão cansada quanto me sentia.
― Por que não? ― perguntou e, ficando
próximo a mim, ele colou seu braço ao redor do meu ombro e segurou a câmera na
nossa frente. ― Não se mexa. É melhor sem flash ―, disse, pressionou e liberou
o obturador. Girou
a câmera para
que pudéssemos ver a foto.
Meu coração
estava na boca quando olhei a imagem de mim mesma próxima a esse garoto divino.
Seus olhos estavam meio fechados e, na luz fraca do quarto, os círculos embaixo
deles o fizeram parecer ainda mais bonito do que nunca ― mais um pouco sombrio.
E eu... Bem, eu
estava brilhando. Próxima a ele, parecia como se eu estivesse onde deveria
estar. E sentia isso também.
Nós nos sentamos
na cama de Vincent e conversamos até tarde da noite. Finalmente meus olhos
começaram a se fechar sozinhos e ele me perguntou se queria dormir. ― Querer,
não. Precisar, talvez. Muito ruim que a insônia revenant não possa me
contagiar. ― Sorri, reprimindo um bocejo.
Ele tirou uma
camisa azul clara do armário e a atirou para mim do outro lado do quarto. ―
Para combinar com seus olhos ―, disse.
Revirei os olhos
ao comentário brega, mas estava secretamente satisfeita por ele parecer saber a
exata cor dos meus olhos. A camisa era grande o suficiente para chegar à metade
das minhas coxas. ― Perfeito ―, disse, e olhei para cima para notar que Vincent
tinha virado para o outro lado encarando a parede.
― Vá em frente ―, ele disse numa
brincalhona voz.
― O que você está fazendo? ― perguntei a
ele, rindo.
― Se eu for forçado a assistir Kate
Mercier se despir até ficar de calcinha em meu próprio quarto, tenho medo de
não ser capaz de responder a vovó pelo que poderia acontecer. ― A rouquidão em
sua voz me fez desejar, por um segundo, que ele seguisse com sua ameaça.
Colocando a
camisa sobre minha cabeça, disse ―, Ok, estou decente. Ele se virou e olhou
para mim, assobiando baixinho. ― Você está mais que decente! Você está praticamente
comestível.
― Pensei que revenants não comiam carne
humana ―, provoquei, ruborizando comigo mesma.
― Não afirmo que nunca caducamos quando
pressionados além de nossos limites ―, Vincent retrucou.
Perguntando-me
se toda a nossa conversa seria essa bizarrice, balancei a cabeça com um sorriso
e pesquei meu celular da minha bolsa. Escrevendo para Geórgia, pedi a ela para
avisar na escola que eu ficaria em casa por “razões pessoais” e que iria levar
um bilhete da vovó na terça.
E logo depois,
sentada na cama com as costas contra a parede e a cabeça no ombro de Vincent,
cai no sono.
Quando acordei
pela manhã, estava coberta com cobertores e descansando em um suave travesseiro
de penas. Vincent tinha saído, mas havia uma nota em cima da mesa.
Alguém alguma
vez já te disse o quão fofa você é quando dorme? A vontade de acordá-la e dizer
a você era muito tentadora, então parti ao invés de arriscar a sua ira de sono
privado. Jeane tem café da manhã para você na cozinha.
Jogando as
roupas do dia anterior, andei grogue corredor abaixo até a cozinha. Quando
Jeane me viu entrar, deu um grito e, correndo para mim, agarrou minha cabeça
entre suas gordinhas mãos e plantou um imenso beijo em cada uma das minhas
bochechas.
― Oh, minha pequena Kate. É bom ter você
de volta. Fiquei tão feliz quando Vincent me disse que você tinha ficado por
aqui ontem à noite. E ele realmente comeu essa manhã, é uma mudança! Pensei que
ele estava em greve de fome, mas só estava tão doente por ter perdido você... ―
Ela parou si mesma, colocando uma mão sobre a boca.
― Me escute enquanto te sirvo, você acabou
de acordar. Sente-se, sente-se. Vou ajeitar o café da manhã para você. Café ou
chá?
― Café ―, eu disse, lisonjeada com a
atenção.
Jeane e eu
conversamos enquanto eu comia. Ela queria saber tudo sobre a minha família, de
onde eu vinha e como era viver em Nova York. Fiquei um pouco depois de terminar de
comer, mas não podia esperar mais para ver Vincent.
Jeane sabia.
Pegando minha xícara e pratos vazios, me enxotou da cozinha. ― Tenho certeza de
que você não quer passar seu dia aqui comigo. Vá encontrar Vincent. Está
treinando na academia.
― Onde é a academia? ― perguntei. Curiosa
sobre um lado da vida de Vincent que eu ainda não sabia.
― Tola eu, fico achando que você sabe onde
fica tudo por aqui, quando só esteve aqui umas duas vezes. É no porão. Porta a
esquerda saindo da cozinha.
Escutei antes de
vê-los. O tinido de metal contra metal. A pesada respiração, gemidos e
exclamações. Isso soou como trilha de efeitos especiais de filmes de artes
marciais cheios de explosões em câmara lenta. Cheguei ao final das escadas e
ofeguei quando olhei ao redor.
O lugar se
estendia por todo o comprimento da casa. O teto de pedra estava curvado em um
arco na forma de barril. Pequenas janelas estavam lavradas no topo da parede ao
longo do local, que deveria estar acima do nível do solo. Raios de sol
preenchiam o salão, transformando um turbilhão de partículas de pó em
fantasmagóricas colunas de fumaça.
As paredes
estavam revestidas de armas e armaduras, de bestas medievais, escudos e espadas
até machados de guerra e lanças. Misturada entre mais espadas contemporâneas
estava uma variedade de rifles de caça e velhas armas militares.
No centro do
salão, Vincent estava empunhando uma grande espada com as mãos contra outro
homem, cujo cabelo preto estava puxado para trás em um curto rabo de cavalo.
Este se defendeu, segurando sua própria lâmina de aparência perigosa para
desviar o golpe. Suas velocidades e forças eram assombrosas.
Vincent estava
vestindo uma folgada calça preta de karatê, mas estava descalço e sem camisa.
Quando ele girou com a espada, seus duros e definidos músculos abdominais e
peito largo ondularam quando levantou e abaixou a sua arma. Ele era esculpido,
mas não bombado como Ambrose. Era perfeito.
Após alguns
minutos de descarada espionagem, entrei no aposento, e o outro homem olhou de
relance na minha direção e acenou.
― Kate! ― Vincent chamou, correndo para
mim. Pegou meu rosto entre as mãos e me deu um selinho nos lábios. ― Bom dia,
mon ange ―, disse ―,
Gaspard e eu só
estávamos treinando. Vamos acabar em alguns minutos.
― Gaspard! ― exclamei. ― Eu nem mesmo te
reconheci! ― Com seu cabelo selvagem puxado para trás do seu rosto, ele parecia
quase... normal. E na intensidade da luta, ele tinha perdido todo o seu
embaraço e hesitação.
― Não deixe a habitual aparência de
Gaspard de poeta louco enganar você ―, afirmou Vincent, lendo minha mente. ―
Ele usou os últimos cento e cinquenta anos para estudar armamentos e é digno de
servir como instrutor de artes marciais para nós mais jovens.
Gaspard forçou
sua espada dentro da bainha. Ele se aproximou e, se curvando em reverência,
disse ―, Senhorita Kate. Devo dizer que é um prazer vê-la aqui novamente. ― Sem
a sua espada na mão, ele rapidamente perdeu seu jeito leve e se transformou no
homem nervoso que conheci tempos atrás. ― Quero dizer... sob as
circunstâncias... isso é, com Vincent estando tão inconsolável...
― Se você parar por aí ―, ri ―, Ainda
serei capaz de tomar isso como um elogio.
― Sim, sim. Claro. ― Sorriu nervosamente e
acenou na direção da espada de Vincent deitada no chão. ― Você gostaria de
fazer uma tentativa,
Kate?
― Você tem seguro de vida? ― ri. ― Pois é
bem provável que eu mate nós três se me deixar pegar uma espada.
― Você deve querer tirar o seu suéter ―,
Vincent disse. Deliberadamente, eu o tirei para revelar somente uma blusinha de
alças finas. Ele assobiou apreciativamente.
― Pare com isso! ― sussurrei, ruborizando.
Gaspard levantou
a sua espada e seu rosto se tornou calmo. Ele suavemente me incentivou com o
queixo. Vincent se posicionou atrás de mim, segurando minhas mãos entre as
suas.
A espada parecia
que tinha sido roubada do set de Excalibur ― do tipo que você vê os cavaleiros
de armaduras cambaleando sob o peso enorme. O cabo era no formato de uma cruz,
com o punho longo o suficiente para caber uma mão em cima da outra e ainda
deixaria muito espaço. Juntos, eu e Vincent levantamos a espada de onde estava.
Então Vincent soltou e ela caiu no chão.
― Caramba, quão
pesada essa coisa é? ― perguntei.
Vincent riu. ―
Nós treinamos com as espadas mais pesadas de modo que, quando formos para algo
menor e mais conveniente, seja como segurar uma pena. Tente esse, ao invés ―,
disse, e pegou um florete da parede.
― Ok, posso
lidar com isso aqui ―, ri, testando o peso na minha mão. Gaspard ficou pronto,
e eu avancei com Vincent posicionado atrás de mim, seus braços ao redor dos meus.
Sentindo seu torso despido pressionado firmemente contra as minhas costas, a
pele quente roçando meus braços nus, esqueci o que eu estava fazendo por um
segundo e a espada pendeu para baixo. Forçando a mim mesma a focar, eu a puxei
para cima. Concentre-se, pensei. Queria ter ao menos a chance de evitar passar
por uma completa humilhação.
Eles me
mostraram alguns movimentos tradicionais de esgrima em lentos movimentos, e
então mudaram para mais dinâmicos, movimentos de estilo artes marciais, de
golpe e desvio. Após alguns minutos eu já estava sem fôlego. Timidamente
agradeci Gaspard, dizendo que era melhor eu me sentar pelo resto da sessão e
depois começar do zero outra vez.
Pegando a espada
da minha mão, Vincent deu a minha cintura um aperto brincalhão e me deixou ir.
Assisti de fora pela próxima meia hora como eles mudavam de arma em arma, ambos
exibindo um domínio imponente de cada uma.
Finalmente ouvi
passos nas escadas, e Ambrose andou para dentro da sala. ― Então, Gaspard, já
terminou de brincar com pessoas fracas e está pronto para um homem de verdade?
― brincou, e então, ao me ver, me lançou um grande sorriso.
― Katie-Lou, que bom te ver. Então não
conseguimos assustá-la para sempre?
Sorri e balancei
a cabeça. ― Sem muita sorte. Parece que você talvez esteja preso a mim.
Ele me deu um
abraço e então foi para trás para me olhar afetuosamente. ― Por mim, tudo bem.
Podemos usar um pouco de colírio para os olhos por aqui.
Permanecer em
uma casa cheia de homens ia fazer bem para a minha autoestima, pensei, esses
homens estando ou não tecnicamente vivos.
― Ok, se afaste, Ambrose. Você pode ser
maior do que eu, mas eu tenho a espada ―, Vincent disse.
― Oh, sério? ― riu Ambrose e, alcançando
com uma mão, agarrou um machado de guerra da parede tão grande quanto ele. ―
Vamos ver o que você tem, Romeu! ― e nisso, os homens começaram uma briga a
três que superou qualquer coisa que eu tenha visto em filmes ― e sem nenhum
efeito especial de Hollywood.
Finalmente
Vincent pediu uma pausa. ― Não que eu não pudesse lutar o dia todo, Ambrose,
mas tenho um encontro e é falta de educação manter uma dama esperando.
― Conveniente, justamente quando você
estava começando a ficar cansado ―, riu Ambrose. Voltando para o seu professor,
diminuiu para um ritmo mais sustentável.
Vincent pegou
uma tolha da cadeira e enxugou o suor da face. ― Banho ―, disse. ― Levarei só
um minuto. ― Ele andou até um canto do cômodo e entrou em um box de pinho do
tamanho de uma sauna, com um largo chuveiro preso no topo.
Ambrose e
Gaspard continuaram o treino, o homem mais velho olhando como se pudesse seguir
por horas sem uma pausa. Assisti, impressionada, quando eles pararam e trocaram
as armas, e começaram a trabalhar o movimento de pés em estilo esgrima enquanto
Gaspard dizia as instruções.
Até o momento em
que peguei a espada de duas mãos, nunca tinha imaginado o quão difícil artes
marciais poderia ser. Os filmes fazem parecer tão fáceis, com todos os voos
sobre as paredes e lutas acrobáticas de espadas. Mas aqui, com suor, grunhidos
e força gasta em cada movimento, me dei conta de que eu era uma testemunha
verdadeira de uma habilidade de tirar o fôlego. Esses homens eram letais.
O chiado do
banho cessou e Vincent saiu com apenas uma toalha ao redor da cintura. Ele
parecia um deus divino saído de uma pintura renascentista, sua pele morena
esticada firmemente sobre o torso musculoso e os cabelos negros caindo pelo
rosto em ondas. Senti
como se estivesse num sonho. E então aquele sonho andou direto para mim e me
pegou pela mão. ― Vamos subir? ― perguntou.
Eu assenti, sem
palavras.
30
Uma vez que
estávamos de volta ao quarto, Vincent puxou algumas roupas limpas de um armário
embutido na parede. Ele sorriu para mim. ― Você está planejando assistir? ―
ruborizei e virei de costas.
― Então, Vincent ―, disse, fingindo
inspecionar sua coleção de fotos enquanto o ouvia se vestir atrás de mim. ―
Você poderia ir ao jantar nesse final de semana para conhecer meus avós?
― Finalmente ela pergunta. E infelizmente,
vou ter que recusar.
― Por quê? ― perguntei surpresa. Eu me
virei para vê-lo andando até mim com uma expressão divertida.
― Porque não vou estar em condições de
conhecer a sua família nesse final de semana, muito menos ter uma conversa ou
até mesmo sentar apoiado a uma mesa de jantar.
― Oh ―, disse ―, Quando estará dormente? ―
minha voz desbotou quando a estranha palavra saltou fora da minha língua.
Ele pegou seu
celular da mesa e checou o calendário. ― Quinta, vinte e sete.
― É Ação de Graças ―, disse. ― Temos
quinta e sexta livres da escola.
É uma pena que você não vai estar por
perto.
― O relógio não para a nenhum homem,
especialmente meu tipo. Sinto muito.
― Bem, que tal antes então? ― perguntei. ―
Hoje é segunda. Que tal amanhã à noite?
Ele concordou. ―
Isso pode dar certo. É um encontro. Então… vou conhecer seus avós? O que eu
deveria vestir? ― ele me provocou.
― Contanto que não esteja vestindo um saco
preto, eu imagino que você vai se sair muito bem ―, ri, virando de novo para a
sua coleção de fotos.
Entre as
fotografias de rostos, de crianças angelicais, soldados e adolescentes
arruaceiros, estava uma foto em preto-e-branco de uma garota adolescente. Seu
cabelo negro estava frisado num penteado estilo anos quarenta, e ela usava um
vestido florido de ombros quadrados. Ambas as mãos estavam levantadas para um
lado do rosto, onde ela estava segurando uma margarida atrás da orelha. Seus
lábios escuros estavam abertos em um sorriso divertido. Ela era deslumbrante.
― Quem é essa? ― perguntei, sabendo a
resposta antes de as palavras terem terminado de deixar a minha boca.
Vincent veio
atrás de mim e colocou as mãos nos meus braços. Ele cheirava a banho recente,
como um sabonete de lavanda e algum tipo de xampu almiscarado. Eu afundei as
costas nele e ele envolveu seus braços ao meu redor. ― Essa é Hélène ―, disse
suavemente.
― Ela era linda ―, murmurei.
Ele abaixou a
cabeça para apoiar o queixo no meu ombro, o beijando suavemente antes de
fazê-lo. ― Até que eu visse você, não me deixava pensar em nenhuma mulher além
dela. Minha vida desde a sua morte foi gasta vingando-a.
Ouvindo a dor em
sua voz, perguntei ―, Você alguma vez encontrou os soldados que fizeram isso?
― Sim.
― Você…
― Sim ―, replicou antes que eu pudesse
dizer as palavras. ― Mas isso não foi suficiente. Eu tinha que ir atrás de cada
outro vilão assassino que pudesse encontrar e, mesmo quando o pior dos
invasores e colaboradores tinha ido, não foi suficiente.
Era difícil
imaginar Vincent destruindo pessoas, sejam humanos ou revenants. Embora agora
que vi quão bem ele lutava, sabia que ele e sua tribo eram provavelmente
capazes de pegar um exército. Mas, que tipo de pessoa poderia passar mais de
meio século pensando só em vingança?
A borda fria e
perigosa que tinha me atraído e alarmado quando nos conhecemos ― tinha
fundamento. Agora eu sabia qual era. Vislumbrei sua face contorcida de fúria e estremeci
ao pensamento.
― O que foi, Kate? ― Vincent disse ―, Você
prefere que eu retire a foto dela? ― Eu me dei conta de que ainda estava
encarando o retrato de
Hélène.
― Não! ― disse, me virando para encará-lo.
― Não, Vincent. Ela é parte do seu passado. Não me sinto intimidada pelo fato
de você ainda pensar nela.
Assim que as
palavras deixaram meus lábios, percebi que estava mentindo. Eu, sim, me sentia
intimidada pela linda mulher. O único amor de Vincent. Apesar do estilo de
cabelo e as roupas a colocarem seguramente há setenta anos, ele tinha guardado
sua memória tão próximo que isso o influenciou em tudo o que tinha feito ― e
não feito ― desde que ela morreu.
― Isso foi há muito tempo, Kate. Às vezes
parece como se tivesse sido ontem, mas geralmente parece como se tivesse sido
em uma vida passada.
Isso foi em uma
vida passada. Hélène se foi, e eu espero que você acredite em mim quando digo
que você não tem concorrência, nem dela ou de qualquer outra.
Parecia que ele
tinha mais a dizer, mas não podia decidir como dizer. Eu não o empurrei. Saindo
do tópico de ex-namoradas estava bem para mim. Eu o peguei pela mão e o guiei
para longe. E mesmo deixando as fotos para trás, a sensação de mal-estar permaneceu.
― Sinta-se à vontade. Volto já ―, ele
disse e deixou o quarto. Voltei minha atenção para as estantes, que estavam
cheias de livros em várias línguas, todos misturados. A maioria deles em inglês
eu reconheci. Nós temos um gosto similar em material de leitura, pensei,
sorrindo.
Divisando uma
linha de gordos álbuns de fotos em uma prateleira mais baixa, peguei um e abri.
1974-78 estava escrito a mão na contracapa, e ri quando comecei a folhear,
vendo fotos de Vincent que estava com roupas claramente hippies e cabelos
compridos com costeletas. Mesmo que houvesse algo de ridículo sobre os estilos,
ele era tão belo como é hoje. Nada tinha mudado além dos seus acessórios.
Virei a página e
vi Ambrose e Jules em pé juntos com concorrentes afros enormes. Em outra
página, Charlotte estava maquiada em estilo Twiggy 22, com um micro vestidinho, posando
próxima a Charles, que parecia uma versão adolescente do Jim Morrison: cabelo
desgrenhado, sem camisa e com vários colares de contas. Eu não conseguia parar
de rir alto com essa foto.
― O que é tão engraçado? ― Vincent
perguntou, fechando a porta. Ele colocou uma garrafa de água e dois copos sobre
a mesa e se virou para mim.
― Aha, você descobriu meu esconderijo
super secreto de fotos antigas.
― Mostre-me mais algumas, essas são
magníficas ―, eu disse, me flexionando para cima para colocar o álbum de volta
ao lugar.
Parei onde
estava e o encontrei me observando a poucos centímetros de mim. ― Não sei,
Kate. Engolir meu orgulho o suficiente para mostrar a você fotos minhas parecendo um palhaço pela maior
parte do século vinte deverá lhe custar alguma coisa.
― Como o quê? ― ofeguei, paralisada com a
repentina aproximação. Inconscientemente, umedeci os lábios.
― Hmm. Vamos ver ―, ele sussurrou,
levantou as mãos até a minha cintura e me segurou firmemente. Seus dedos
amassaram a parte baixa das minhas costas, fazendo meus joelhos se dissolverem.
― Isso pode custar a você apenas alguns
beijos aqui...
Ele abaixou a
cabeça ao lado do meu pescoço e permaneceu com a boca a um centímetro de
distância da minha orelha, exalando uma respiração quente na minha pele. Senti
um arrepio percorrer todo o meu corpo quando ele lentamente se inclinou para
frente e pressionou seus lábios na lateral do meu pescoço.
Estremeci, e
suspirei instintivamente quando ele começou a trabalhar seu caminho com doces
beijos para baixo, então se moveu suavemente na direção da minha garganta.
Quando chegou ao local entre as clavículas,
22 Twiggy é uma
modelo, atriz e cantora britânica considerada a primeira top model do mundo.
Sua imagem quase andrógina, magérrima, pequena, com cabelos loiros muito curtos
e imensos olhos realçados com camadas de rímel e cílios postiços, tornaram
Twiggy o ícone dos anos 60.parou e disse ―, Ou talvez aqui... ―, e eu o senti
tocar cuidadosamente a ponta da língua na delicada pele neste ponto.
Gemi e coloquei
meus braços ao redor do seu pescoço. Ele me puxou para perto e, mantendo um
ritmo tortuosamente lento, começou a beijar a frente do meu pescoço centímetro
a centímetro para cima, até que alcançou o meu queixo. Minha cabeça pendeu para
trás e ele a segurou com uma mão, me apoiando, enquanto seus lábios trabalhavam
o curto caminho do queixo à minha boca.
― Ou aqui ―, disse, parando antes de roçar
seus lábios nos meus tão levemente que o meu corpo formigou em antecipação. Esperei ,
mas nada mais veio. Forçando meus olhos a se abrirem, vi que os dele estavam
fechados, uma expressão de concentração e força de vontade marcando a testa.
Ele começou a recuar e seu aperto sobre mim se perdeu.
Deixei um
segundo se passar. E então, desesperada, agarrei seu rosto e o puxei de volta para
mim. Quando nossos lábios se encontraram, me esmaguei contra ele e joguei meus
braços ao redor do seu pescoço. Ele tropeçou ligeiramente para frente,
estendendo a mão na parede para se apoiar. Senti a estante de livros pressionar
atrás dos meus ombros e, me inclinando, o puxei na minha direção.
― Uau! ― ele disse finalmente, conseguindo
se desvencilhar do meu aperto. Ele deu um passo para trás, ofegando e me
segurando longe dele. ― Kate, não vou a lugar algum ―, disse, com um olhar
falso de reprovação no rosto. ― Tenho que te alertar que o meu quarto não é o
melhor lugar para encenar um assalto sobre mim. Aqui é onde estou com a guarda baixa,
com minha cama a poucos metros de distância.
Tentei focar as
suas palavras, mas não conseguia me puxar de volta à realidade. ― E você parece
tão tentadora ―, ele disse, sua respiração irregular desacelerando. ― Que encontro
muita dificuldade de resistir em levá-la para a cama aqui e agora.
Virou-se e
rapidamente se afastou de mim, colocando as cortinas de lado e abrindo a janela
para deixar o ar frio de novembro entrar. Senti o vento gélido clarear o fogo
na minha cabeça e escorreguei pela estante de livros até ficar sentada.
― Você
deve ficar mais
confortável aqui ―,
Vincent disse, me recolhendo em seus braços fortes e me
botando no sofá. Colocou um copo de água na minha frente. ― Algo para esfriar o
seu ardor, mademoiselle? ― murmurou, com um divertido sorriso.
Assenti
agradecida e bebi profundamente o copo. Então, estendendo de volta para ele, rolei
na direção das costas do sofá com a intenção de enterrar o rosto. Oh meu Deus.
O que eu fiz? Pensei, remoendo a memória de pular sobre ele e praticamente
devorar seu rosto, justamente quando ele tinha deixado claro que tinha
terminado.
― O que foi, Kate? ― Vincent riu,
afastando minhas mãos do meu rosto avermelhado.
― Me desculpe ―, eu disse com a voz
embargada. Limpei a garganta.
― Sinto muito ter... Um... Pulado em você
em seu próprio quarto. Eu geralmente não...
― Está tudo bem ―, Vincent disse, me
acalmando, com um olhar no rosto como se estivesse prestes a se rir.
― Não, não está. Eu geralmente não me jogo
nas pessoas. Quero dizer, só beijei uns três carinhas na vida e essa é a
primeira vez que me perco desse jeito. Estou só um pouco... Constrangida. E
surpresa.
Vincent parou de
se controlar e explodiu em
risadas. Então , se inclinando e me beijando na testa, disse
―, Bem, isso é uma boa surpresa então, Kate. Mal posso esperar para ter outra
chance. Mas não aqui. Algum lugar mais seguro. Como na Torre Eiffel com
centenas de turistas japoneses ao redor. Concordei, secretamente aliviada por
ele querer ir mais devagar, mas ao mesmo tempo me perguntando o porquê.
Vincent leu meus
pensamentos. ― Não é que eu não queira levar as coisas... Além. Acredite em mim. Eu quero. ― Seus
olhos estavam em chamas.
Meu batimento cardíaco acelerou proporcionalmente. ― Só que
não completamente ainda. Quero aproveitar para te conhecer melhor sem
apressar... o evento mais importante. ― Ele correu os dedos ao longo da linha
do meu queixo, descendo até o pescoço. ― A espera será divertida, mas não vai
ser fácil.
Enquanto ele se
inclinava para roçar seus lábios nos meus, senti como se tivesse ganho
oficialmente a competição de Namorado Perfeito. Sem contestação. Embora no
momento não conseguisse me segurar em desejar que ele não fosse completamente
tão perfeito, pensei, minha temperatura estava aumentando ao seu toque quando
ele terminou de me beijar e puxou para longe. Tentando me distrair e evitar uma
combustão espontânea, endireitei minhas roupas e alisei meu cabelo bagunçado.
― É melhor nós sairmos daqui antes que eu
ignore tudo o que disse justamente agora. Vou andar com você pela casa ―, ele
disse, pegando nossos casacos e minha bolsa. Abriu a porta e esperou por mim.
― Devo dizer que tenho minhas suspeitas ―,
ele disse enigmaticamente.
― Suspeitas de que? ― perguntei.
― De que você tem uma besta selvagem se
escondendo por atrás desse bom comportamento de moça à moda antiga. ― riu.
Mordendo o
lábio, passei por ele para dentro do corredor.
31
Indo para casa
aquela noite foi como ter acordado de um longo sono. Quando estava com Vincent,
ocasionalmente esquecia sobre todas as esquisitas coisas revenants, mas ainda
sentia como vagueando pela paisagem de sono de Salvador Dalí. O mundo de vovó e
vovô parecia impressionantemente confortável depois de vinte e quatro horas em
uma pintura surrealista.
― Então? ― disse Geórgia, quando nos
sentamos para o jantar. ― Qual é o
status dessa “coisa” com o Vincent? A sua festinha do pijama deu a vocês tempo
suficiente para resolver seus problemas? ― piscou perversamente para mim e
jogou um pedaço de pão na boca.
Vovó deu um
tapinha em seu braço reprovando-a e disse ―, Katya irá nos contar o que quiser
que a gente saiba e quando quiser.
― Tudo bem vovó ―, ofereci ―, Geórgia não
pode se conter em viver indiretamente através de mim, já que não tem vida própria
para contar!
― Ha! ― disse Geórgia.
Vovó revirou os
olhos, obviamente se perguntando como sua pacifica casa havia tão rapidamente
se transformado em uma fraternidade.
― Então? ― perguntou Geórgia, incentivando
agora.
― Parece que as coisas estão se ajeitando
entre nós ―, disse e, me virando para vovó, perguntei ―, Tudo bem se ele vier
jantar amanhã à noite?
― Claro ―, respondeu com um amplo sorriso.
― Uhh-huu! ― gritou Geórgia. ― Sem mais
Kate definhando no quarto. Eu deveria ir à casa dele e agradecer pessoalmente.
― Já chega Geórgia ―, disse vovó.
― Você pode agradecê-lo amanhã à noite ―, eu
disse e rapidamente mudei de assunto.
Às sete e meia,
da noite seguinte, recebi uma mensagem de Vincent: Boa noite, ma belle. Eu
poderia, por favor, ter seu código de acesso?
Enviei a ele o
código de quatro números e duas letras, e um minuto depois a campainha tocou.
Apertei o interfone, abrindo a porta com um zumbido. ― Terceiro andar à
esquerda ―, eu disse pelo viva-voz.
Meu pulso
acelerou quando abri a porta da frente e fiquei no corredor esperando por ele.
Ele subiu três lances de escadas em tempo recorde, carregando um enorme buquê de
flores em uma mão e uma sacola na outra. ― Esses são para os seus avós ―, ele
disse, se inclinando para baixo, para me dar um beijo rápido e suave nos
lábios.
A pulsação do
meu coração foi à mil. Vincent levantou as sobrancelhas sugestivamente. ― Você
vai me convidar para entrar ou está me testando para ver se posso atravessar a
entrada sem um convite? ― então murmurou ―, Sou um revenant, não um vampiro,
chérie. ― Sua expressão provocante me fez esquecer o nervosismo e, tomando uma profunda
respiração para me recompor, alcancei sua mão e o guiei pela porta.
― Vovó, ele está aqui ―, eu disse, ao
mesmo tempo em que ela saia da cozinha em direção a nós. Ela tinha ido ao salão
de beleza aquela manhã e estava deslumbrantemente elegante com um vestido
preto-e-branco de lã e saltos de quatro centímetros.
― Você deve ser o Vincent ―, ela disse, se
inclinando para beijar suas bochechas, seu perfume de essência de gardênia nos
envolvendo como um abraço de vó. Ela recuou um passo para conseguir olhá-lo.
Parecia estar lhe dando uma nota e, pela sua expressão, ele estava conseguindo
um A.
― Para a senhora ―, ele disse, estendendo
para ela o enorme buquê.
― Oh, de Cristian Tortu ―, ela disse,
espiando o cartão da floricultura.
― Que adorável.
― Deixe-me pegar o seu casaco ―, eu disse,
e Vincent encolheu os ombros tirando seu paletó, revelando uma camisa azul
turquesa claro de algodão presa sob as calças pretas.
Mal podia
acreditar que esse garoto esmagadoramente maravilhoso tinha se vestido trazido
flores expressamente para impressionar a minha família. Tinha feito tudo por
mim.
― Vovô, eu gostaria de apresentá-lo a Vincent
Delacroix ―, eu disse, quando o meu avô se aproximou, vindo do seu estúdio.
― Prazer em conhecê-lo, senhor ―, Vincent
disse de uma maneira formal quando se apertaram as mãos. Ele segurou a sacola
acima e disse ―,
Para o senhor.
Pegando-a, vovô
puxou a garrafa de dentro e pareceu assustado quando inspecionou o rótulo. ―
Chateau Margaux, 1947? Onde você encontrou essa?
― É um presente do meu tio, que disse já
ter tido o prazer de conhecer a senhora ―, Vincent disse olhando de novo para
vovó.
― Oh? ― ela disse, seu interesse
despertado.
― Ele trouxe recentemente à senhora uma
pintura para reparo, senhor
Grimod de La Reyniere.
Os olhos de vovó se ampliaram. ―
Jean-Baptiste Grimod de La
Reyniere
é o seu tio?
Vincent
assentiu. ― Vivo com ele desde que meus pais faleceram.
― Oh ―, vovó disse, seus olhos se
suavizando ―, Sinto muito em ouvir que você tem isso em comum com nossa Katya.
Pressentindo
mais questões profundas, peguei Vincent pela mão e rapidamente fui até a sala
de estar. ― Você gostaria de alguma coisa para beber? Talvez um pouco de
champanhe? ― vovô perguntou enquanto sentávamos próximos ao fogo.
― Isso seria ótimo. Obrigado. ― disse
Vincent.
― Sim, por favor ―, eu disse, acenando
para vovô, e ele deixou a sala justamente quando Geórgia fez seu caminho para
dentro dela.
Ela apareceu
lindíssima em um vestido verde de seda que fez o meu simples vestido preto
parecer monótono em
comparação. Vincent se levantou educadamente. ― Geórgia ―,
começou ―, Eu sei que Kate se desculpou por mim depois que a deixamos no
restaurante. Mas somente gostaria de dizer a você eu mesmo. Desculpe-me. Nunca
teria feito isso se Ambrose não estivesse em tão péssimo estado. Mesmo assim,
foi imperdoável.
― Eu me considero uma pessoa muito
compreensiva ―, ela disse, com o tom do falso sotaque sulista chegando apenas
no fim. ― Se você não fosse tão amaldiçoadamente fofo, não tenho certeza se
poderia deixar passar essa. No entanto, sob tais circunstâncias..., ela parou
enquanto beijava lentamente suas bochechas.
― Pelo amor de Deus, Geórgia! Você poderia
tentar deixar um pouco dele para mim? ― Exclamei, balançando a cabeça,
desacreditando.
― Levarei isso como um sinal de que estou
perdoado ―, disse Vincent, rindo.
As refeições na
França podem durar horas. E quando as visitas são convidadas, geralmente assim
são. Felizmente, como esta noite era uma noite escolar, passamos somente meia
hora por cada degustação. Não queria que meus avós tivessem tempo suficiente
para chegar muito longe, passando do estágio de educada conversa para o estágio
de informações pessoais com o meu misterioso convidado.
― Então,
Vincent, eu poderia deduzir que você é um estudante? ― Vovô perguntou entre os
aperitivos. Vincent respondeu que estava estudando direito. ― Mas tão jovem?
Não querendo bisbilhotar, mas quantos anos... ― Meu avô deixou a sentença
desaparecer, assim não teria que perguntar diretamente.
― Eu tenho dezenove. Mas meu tio tem me
tutorado privativamente, então estou uns dois anos adiantados.
― Garoto de sorte! ― Vovô assentiu,
aprovando.
Depois disso,
Vincent defletiu mais perguntas pessoais e fazendo perguntas também. Vovô
estava encantado em dizer a ele detalhes sobre seus negócios e as viagens que
tinha feito para pegar os objetos raros que negociava e que o tinham levado por
todo o Oriente Médio e África do Norte.
Vincent
mencionou seu interesse por armamentos clássicos e antigos, e só aquela conversa
nos levou para o prato principal, uma carne macia como manteiga. Vovó perguntou
a ele sobre a coleção de pinturas do seu tio e pareceu impressionada com o seu
amplo conhecimento sobre artistas e estilos dos períodos.
Pelo tempo que
levou até chegarmos à sobremesa, Vincent e minha família estavam conversando e
sorrindo como se eles se conhecessem há anos. Ele e Geórgia se provocavam e me
provocavam, e eu podia ver vovó olhando entre mim e Vincent, e parecia
satisfeita com o que via.
Finalmente, nos
sentamos nas confortáveis cadeiras da sala de estar com expressos descafeínados
e um prato de trufas de chocolate. Vovó perguntou a Vincent se ele gostaria de
se juntar a nós para o jantar em duas semanas. ― É o aniversario de dezessete
anos da Kate em nove de dezembro, e desde que ela se recusa a nos deixar dar a
ela uma festa, pensamos em fazer um jantar informal aqui em casa.
― Agora isso é
uma informação muito interessante ―, Vincent disse, sorrindo abertamente para
mim.
Coloquei minha
cabeça entre as mãos e a balancei. ― Eu não gosto de fazer grandes coisas em
meus aniversários ―, gemi.
Vincent
gesticulou para os outros e disse ―, Bem, muito ruim que o resto de nós gosta!
Fiz uma careta,
mas concordei com a cabeça.
― Agora que estamos estendendo convites
pra lá e pra cá, que tal vir comigo e Kate na sexta-feira à noite, Vincent? ―
perguntou Geórgia.
― Eu amaria, mas já tenho planos para essa
noite. ― Ele piscou para mim.
― Não com a Kate, você não tem! ― disse
Geórgia defensivamente. ― Ela prometeu ao meu amigo Lucien ir a uma festa em
seu clube. E pelo o que escutei, você deve querer acompanhá-la, desde que ela
prometeu suprir a colheita de lindos amigos para todas as damas solteiras que
aparecerão... ―
Geórgia parou no
meio da sentença, vendo a expressão sombria se espalhando pelo rosto de
Vincent.
― Você está falando sobre Lucien Poitevin?
― ele perguntou.
Geórgia
confirmou. ― Você o conhece?
O rosto de
Vincent se tornou vermelho ardente, nitidamente, em segundos. Ele
parecia um cozinheiro pressionado a ponto de explodir. ― Eu sei sobre ele. E,
muito honestamente, mesmo se eu já não tivesse planos, teria que recusar. ― Eu
podia dizer que ele estava se esforçando muito para soar calmo.
― Vincent! ― murmurei. ― O que... ― Ele me
cortou pegando a minha mão e, não intencionalmente (eu espero), a apertou tão
forte que doeu. Isso é oficialmente muito ruim, pensei.
― Quem é esse Lucien Poitevin? ― perguntou
vovô severamente, encarando Geórgia.
― É um amigo muito bom! ― ela retorquiu,
olhando para Vincent.
A sala
permaneceu silenciosa. Vincent finalmente se inclinou na direção dela e disse
em sua voz mais diplomática ―, Eu não diria isso se não tivesse cem por cento
de certeza, mas Lucien Poitevin não merece ficar no mesmo recinto que você,
Geórgia, muito menos ser contado como um de seus amigos.
Teve uma
coletiva caída de bocas. Geórgia, por sua vez, parecia ter perdido as palavras.
Como se tivesse sido estapeada. E, então, um balde de gelo a trouxe de volta.
Vovó e vovô se
deram um olhar que deixou claro que tinham estado preocupados com as atividades
noturnas de Geórgia.
Geórgia deu a
ambos, a mim e Vincent um olhar enfurecido, então se levantou abruptamente e
saiu da sala.
Vovó quebrou o
silêncio. ― Vincent, você poderia esclarecer porque acha que Geórgia não
deveria se socializar com este homem?
Vincent estava
encarando a mesa de café. ― Me desculpe ter feito esse agradável jantar terminar
com más notícias. É só que sei coisas sobre essa pessoa e não desejaria a
ninguém com quem me importo ter alguma coisa a ver com ele. Mas já disse o
suficiente. Novamente, minhas desculpas por chatear a sua neta em sua própria
casa.
Vovô balançou a
cabeça e estendeu a mão como se isso não fosse um problema, e vovó se levantou
para recolher as xícaras. Quando me levantei para ajudá-la, ela disse ―, Agora,
não se preocupe, Vincent. Nós tentamos manter certa medida de abertura e
honestidade nesta casa, então seus comentários sempre serão bem-vindos. Tenho
certeza que Geórgia irá se desculpar pelo seu temperamento da próxima vez em
que o ver.
― Não aposte
nisso ―, eu disse sob a respiração.
Escutando-me,
Vincent concordou tristemente. ― Devo ir embora ―, disse. ― Tenho certeza de
que todos vocês tem a frente um dia ocupado amanhã.
― Vou te acompanhar ―, eu disse,
pretendendo interrogá-lo tão logo que chegássemos ao lado de fora.
Vovô se levantou
para pegar o casaco de Vincent. Depois de agradecer meus avós pela noite,
Vincent pisou dentro do corredor. Eu o segui, pegando o meu casaco e fechando a
porta atrás de nós.
― O que... ― comecei.
Vincent colocou
um dedo em seus lábios e nós sustentamos um tenso silêncio até que chegamos lá
fora. Assim que a porta bateu atrás de nós, ele me agarrou pelos ombros e olhou
intensamente meu rosto. ― Sua irmã está correndo grave perigo.
Minha confusão
se transformou em alarme. ― Sobre o que você está falando? O que há de errado
com Lucien?
― Ele é meu
inimigo de espada. O líder dos numa de Paris.
Eu senti como se
alguém tivesse me levado para cima e me arremessado contra uma parede de
tijolos. ― Você tem certeza que estamos falando sobre a mesma pessoa? ―
perguntei, me recusando a acreditar. ― Porque quando eu o conheci-
― Você o conheceu? ― Vincent se assustou.
― Onde?
― No clube onde fui dançar com Geórgia.
― O mesmo lugar em que viu Charles?
― Sim. Na verdade, Charles estava falando
com ele do lado de fora quando sai. Eu não vejo...
― Não. Isso é terrível ―, Vincent disse
fechando os olhos.
― Vincent. Diga o que está acontecendo ―,
eu disse, um sentimento doentio crescendo na minha garganta. Se Lucien era um
monstro, o que isso significava em relação a minha irmã? Estremeci quando
pensei no beijo que Geórgia compartilhou com Lucien aquela noite no clube. Ela
obviamente não tinha ideia sobre o seu lado negro. Geórgia não conseguia ver
além do seu próprio nariz quando se tratava de intuição. Como quando a minha
mãe lamentou uma vez que um namorado da Geórgia foi preso por roubo. “Ela não
consegue ver o mau nas pessoas. Sua irmã não é estúpida, apenas não possui um
pingo de intuição”. Dessa vez aquela falha poderia ser fatal, pensei.
Vincent tirou
seu celular do bolso. ― Jean-Baptiste? Lucien tem Charles. Tenho certeza.
Sim... Estarei aí em um minuto.
― Por Favor! Fale comigo! ― Implorei a
ele.
― Tenho que ir para casa. Você pode vir
comigo?
― Não. ― balancei a cabeça. Eu tinha que
voltar e limpar a bagunça que o Furacão Vincent tinha deixado na minha família.
― Tenho que ir ―, ele disse.
― Então ando com você até a sua casa ―,
insisti. ― Você pode me falar pelo caminho.
― Bom ―, ele disse pegando a minha mão e
começamos a andar sob as lâmpadas que iluminavam todo o caminho até a casa
dele. ― Então, Kate.
Você sabe como
tem um cara ruim em toda história?
― Acho que sim.
― Bem, Lucien é o cara ruim da minha
história.
― O que você quer dizer com da sua
história? ― aventurei inquieta. ― Quero dizer, é apenas o caso de vocês dois
estarem em lados opostos na divisão do bem e do mal?
Vincent balançou
a cabeça. ― Não. Sou eu contra ele. Nós temos uma longa história.
― Espere ―, disse, juntando as peças do
quebra-cabeça na minha mente. ― É ele o cara a quem vocês sempre estão se
referindo? O Homem, ou o que quer que seja? ― fiz uma pausa, pensando. ― Foi
Lucien quem você viu na Village Saint-Paul... e quem Jules viu próximo, quando
Ambrose foi esfaqueado?
Vincent
assentiu.
― Quem é ele? ― perguntei.
― Como humano, durante a Segunda Guerra
Mundial, ele era parte da milícia francesa, ou La Milice , uma força
paramilitar formada pelo governo francês já controlado pelos alemães para lutar
contra a Resistência.
― O Regime Vichy?
Vincent
assentiu. ― Além de executar e assassinar membros da Resistência, a Milícia
ajudou a mandar judeus para a deportação. Eles eram famosos por seus métodos de
tortura. Podiam extrair informações e confissões de qualquer pessoa que
capturassem.
― Para ser honesto, eles eram mais perigosos
que o Gestapo ou SS, desde que eram um de nós: falavam a língua, sabiam a
topografia das cidades e eram amigos e vizinhos das pessoas que traíram. ―
Vincent me olhou nos olhos. ― Foi um período sombrio para o meu país.
Assenti e
permaneci em silêncio.
Nós atravessamos a avenida arborizada e continuamos em
direção a casa.
― Lucien traiu centenas, ou indiretamente,
milhares de seus compatriotas até suas mortes, torturando e assassinando em seu
caminho através de organizadas fileiras. Ele rapidamente se tornou um homem de
alto posto do Ministério de Informações do Regime Vichy e do Ministério de
Propaganda.
― Em junho de 1944, um grupo de rebeldes
da Resistência, vestidos como membros da Milícia, invadiram o prédio do
Ministério de Informações para onde Lucien e sua esposa haviam se mudado por
segurança. Era tarde da noite. Eles encontraram os dois na cama e os mataram.
Meu queixo caiu.
Parecia que ele estava contando a história como experiência própria. ― Você era
um deles? ― ousei.
Vincent assentiu.
― Junto com uma dupla de outros revenants. Os outros eram humanos que não
sabiam o que nós éramos.
― Mas Lucien ainda era humano então. Você
me disse que revenants tentam não matar humanos.
― Nossa ordem era capturar e aprisionar
Lucien até que pudesse ser julgado pelas autoridades pelos seus crimes. Mas um
humano em nosso grupo teve a sua família assassinada pelo próprio Lucien e não
conseguiu se segurar. Atirou em ambos.
Estremeci com a
sangrenta cena reencenada em minha mente. Em histórias como essa você sempre
quer que os caras ruins sejam levados. Mas pensando sobre o ato real: ser
baleado com sua esposa... Em sua cama. É muito horrível considerar.
― Lucien se lembrou de nossos rostos
daquela noite e, quando voltou como um revenant, nos caçou. Foi bem sucedido em
matar a maioria dos humanos que tinha feito parte do assassinato e foi
eventualmente capaz de destruir os outros dois revenants envolvidos, mas nunca
conseguiu me matar. Nem eu a ele.
― Então por que no mundo poderia Charles
ter ido falar com ele? ― perguntei.
― Isso é o que você tem que entender sobre
Charles. Ele não é uma criança ruim. É apenas confuso. Eu disse a você que ele
está tendo um período difícil aceitando o nosso destino. É uma existência
complicada, continuamente vivendo e morrendo. Quando você salva alguém e os vê
seguindo em frente e tendo uma boa vida, faz tudo parecer que vale a pena. Mas,
às vezes, as coisas não são desse jeito.
― A pessoa que você resgata de uma
tentativa de suicídio tenta de novo e é bem sucedida. O jovem que você salva em
um acordo de drogas ruim e, não vendo isso como um sinal para consertar seu
caminho, retorna a bagunça que estava antes. Essa é uma das razões pela qual
Jean-Baptiste não quer que a gente acompanhe a vida de nossos resgatados tão de
perto.
― Mas um dos piores sentimentos é quando
você tenta e fracassa. Charles não pôde salvar a vida daquela garotinha. Salvou
a outra criança, mas ele não consegue se focar nesse sucesso. Está obcecado com
o seu fracasso. E com as consequências da mãe da criança.
― Ele tem um bom coração ―, continuou
suavemente. ― Talvez um coração bom demais. Mas essa foi à gota d’água para
ele. A única razão pela imagino para Charles ter ido até Lucien é a de que ele
não consegue mais lidar com nosso estilo de vida. Quer morrer. Se ele se
colocar em suas mãos, tudo o que tem a fazer é pedir a eles para matá-lo e
queimar o seu corpo. E eles ficariam todos muito felizes em cumprir.
― Ele está cometendo suicídio? ― parei de
andar, horrorizada com o pensamento de Charles se entregando para a morte.
É o que parece.
― Vincent pegou o meu braço e me puxou em direção a ele. ― Nós estamos quase
lá.
― Se Lucien é um assassino cruel, então...
o que acontece com a Geórgia? ― a história de Charles era de cortar o coração,
mas tudo o que eu conseguia pensar no momento era sobre o perigo em que a minha
irmã poderia estar.
― Qual é a relação deles? ― Vincent
perguntou.
― Parece que estão meio que saindo.
― Você acha que é sério?
― Geórgia não leva a sério.
Vincent pensou
sobre isso. ― Lucien está sempre cercado de mulheres e não deve ter nenhuma
razão para matar alguém como Geórgia. Se ela não se deixar ser sugada para
dentro do clã e suas atividades, então o pior que provavelmente vai acontecer é
ela ser usada e levar um fora dele.
Bem, isso é
reconfortante, pensei, não reconfortante completamente.
Ela está
trocando saliva com um homicida maníaco, mas se não ficar muito envolvida, deve
ficar bem. Embora eu ainda estivesse aterrorizada, as palavras de Vincent tinham
feito eu me sentir menos apavorada. Geórgia nunca ficou muito envolvida com
alguém além dela mesma.
Nós chegamos ao
portão de Jean-Baptiste. Vincent pegou minha mão na sua. ― Escute. Sinto muito
se baguncei as coisas entre a sua irmã e seus avós hoje à noite. Mas não podia
simplesmente sentar lá e não dizer nada depois de tê-la ouvido mencionar
aquele... Monstro.
― Não, você estava certo. E não importa
onde você dissesse isso, em frente de todos ou de ninguém: Geórgia teria a
mesma reação.
― Você tem que falar com ela ―, pediu. ―
Mesmo que as coisas não cheguem muito longe com Lucien, ela está saindo com
algumas pessoas perigosas.
Concordei. ―
Farei o meu melhor.
O perigo estava
constantemente espreitando nas sombras de Vincent e sua tribo. Mas agora um dos
membros da minha família estava em perigo, isso pareceu muito mais real. E me
fez sentir mais próxima a ele. Nós agora tínhamos um inimigo em comum. Mas esperava que
Geórgia pudesse me ouvir e se retirar daquela ameaça.
― O que você vai fazer agora? ― perguntei.
― Vou juntar os outros e começar a caçar
Lucien. ― A voz de Vincent mudou para um oitavo menor e seus olhos ardiam de
fúria. Ele parecia letal.
― Você vai ser cuidadoso, certo? ―
Perguntei, o medo me agarrando quando percebi o que isso podia significar.
― Eu devia pegá-lo esta noite se pudesse.
Mas tem uma razão pela qual não fui capaz de destruí-lo ainda. Se ele não quer
ser encontrado, nós não vamos encontrá-lo. As cartas estão nas mãos dele.
Então vendo
minha expressão, algumas das duras linhas se foram de suas feições. ― Não se
preocupe, Kate. Tente vir depois da escola amanhã, se puder.
― Ainda estará vivo amanhã depois da aula?
― Sim ―, ele disse com os lábios. Mas seus
olhos estavam dizendo uma história diferente. Ele iria fazer de tudo para
destruir este inimigo. Isso deixou claro que a sua própria segurança não era a
prioridade.
― Sinto muito ter que te deixar desse
jeito ―, Vincent disse, me puxando para ele e roçando os lábios nos meus. Cada
ponto de contato com o seu corpo parecia atirar um banho de chamas ardentes
dentro de mim. É o perigo um afrodisíaco? Eu me perguntei. Preferia tê-lo a
salvo do que ter uma celebração de quatro de julho nos meus nervos. Mas desde
que eu não tinha
o que dizer, o
agarrei firmemente e correspondi ao beijo. Muito cedo, ele se afastou. ― Tenho
que ir.
― Eu sei. Boa noite, Vincent. Por favor,
fique a salvo.
― Boa noite, mon ange.
Bati levemente
na porta do quarto da Geórgia. Ela abriu violentamente um segundo depois e
ficou lá, parecendo estar furiosa. ― O que diabos foi aquilo? ― ela endureceu, batendo
a porta para fechar atrás de mim.
Eu me empoleirei
na borda da sua cama enquanto ela se jogava de barriga para baixo no fofo
tapete branco no meio do quarto e me encarava.
― Sinto muito se Vincent a embaraçou na
frente do vovô e da vovó.
Mas pelo que ele
me disse, Lucien realmente soa como um problema. Geórgia quase cuspiu sua
réplica. ― Oh é? O que exatamente ele disse?
― Disse que Lucien está meio que... em um
tipo de organização mafiosa. ― Tentei me lembrar de como Vincent tinha descrito
os numa aquela noite no restaurante Marais. ― E que os seus colegas estão
envolvidos em todos os tipos de acordos ilegais.
― Como o quê?
― Prostituição, drogas-
― Oh, dá um tempo! ― Geórgia revirou os
olhos. ― Você viu o Lucien. Ele é empresário. Tem bares e clubes por toda a
França. Por que no mundo ele iria ao menos precisar estar envolvido com coisas
desse tipo? ― ela olhou para mim com desdém.
― Realmente não acho que Vincent iria inventar
algo assim ―, rebati.
― É mesmo? ― perguntou sarcasticamente. ―
Como ele o conhece?
― Não o conhece ―, menti, a última coisa
que queria era fazer uma trama entre Vincent e Lucien com Geórgia e eu no meio.
― Ele apenas conhece sua reputação.
Parei, pesando
quão longe poderia ir. ― Ele disse que há até boatos de que Lucien está
envolvido com assassinatos.
Geórgia pareceu
chocada por um segundo e então balançou a cabeça. ― Tenho certeza que no mundo em que Lucien vive, deve
existir alguns acordos obscuros. Deve fazer parte dos negócios. Mas sugerir que
ele possa trabalhar com assassinos... sinto muito, só que não acredito.
― Está certo ―, disse. ― Você não tem que
acreditar nisso. Mas precisa vê-lo novamente?
― Kate, nós mal nos encontramos. Não é
sério. Só vemos um ao outro em público. Tenho certeza que ele sai com outras
pessoas e eu também saio.
Nenhuma grande
coisa!
― Bem, se não é grande coisa e tendo pelo
menos uma pequena chance de ele ser problema, então você não pode apenas...
você sabe... dar um fora nele? Por favor, Geórgia. Não quero me preocupar com
você.
Por uma fração
de segundos, após ouvir a minha súplica, ela pareceu incerta, mas então uma
teimosa expressão roubou a sua linda face. ― Não tenho que vê-lo de novo. Mas
vou vê-lo de novo. Não acredito em uma só palavra que você e Vincent disseram
sobre ele. E por que você e seu novo namorado estão tão envolvidos na minha
vida privada de qualquer maneira?
Sabia que não
podia dizer uma palavra que pudesse mudar sua mente. E como eu poderia dizer
isso de qualquer forma? “A razão pela qual o meu namorado odeia o seu é porque
Vincent é um zumbi bom e Lucien é um zumbi mau?” Eu só podia esperar que ela
perdesse o interesse por Lucien antes que algo ruim acontecesse.
Ela estava realmente
brava agora. Suas poucas sardas estavam ficando vermelhas de raiva. Conhecia a
minha irmã, e quando ela chegava a esse ponto, não havia mais argumentação com
ela. Comecei a me levantar, mas ela surgiu em pé e bateu a porta para mim.
Abrindo-a, apontou o corredor. ― Vá.
32
No dia seguinte,
Geórgia saiu para a escola antes mesmo de eu chegar à mesa do café da manhã.
Detrás do jornal, vovô perguntou cansadamente ―, Vocês, garotas, estão na
Quarta Guerra Mundial agora ou é a Quinta?
Eu não a vi
entre as aulas e ela desapareceu depois disso. Minha irmã estava me evitando e
isso doía. Mas sabia que tinha feito a coisa certa a alertando sobre Lucien.
Vincent tinha dito que nada deve acontecer a ela.
Mas nessas
circunstâncias, “deve”, para mim, era uma palavra muito grande.
Fui direto para
a casa de Jean-Baptiste voltando da escola, mandei mensagem para Vincent da rua
e os portões se abriram na hora que cheguei. Ele estava esperando por mim, a
mesma expressão preocupada no rosto que estava quando me deixou na noite passada.
― Alguma novidade? ― perguntei enquanto andávamos para o seu
quarto.
― Não. ― Ele se adiantou na frente e abriu
a porta educadamente, parando ao lado para me deixar passar antes de me seguir
para dentro. Havia algumas vantagens em sair com um cara de outra época,
pensei. Ainda que eu seja uma grande apreciadora da igualdade de sexos, nota
alta de cavalheirismo era ótimo.
― Nós estivemos fora à noite toda
procurando, parece que todos os numa da cidade apenas se levantaram e
desapareceram, nós fomos a cada bar e restaurante que sabemos que eles tem um
dedo podre, e só vimos empregados humanos ― sem rastros deles.
― Isso poderia ter sido realmente
perigoso, não poderia? ― tentei imaginar o que poderia ter acontecido em um
impasse entre os bons e os malignos revenants. Os mortos-vivos saltando ao
redor com espadas entre uma aterrorizada clientela do bar.
― Se eles estivessem lá, então poderia ter
sido perigoso. Mas com humanos em volta eles não se atreveriam a nos atacar.
Lembrei-me de
Ambrose sendo esfaqueado apenas a alguns metros de uma multidão de humanos e
suspeitei que Vincent estivesse minimizando o perigo para me tranquilizar.
― Mas ninguém estava à vista para nós
interrogarmos. Eles não têm uma residência fixa como nós. Então é impossível
saber onde estão baseados.
― Como Charlotte está lidando com isso? ―
perguntei.
― Nada bem ―, Vincent disse. ― Ela está
fora com os outros neste momento procurando.
― Por que você não está com eles?
― Esta noite é a “grande noite”. E eu já
estou me sentindo fraco. Eu não seria de grande ajuda se eles realmente
encontrassem alguma coisa.
― Então, quando isso começa... a coisa da
dormência? ― perguntei.
― Durante a noite ―, respondeu. ― Ao
anoitecer começo a dormência, geralmente termino assistindo filmes e ingerindo
muitas calorias, desde que não presto mais para qualquer outra coisa. ― Ele
acenou com a mão a mesa de café que estava preparada com chá e uma seleção de
mini pastéis. Olhei para ele divertida. ― Jeanne?
― Quem mais? ― respondeu com uma risada. ―
Toda vez que você dá uma parada ela age como se estivéssemos recebendo visitas
da realeza.
― Como ela deveria ―, eu disse,
sustendando o meu queixo um pouco mais no alto antes de me jogar no sofá a fim
de atacar um mini bolo de chocolate. ― Então, onde está a TV? ― perguntei.
― Oh, eu assisto em nossa sala de cinema.
Ambrose é um fã de filmes e convenceu Jean-Baptiste a construir nosso próprio
cinema aqui. É no porão, ao lado da academia.
― Agora isso sim é algo que eu amaria ver
―, eu disse.
― Devo ter apenas um ou dois dos seus
filmes preferidos esperando lá embaixo por você. Podíamos até mesmo pedir uma
pizza e jantar em grande estilo. Isso é um encontro?
― Um encontro de verdade! Eu aceito! ―
quase gritei, e então, tentando acalmar meu entusiasmo, continuei ―, A não ser
que você me diga que será uma companhia muita chata, é claro. Caso contrário,
apenas ficarei bem sentada aqui, encarando seus olhos a noite toda.
Vincent parou e,
então, me olhando desconfiadamente por um segundo, sorrindo me perguntou ―,
Sarcasmo?
― Sim ―, ri. ― Você é bem rápido para um
homem de idade.
― Droga, e eu pensando que tinha
finalmente encontrado uma romântica de verdade ―, ele brincou e então hesitou
quando uma séria expressão roubou sua face. ― Falando em chata companhia, você
se importa em conversar sobre o que iremos fazer enquanto eu estiver dormente?
― Claro que não ―, eu disse, me
perguntando o que poderia possivelmente vir depois.
― Amanhã eu estarei morto de corpo e
mente. Preferiria que você não me visse enquanto eu estiver incapaz de me
comunicar. Mas, começando sexta de manhã, minha mente estará acordada. Então,
se você não sentir como se eu a estivesse perseguindo, tenho um ok seu para ir
te visitar... na forma volante?
― Hmm. Esta é a oferta mais estranha que
já recebi ―, ri. ― Não sei... você pode fazer alguma coisa para me deixar saber
que está lá? Como me escrever uma mensagem de texto fantasmagórica? Ou fazer
minha caneta se mover?
Ele balançou a
cabeça. ― Só se alguém que consegue me ouvir estiver junto, como Charlotte ou
Jules.
Pensando no meu
quarto bagunçado, que eu esperava que ele já não tivesse visto secretamente
enquanto flutuava por aí, continuei ―, Você não vai estar a serviço “andando”
com alguém?
Vincent sorriu,
pequenas linhas de fadiga cresceram nos cantos dos seus olhos. ― Bem, sim, se
alguém estiver andando estarei junto. Mas quero te ver no meu tempo de
inatividade.
― Então por que não venho aqui? ―
Perguntei. ― Desse jeito quem quer que esteja na casa pode “interpretar” para
mim.
― Se você não se importa, seria bom ―,
Vincent disse. Notei que ele estava se apoiando no sofá com uma mão.
― Você está bem, Vincent? ― perguntei.
― Sim. Ainda que esteja começando a me
sentir fraco. Nada demais. ― Ele exalou profundamente e sentou-se no sofá
próximo a mim. ― Então amanhã é um “não-tem-o-que-fazer”, mas eu amaria te ver
na sexta.
― Fechado. Virei pela manhã. Desde que
amanhã é Ação de Graças nos Estados Unidos, as aulas estarão suspensas amanhã e
sexta. Vou trazer o meu dever de casa e fazê-lo aqui.
Pedimos pizza e
nos enrolamos no sofá para esperá-la chegar. ― Como foi ontem à noite com
Geórgia? ― ele perguntou.
Tinha estado
propositalmente evitando esse assunto, esperando que eu não tivesse que contar
a Vincent que tinha falhado.
― Não estamos nos falando ―, admiti.
― O que aconteceu?
― Não disse a ela que você conhecia
Lucien. Estava com medo que ela pudesse dizer alguma coisa a ele. Apenas falei
a ela que você conhecia a reputação dele e os tipos de acordos criminosos que
ele e seus associados eram conhecidos por aí. Ela não acreditou. Quer que você
e eu fiquemos fora dos seus assuntos.
― Você está chateada ―, disse, envolvendo
seus braços ao meu redor.
― Sim. Estou chateada... não porque
Geórgia e eu estamos brigadas. Isso não é nada fora do normal. Estou chateada
porque tenho medo por ela.
Ela me disse que
eles só se veem casualmente. Mas não posso deixar de me preocupar.
― Você fez tudo o que podia ―, Vincent
disse. ― Não pode controlar a sua irmã. Mas tente afastar isso da sua cabeça.
Mais fácil dizer
do que fazer.
Depois que
nossas pizzas foram entregues, nos mudamos para baixo até a sala de cinema e
nos sentamos em um enorme sofá velho revestido de couro para assistirmos Bonequinha
de Luxo23, que Vincent tinha puxado da vasta coleção deles de filmes. Sentados
lá na sala escura, mastigando pedaços de cogumelos e parmesão, pela primeira
vez realmente senti que Vincent e eu estávamos fazendo algo real, normal, que
casais fazem... Isto é, se eu não parasse para pensar sobre o que iria
acontecer com ele depois da meia-noite.
Saí por volta
das nove. Ele insistiu em andar comigo até em casa e nós caminhamos pelas ruas
escuras de Paris em passos de lesma. Ele parecia tão fraco, como se tivesse
realmente oitenta e sete anos de idade. Era difícil acreditar que esse mesmo
rapaz tinha estado empunhando uma espada do peso de uma poltrona há poucos
dias. Quando chegamos a minha porta, ele me deu um beijo lento e carinhoso, e
se virou para ir embora.
― Se cuide ―, eu
disse, não sabendo a etiqueta para dizer tchau a alguém que está indo passar os
próximos três dias morto. Vincent piscou e me jogou um beijo, virou a esquina e
ele se foi.
23 O título
original é Breakfast at Tiffany’s.
33
Vovó tinha nos
perguntado se gostaríamos de ter um jantar tradicional de Ação de Graças, mas
nem Geórgia nem eu nos sentimos no clima. Qualquer coisa americana me lembrava
casa. E casalembrava meus pais. Perguntei a vovó se poderíamos tratar esse como
se fosse qualquer outro dia e ela concordou.
Então passei o
Dia de Ação de Graças na minha cama lendo, tentando não pensar no meu namorado
morto em sua cama a poucos quarteirões de distância.
Na manhã de
sexta-feira, andei cinco minutos da minha casa até a de Jean-Baptiste. Do lado
de fora dos grandes portões, digitei o código que Vincent tinha me enviado
dentro da caixa de segurança e observei os portões deslizarem se abrindo.
Uma vez em
frente à porta de entrada, não estava certa se eu deveria bater ou apenas
entrar. Quando levantei a mão, a porta se abriu e Gaspar estava lá,
nervosamente esfregando as mãos.
― Mademoiselle, Kate ―, ele disse, me
dando um pequeno cumprimento esquisito. ― Vincent me disse que você estava
aqui. Entre, entre. ― Ele nem sequer tentou me dar os beijos, e com medo de que
a minha mera presença estivesse lhe dando um ataque do coração, não insisti.
― Alguma novidade? ― perguntei.
― Infelizmente, não ―, Gaspar disse. ― Vá
até a cozinha. Vincent está me pedindo para perguntar se você quer café.
― Não, não. Já tomei café-da-manhã. Estou
bem.
― Ah, tudo bem então. Vincent disse que se
você quiser ir ao quarto dele, está pronto para você com a sua... trig? ―
Gaspar pareceu confuso.
― Trigonometria ―, disse a ele, rindo. E
então para o ar eu disse ―, Obrigada, Vincent, mas a deixei em casa. Você pode dar uma
olhada por cima do meu ombro para literatura americana e história europeia
hoje. Gaspar deu uma risada nervosa. ― Vincent disse que eu devo ser quem deve
te ajudar com isso. Meu, meu, é verdade, eu tenho estado por aí vendo um pouco
de história. Mas não iria querer te chatear com meus contos.
Percebendo que
ajudar uma adolescente com seu dever de história seria a última coisa que ele
gostaria de fazer pela manhã, recusei educadamente, para o seu óbvio alívio.
― Charlotte está fora, mas a informarei
que você está aqui quando ela retornar ―, ele disse, me deixando em frente a
porta de Vincent.
― Obrigada ―, respondi.
O quarto do
Vincent estava como tinha visto da primeira vez. Janelas e cortinas fechadas.
Fogo fraco na lareira. E Vincent frio na cama. Estremeci quando vi sua forma sem
movimento atrás das cortinas brancas transparentes.
Batendo a porta
atrás de mim, coloquei minha bolsa no sofá e me aproximei da cama. Ele estava
ali completamente imóvel. Destituído de vida. Golpeando-me com o quão diferente
ele se parecia de alguém que estava meramente dormindo, com o peito em
constante movimento, respiração indo e vindo da boca. Puxando as cortinas de
lado, cuidadosamente sentei-me na cama e olhei para ele, magnífico até mesmo na
morte.
― Certo, me
sinto um pouco idiota falando com você desse jeito ―, disse para o quarto
vazio. ― Como se a qualquer momento você fosse pular do closet e rir com a
cabeça para fora.
O quarto estava
em silêncio.
Hesitando, corri
meus dedos levemente para baixo pelo seu braço frio, tentando não recuar com a
sensação não humana da sua pele. Então, ainda mais devagar, me inclinei para
cima para tocar sua boca com o polegar. A pele estava fria, mas suave, e eu
estremeci com a sensação da ponta do meu dedo contra seus perfeitos lábios
curvados. Encorajada, acariciei seu espesso e ondulado cabelo com a mão antes
de tocar meus lábios muito levemente nos seus. Não senti nada. Vincent não
estava ali.
― Estou tirando vantagem da situação ―,
sussurrei, me perguntando se ele estava ali para me ouvir ―, desde que você não
pode dizer não mesmo se quisesse?
Embora o quarto
continuasse silencioso, eu estava possuída com um estranho sentimento ― como se
alguém estivesse escrevendo em uma mesa em minha cabeça. Parecia que um grande
esforço estava sendo gasto. Como se um enorme peso estivesse sendo deslocado. E
então essas três palavras se materializaram em minha mente: Eu sou seu.
― Vincent, isso foi você? ― perguntei
assustada. Meu corpo parecia uma árvore de natal cheia de milhares de luzes que
tinham sido ligadas todas de uma vez.
― Ok, se isso foi você, meio que me
assustou. Mas está tudo bem. E se isso não foi você, então devo estar
completamente louca por estar saindo com um cara morto. Muito obrigada por
comprometer a minha sanidade ―, disse, fingindo sarcasmo, mas mal, desde que
estava tremendo.
Eu podia quase
sentir uma sensação de divertimento derivando pelo quarto, mas isso era tão
débil que assumi estar inventando. ― Agora você está me tornando paranoica ―,
disse. ― Antes que eu comece a representar
vozes-de-Joana-D’Arc,
acho que vou trabalhar no meu dever de casa de história.
Silêncio.
Deixando as
cortinas da cama abertas para que eu pudesse vê-lo, fui me sentar no sofá, tirando
meus livros da bolsa e os espalhando na mesa de café.
Foi quando notei
um envelope sobre o seu criado-mudo, vi meu nome escrito com a bonita letra de
Vincent e puxei uma espessa folha de dentro. Estava gravada as iniciais VPHD no
centro da borda inferior e cercando todas as bordas estavam videiras e folhas.
Kate, assim começou.
Eu não sou
sempre o melhor em me expressar para você, então estou tirando vantagem do fato
de que estarei completamente incapaz de responder quando você ler isso, e, portanto,
incapaz de estragar as coisas. Eu quero agradecer a você por ter me dando uma
segunda chance. Quando te vi pela primeira vez, eu sabia que tinha encontrado
algo incrível. E desde então, tudo o que eu quis foi estar com você tanto
quanto possível. Quando pensei que tinha te perdido, estava dividido entre
querer você de volta e querer o melhor para você ― queria que fosse feliz.
Vendo você tão mal durante as semanas que ficamos separados, me deu coragem
para lutar por nós... Para encontrar uma maneira de as coisas darem certo. E
vendo você feliz de novo nos dias em que estamos juntos, me faz pensar que fiz
a escolha certa. Não posso te prometer uma experiência comum, Kate. Gostaria de
poder me transformar em um cara normal e estar ali para você sempre, sem o
trauma que define a minha vida de “morto andante”. Já que isso não é possível,
posso apenas te assegurar de que farei de tudo em meu poder para te
recompensar. Para dar a você mais do que um namorado normal daria. Não tenho
ideia do que isso implicará exatamente, mas estou ansioso para descobrir. Com
você. Obrigado por estar aqui, minha bela. Mon ange. Minha Kate.
Completamente
seu, Vincent.
O que você faz
depois de ler a carta de amor mais romântica ― a única carta de amor, para ser
mais exata ― que você já recebeu?
Andei até cama
e, subindo no colchão, sentei ao lado do corpo de Vincent. Envolvi o seu rosto
frio com a minha mão quente e então, alisando seu cabelo com os dedos, comecei
a chorar.
Chorei pela
perda da minha vida normal. Pelos dias em que eu podia acordar no meu quarto,
andar escada abaixo e ver minha mãe e meu pai sentados à mesa do café-da-manhã
esperando por mim. Chorei porque não iria nunca mais vê-los de novo e minha
vida nunca mais seria a mesma.
Pensei em como,
depois de toda essa perda, eu tinha encontrado alguém que me amava. Ele não
havia dito isso, mas eu tinha visto em seus olhos e lia isso em cada palavra
que tinha escrito. Meu mundo normal se foi, em mais de uma maneira. Mas eu
tinha uma chance de felicidade completamente nova. Eu poderia encontrar
ternura, amizade e amor.
Mesmo que eu
ainda ansiasse pela minha antiga vida, sabia que tinha sido dada a mim uma
segunda chance. Ela estava bem aqui, suspensa como uma fruta madura em frente aos
meus olhos. Tudo o que tinha que fazer era alcançá-la com a mão e pegá-la. Mas
primeiro eu tinha que soltar o que eu estava segurando com um medo aterrador: o
passado.
Tinha sido
oferecida uma vida nova em troca da antiga. Como um presente. Eu me senti como
se estivesse em casa. Abri
a minha mão e soltei. Chorei até que meus olhos inchados se desvaneceram e se
fecharam, e então peguei no sono.
Quando acordei
uma hora depois, não sabia onde estava por alguns segundos. E então senti o
corpo frio do Vincent ao meu lado, e eu estava inundada de uma enorme sensação
de paz que me fez sentir mais forte do que alguma vez já fui.
Escutei um
barulho e me virei para ver Charlotte enfiando a cabeça através da porta. ―
Parei por aqui antes, mas você estava dormindo. Está desperta agora?
― Sim ―, eu disse, sentando e deslizando
para fora da cama.
― Oh, Deus. ― Ela deslizou para dentro e
fechou a porta. ― Você estava chorando. ― Ela disse depois de beijar minhas
bochechas.
Eu assenti. ―
Estou bem agora. Mas você mesma não parece muito bem.
O brilho
radiante normal de Charlotte tinha se tornado fosco e toda a vida que parecia
surgir e faiscar ao seu redor tinha desaparecido. Ela parecia triste e exausta.
― É o Charles ―, ela disse.
― Ainda nenhuma palavra? ― perguntei,
pegando-a para sentar-se próxima a mim no sofá.
Ela balançou a
cabeça, desolada.
― Tentei ligar pra ele um milhão de vezes.
Deixei dúzias de mensagens. Colocamos todos os lugares controlados por numa sob
vigilância, pagamos nossos informantes e até invadimos uma velha casa militar
onde pensamos que eles poderiam estar localizados. E não encontramos coisa
alguma.
― Sinto muito. ― Não sabendo mais o que
dizer, apertei seu ombro, confortando-a.
― Ele é o meu gêmeo, Kate. Nós nunca
ficamos separados, exceto quando estamos dormentes. Sinto como se tivesse
perdido metade de mim.
E realmente
estou com medo por ele.
Assenti. ―
Vincent me disse o que ele suspeita.
― Eu só não entendo ―, murmurou,
balançando a cabeça.
Ela se inclinou
em minha direção, e eu agarrei seu flagelado corpo contra o meu.
― Vincent tinha nos deixado sozinha pelos
últimos minutos, mas disse que quer fazer parte da conversa agora.
― Ok ―, eu disse.
Ela concordou, o
escutando, e seus olhos encheram de lágrimas.
― Ele disse ―, Todos nós estamos com as
almas perdidas aqui. É uma coisa boa que temos um ao outro.
Vincent está
certo, pensei. Mesmo que eu não seja uma revenant, me enquadro nisso. Tirei um
pacote de Kleenex24 da minha bolsa de livros e a estendi para ela.
Ela enxugou os
olhos e então me olhou surpreendida. ― Vincent disse que falou com você essa
manhã e você escutou!
― Então eu não estava imaginando! ― disse
pasma. ― Pergunte o que ele disse.
― Ele disse que falou para você, “Eu sou
seu”.
― É isso aí! ― Eu disse, saltando do sofá
e olhando para o seu corpo antes de me dar conta pela milionésima vez que ele
não estava lá. ― Mas como isso é possível? ― Perguntei a ela. ― Ele me contou
uma vez que
24 Lenço de
papel.
revenants podem
se comunicar apenas com outros revenants quando são volantes.
Charlotte
escutou, então disse ―, Vincent está dizendo que tem estado estudando desde
então. Que é raro, mas tem sido reportado em casos onde um humano e um revenant
tem estado junto por anos e anos. Geneviève é a única revenant que nós
conhecemos desse jeito. E seu marido pode pegar impressões do que ela quer, mas
não pode realmente ouvir as palavras.
― Mas nós estamos juntos semanas, não anos
―, eu disse duvidosamente. ― Como isso pode funcionar conosco?
― Ele disse que não tem ideia, mas quer
tentar de novo ―, Charlotte disse animada.
― Tudo bem ―, Eu disse, andando até a
cama.
― Não, venha aqui ―, Charlotte disse. ― Só
será uma distração para você olhar para o corpo dele. Ele disse para você
fechar os olhos e bloquear tudo que está fora. Como você faz nos museus. ―
Sorri quando me lembrei do transe induzido pela arte em que ele tinha me visto
no Museu Picasso. Fechei os olhos e respirei, deixando a tranqüilidade do
quarto permear o meu corpo. Lentamente comecei a sentir a mesma sensação que
tive antes. De alguém tentando escrever letras em minha mente.
― O que você está ouvindo? ― ela me
perguntou.
― Ouço nada. É como se estivesse vendo
alguma coisa... como alguém escrevendo palavras.
― Ele disse que você está tentando
visualizar. Pare de usar o seu olho interno e use o seu ouvido interno. Como se
estivesse escutando uma música que está tocando muito distante. Tente aguçar e
ampliar.
Eu me concentrei
e comecei a ouvir um tipo de ruído de sopro, como o vento através das folhas ou
um tipo de interferência.
― Ele disse para parar de tentar tão duro
e apenas deixar ser ―, disse Charlotte.
Relaxei, e a
interferência se tornou um farfalhar, como uma sacola de plástico soprado pela
brisa. E então eu ouvi. Pont des Arts.
― Pont des Arts? ― Eu disse em voz alta.
― Você quer
dizer, a ponte que atravessa o Sena? ― Charlotte perguntou confusa, e então
assentiu. ― Vincent disse que é o lugar de um evento muito importante.
Eu ri. ― Um,
sim. Foi onde nos beijamos pela primeira vez.
O rosto de
Charlotte se iluminou. ― Oh meu Deus. Sempre soube que Vincent seria
terrivelmente romântico uma vez que encontrasse a pessoa certa. ― Ela se
inclinou para trás no sofá, lançando as mãos ao coração. ― Você é tão sortuda,
Kate.
Nós praticamos
nossas habilidades de comunicação morto-vivo-para-humano pela meia hora
seguinte, com Charlotte se dobrando de rir das minhas respostas nada a ver e
dos exercícios bobos de Vincent.
― Combate contra o... Fiapo na cama?25 ―
Perguntei confusa.
― Não, Noite dos mortos-vivos!26 ―
Charlotte caiu na risada. Finalmente, eu estava pegando corretamente a maioria
das frases, e embora eu não conseguisse ouvir a sua voz, soava como se Vincent
tivesse pronunciando-as. Era como palavras aparecendo do nada. E somente poucas
palavras de uma vez.
― Ir almoçar? ― finalmente perguntei.
― Certo! Muito bom! Vincent disse que é
hora de uma pausa para o almoço e que Jeanne está esperando por nós.
Quando chegamos
à cozinha, Jules e Ambrose estavam se dobrando em um frango assado e batatas
fritas, e Jeanne estava sentada próxima a eles, absortos na recapitulação da
missão matutina de reconhecimento. Ela pulou quando viu eu e Charlotte
entrarmos no cômodo e indicou os lugares já arrumados para nós.
25 Fight
off the . . . lint in bed?
26 Night
of the Living Dead!
― Hey, meninos, Vincent pode falar com a
Kate. Vocês sabem...
Enquanto é
volante ―, Charlotte disse com uma expressão convencida no rosto.
Todos congelaram
e me encararam, mas depois de um segundo Jeanne despertou e anunciou ―, Não
estou completamente surpresa. Já disse a vocês que posso sentir todos flutuando
por aí quando são volantes. Posso até dizer quem de vocês está aqui. Mas
ninguém nunca acreditou em mim.
― É impossível! ― exclamou Ambrose espantado,
e para o ar disse ―, Sem chance, Vincent!
― Não exatamente impossível ―, Jules
replicou. ― Vincent me contou que ele andou estudando os registros de Gaspar,
em busca de exemplos de relacionamentos revenants-humanos, e tinha encontrado
alguns relatos infundados sobre comunicação.
― Eu sei ―, Ambrose rebateu. ― Ele me
contou também. Mas aqueles eram apenas rumores ― histórias absurdas. Acredito
que Vincent jogou as cartas e tentou por ele mesmo.
Curiosa,
perguntei ―, Que outros tipos de “rumores infundados” existem lá fora? Alguma
coisa que deveria saber?
Ambrose jogou
uma batata frita na boca e mastigou com sorriso malicioso. ― Pense em todas as
histórias assustadoras de fantasmas, Kate-
Lou, todos os
velhos contos estranhos de donas-de-casa, todos os contos de fadas que já ouviu
falar, e então lembre-se... Todos eles começaram de uma noz ― ou talvez somente
um grão ― de alguma coisa verdadeira. Apenas esteja agradecida de não ter se
apaixonado por um vampiro. ― Ele jogou outra frita na boca e então se levantou,
esticando seu impressionante peitoral e bíceps, disse. ― Jules... Quer dar uma
volta no lado selvagem?
Jules limpou a
boca com seu guardanapo e então se levantou, carregando seu prato até a pia. ―
Obrigado, Jeanne. Delicioso, como sempre. ― Jeanne brilhou. ― Vincent, você vai
com a gente?
Você ficará
solitária? As palavras flutuaram na minha cabeça. Sorri.
― Não, vai com os garotos. Pode ser que
precisem de uma babá ―, respondi com um sorriso.
― Sem chance... Ele acabou de falar com
você, né? ― Ambrose disse boquiaberto.
Assenti e sorri.
― Homem sortudo ―, Jules disse para mim, se
inclinando para beijar minhas bochechas. ― O que eu não daria para estar em sua
cabeça. ― Ao invés dos habituais beijos-aéreos27 rápidos, ele se demorou
beijando ambas as minhas bochechas com ternura.
― Jules! ― Engoli em seco, me sentindo
ruborizar.
Ele se esticou,
olhando o espaço acima e levantou os braços como em redenção. ― Tá bom, tá bom,
cara. Mãos longes, eu entendi! Mas não é frequentemente que temos uma bela
jovem humana em casa. De
fato, isso é nunca. ― Ele se virou para ir e então me olhou de volta por cima
do ombro. ― Tchau, Kate e apenas se lembre... Estou completamente disponível
pelos próximos dois dias enquanto Vincent está do outro lado indisponível. ―
Ele piscou. Com o meu rosto queimando, me virei, meticulosamente o ignorando
enquanto ele saia do cômodo.
― O que foi aquilo? ― perguntou Charlotte
curiosa.
― Sinceramente, não faço ideia ―, gemi.
27 Um beijo dado
com a bochecha.
34
Você ficará para
o jantar? ― Jeanne perguntou quando eu e Charlotte deixamos a cozinha.
― Na verdade,
não tinha pensado nisso, mas seria bom ver o Vincent ― quero dizer, ouvir o
Vincent ―, parei, balançando a cabeça com a estranheza do que tinha acabado de
dizer ― Quando os rapazes voltarem. Sim, vou ficar - obrigada!
Ela assentiu
satisfeita e voltou para os seus afazeres. Nós deixamos a cozinha e seguimos
para o corredor.
― Estou indo estudar, Charlotte ―, disse,
abrindo a porta do quarto do Vincent.
― Beleza ―, ela disse despreocupadamente.
― Mas se estudar perto de um cara morto provar ser muito perturbador, sinta-se
à vontade para usar a biblioteca lá em cima. Ou o meu quarto. Estarei lá embaixo
treinando.
― Você faz as coisas das espadas também? ―
perguntei.
Ela assentiu
orgulhosamente e disse ―, Os caras tem mais força na parte superior do corpo
que eu, mas sou menor e mais rápida, então, mesmo que consiga lidar com uma espada
tão bem como o resto deles, foco mais no karatê.
― Uau. Respeito! ― eu disse.
― Quer vir? ― ela perguntou.
― Não, não. Eu vou estudar no quarto do
Vincent. Isso meio que me conforta ter ele por perto ―, eu disse. ― Mesmo que
não... esteja perto. O que me lembra. Ele não pode estar em dois lugares ao
mesmo tempo, né?
― Não, ele não irá espiar você enquanto
está fora andando com os meninos. A não ser que os deixe para vir para casa. O
que não fará. ― Ela apertou a minha mão antes de seguir de volta pelo corredor
e desaparecer escada abaixo.
Liguei para a
vovó para deixá-la saber que eu não iria jantar em casa. ― Geórgia estará
ocupada também ―, ela disse ―, então talvez eu e vovô iremos aproveitar essa
oportunidade para sair. Se nós não estivermos aqui quando você chegar em casa,
não nos espere! ― eu ri do jeito de menina em sua voz.
Passei a tarde
estudando a Primeira Guerra Mundial, que parecia mais interessante agora que eu
conhecia alguém que tinha lutado nela. As horas passaram rapidamente, e eu
mudei para literatura americana, que, tenho que admitir, parecia mais prazer do
que trabalho.
Quanto ao
comentário de Charlotte, o corpo do Vincent deitado a poucos metros de mim
enquanto eu lia não era distração. Era reconfortante. Isso me atingiu de novo ―
a órfã desalojada de suas raízes e deslocada para viver em uma terra
estrangeira ― finalmente se sentia em casa. Eu me sentia centrada. Completa.
Quando terminei
um capítulo das escritas vitorianas, ouvi o toque do celular de Vincent vindo
da direção da cama. Que estranho, pensei. Todos que conheciam Vincent bem o
suficiente para telefoná-lo saberiam que ele estava dormente. Segui o som até o
criado-mudo e, abrindo a pequena gaveta, puxei o celular de dentro. CHARLES, li
no identificador de chamadas.
Meu coração
acelerou enquanto pressionava o botão para responder. ―
Charles? É a
Kate. Você está bem? Todo mundo está procurando por você! Um soluço som veio do
outro lado da linha. ― O Vincent está aí?
― Não. Ele está dormente. Onde você está?
― Ele está dormente ―, Charles repetiu em
voz alta, e então o seu choro se tornou um choro ofegante e irregular. Em voz
baixa, ele disse ―,
Escute. Diga a
minha tribo que eu sinto muito mesmo. Não queria que nada disso acontecesse
desse jeito... ― Sua voz foi cortada pelo som metálico de uma espada deixando a
bainha. Teve um ruído quando o celular bateu no chão e, então, silêncio.
― Oh meu Deus, Charles! Charles! ― Gritei
no celular, e então uma voz baixa, tão macia quanto um bloco de gelo, começou a
falar.
― Diga a Jean-Baptiste que se ele quiser o
corpo do Charles, terá que vir pegar.
― O que você fez com ele? ― gritei no
telefone, minha voz entrecortada por facadas de pânico.
― Nós estaremos esperando nas Catacumbas.
À meia-noite o jovem Charles virará fumaça. ― A linha ficou muda.
A porta voou
escancarada e uma Charlotte de olhar selvagem explodiu dentro do quarto. Ela
olhou para o celular na minha mão e chorou ―, O quê? O que aconteceu?
― Oh, Charlotte. ― Senti o sangue sair da
minha face quando segurei o celular acima para ela. ― Ligue para os garotos.
Diga a eles para vir para casa agora.
― Trata-se de Charles? ― ela perguntou,
começando a tremer.
Eu assenti.
Ela rolou pelos
números de Vincent e fez uma ligação. ― Jules, volte agora. É sobre Charles. ―
Ela desligou e disse ―, Eles estão quase em casa. Eles já estarão
aqui. Kate... ― Ela procurou em meu rosto algum motivo de esperança. Eu não
podia dar isso a ela. ― Ele está morto ―, ela disse. Isso era uma afirmação,
não uma pergunta.
― Sim.
― E os numa o têm?
― Sim.
Charlotte
afundou no chão e abraçou seus joelhos contra ela. Lágrimas cursaram abaixo das
pálidas bochechas. Eu me ajoelhei e coloquei meus braços ao redor dela,
justamente quando a porta voou violentamente aberta e Jules e Ambrose se
apressaram para dentro.
― O que aconteceu? ― Jules disse, se
jogando abaixo na frente da Charlotte.
― Pergunte a Kate ―, ela soluçou. ― Oh,
Ambrose ―, ela disse, estendendo os para o homem agachado ao lado dela. Ele se
abaixou e se sentou, e então envolveu seus poderosos braços ao seu redor,
segurando-a próximo.
Essa foi a
primeira vez em que tinha visto os dois interagirem, e mesmo no meio desse
trauma, alguma coisa estalou na minha mente. Havia alguma coisa ali entre
Charlotte e Ambrose. Ele a segurava cuidadosamente, como se ela fosse quebrar.
E ela absorveu o seu consolo como uma esponja.
Ele era o amor
não correspondido que ela tinha mencionado aquele dia no rio. Aquele que “não
se sentia da mesma forma”. Ela não tinha falado sobre um humano. Tinha falado
sobre Ambrose. Assim que o pensamento atravessou a minha mente, eu sabia que
era verdade.
― Kate? ― Jules perguntou, me estapeando
para fora dos meus pensamentos.
― Charles ligou para o celular do Vincent
―, eu disse. ― Ele perguntou por Vincent e quando eu disse que ele estava
dormente, ele me pediu para dizer a vocês que sentia muito. Que não queria que
as coisas acontecessem desse jeito. E então... Soou como uma espada.
Charlotte deixou
escapar um gemido e Ambrose a apertou mais.
― Outra pessoa pegou o celular e disse que
se vocês quiserem o corpo do Charles, terão até a meia-noite para conseguir nas
Catacumbas.
― As Catacumbas! ― Jules disse a Ambrose,
incrédulo.
― Merda. Nós procuramos em todos os outros
lugares. ― A voz de Ambrose era tingida de veneno. Charlotte começou a chorar
mais. ― Shhh ―, murmurou Ambrose, mergulhando sua cabeça abaixo para que o
rosto dela tocasse sua bochecha. ― Ficará tudo bem.
― Vincent disse que temos que ir contar a
Jean-Baptiste e Gaspard ―, Jules disse.
No mesmo segundo
em que me dei conta que Vincent estava no quarto, escutei as palavras, Eu estou
aqui. Está tudo bem. Dei um suspiro em sinal de alívio sabendo que ele estava
por perto.
Quando estávamos
fazendo nosso caminho pelo corredor do andar de cima, vi Gaspard sair de um
quarto dizendo ―, Ok, ok, estou me apressando, Vincent. Qual é o problema? ― E
então, vendo a face contorcida de Charlotte, ele murmurou ―, Oh meu. Sim. Já vi
―, e abriu a porta do outro lado da dele, guiando todos para dentro.
O grupo entrou
no quarto que parecia ter sido retirado de um castelo de Versalhes. Em um canto
do quarto com tapeçaria, cortinas de veludo caiam em cascatas do teto cobrindo
a cama. Espelhos e pinturas revestindo os papéis de parede e a enorme tapeçaria
trabalhada com cenas de caças que pegava a maior parte da parede atrás da cama.
Jean-Baptiste
estava no meio do quarto, sentado em uma escrivaninha de mogno de aparência
delicada, escrevendo com uma caneta-tinteiro. ― Sim? ― ele disse calmamente e
terminou de escrever sua sentença antes de olhar para nós.
Eu repeti letra
por letra do que tinha dito aos outros poucos minutos antes.
― E a segunda pessoa ao celular se
identificou? ― perguntou Jean-Baptiste.
― Não ―, respondi.
Eu vi os outros
olharem uns aos outros cautelosamente.
― Poderia ter sido Lucien? ― perguntou.
― Eu falei com ele só uma vez, em um clube
barulhento. Realmente não sei dizer.
― Tem que ser uma armadilha ―, Gaspard
disse, torcendo as mãos.
― Claro que é uma armadilha ―,
Jean-Baptiste disse. Após um segundo de silêncio, eu o vi balançar a cabeça e
dizer ―, Compreendo. ―
Levantando da
sua escrivaninha e andando pelo quarto para me encarar, ele disse ―, Vincent
disse que sua irmã planeja frequentar uma festa que
Lucien está
dando hoje à noite.
Eu tinha me
esquecido completamente da festa. ― Oh meu Deus ― é verdade. ― Ofeguei,
empalidecendo quando pensei no perigo em que ela poderia estar correndo. ― Vai
ser uma festa grande acontecendo perto do
Place
Denfert-Rochereau. Um lugar chamado Judas.
― Denfert? ― Ambrose deixou escapar uma
risada maldosa. ― É assim que é chamado agora. Costumava ser d’Enfer, “Hell’s
Square28”. Bem em cima das Catacumbas. O lugar perfeito para um bando de
demônios se estabelecerem.
― Faz todo sentido Lucien e seu clã
acamparem entre os mortos. ― Jules acrescentou. ― Eles mesmos provavelmente
proveem metade daqueles ossos.
28 Praça do
Inferno
35
Eu estive antes
nas catacumbas em uma visita guiada para o público geral. Composta de uma série
de minas medievais sob a cidade, elas são preenchidas com os ossos de séculos e
séculos dosmortos de Paris.
Paris tem sido
habitada há milênios, então, compreensivelmente, no século dezessete, todos os
cemitérios adros29 das igrejas estavam lotados. Alguns relatos dizem que os
corpos boiavam ao redor da cidade sempre que o rio Sena inundava. Finalmente o
governo condenou os pequenos cemitérios da cidade, desenterrando os corpos de
sepulturas existentes e movendo os ossos para as cavernas subterrâneas debaixo
das ruas de Paris.
As paredes da
Catacumba eram revestidas com os ossos dos seus antigos residentes, organizadas
em formas decorativas de corações, cruzes e outros modelos. Era o maior
espetáculo macabro que eu já tinha visto. E só de pensar que alguém iria
realmente gastar tempo ali... Estremeci incapaz de imaginar que tipo de monstro
seria atraído para tal lugar.
― Ele disse onde
nas Catacumbas éramos para ir? ― Jean-Baptiste perguntou. ― Os túneis percorrem
quilômetros dando a volta na área.
Neguei com a
cabeça.
Gaspard deixou a
sala e retornou segurando um grande rolo de pergaminho. ― Aqui está o mapa dos
esgotos das Catacumbas ―, ele disse.
29 Adro: espaço,
aberto ou fechado, que fica diante do portal de uma igreja.
― Tudo bem ―, disse Jules. ― Se Lucien
quer que o encontremos nas Catacumbas enquanto ele está dando uma grande festa,
então presumo que há uma entrada através do clube que ele é dono. Quase todos
os porões do bairro têm escadas que levam às Catacumbas. Um de nós deveria
observar o ponto de acesso.
― Eu quero ir também.
O grupo ficou em
silêncio e todos me olharam boquiabertos.
― Para quê? ― Jean-Baptiste perguntou.
― Minha irmã está em perigo. ― Minha voz
falhou pela emoção.
Jules colocou o
braço ao meu redor carinhosamente. ― Kate, sua irmã não está em perigo. Lucien e sua
horda têm um peixe grande para pescar essa noite. Eles estarão pensando em como
nos destruir. Uma humana será a última coisa na mente deles.
Ambrose
concordou. ― E sem ofensas, Kati-Lou, mas com suas habilidades de luta você
será mais passiva do que ativa. ― Ele olhou para Jean-Baptiste. ― Entretanto,
não devemos deixar o corpo do Vincent sozinho se os numa sabem que ele está
aqui.
Jean-Baptiste
olhou para Gaspard e assentiu. ― Eu ficarei ―, Gaspard concordou e então
estendeu o mapa sobre a mesa. O grupo se amontoou para olhar sobre o ombro
dele, todos contribuindo com seus conhecimentos pessoais para desenvolver um
plano.
― Jeanne está
com o jantar pronto na cozinha ―, Jean-Baptiste finalmente disse. ― Todos vocês
devem comer algo ou pelo menos levar algo com vocês. Vão precisar de força para
lutar.
Moderadamente, o
grupo saiu da sala. Toda a reunião tinha durado menos de uma hora. Mas estava
chegando as nove e o prazo estava se aproximando rapidamente.
Jules ficou para
trás e caminhou comigo para fora do quarto. ― Vincent está me pedindo para eu
falar com você por ele, uma vez que a comunicação de vocês ainda é limitada.
Eu assenti.
― Ele disse que tem que ir conosco. Nós
iremos precisar da ajuda dele para localizar Charles. Disse que quer que você
volte para a casa dos seus avôs e espere lá.
― Não ―, eu disse, teimando, e então disse
novamente para o ar. ― Não, Vincent. Estou doente de preocupação com todos
vocês e Geórgia, e quero estar aqui quando vocês voltarem.
Jules escutou e
depois disse ―, Ele concorda que você está tão segura aqui com Gaspard como
estaria em casa. Mas
ele não quer que você se preocupe com Geórgia. Pelo menos, não esta noite.
Enquanto ela estiver na festa, estará segura. Eles nunca irão lutar conosco na
frente de centenas de pessoas. Confie em mim, as palavras correram através da
minha mente.
― Eu confio ―, eu disse.
Pela próxima
meia hora foi uma confusão controlada. Jeanne colocou uma grande variedade de
alimentos na mesa e depois desapareceu escada abaixo para dentro do porão. Eu a
segui até o ginásio-ringue-arsenal e observei enquanto ela abria e fechava as
portas dos armários. Ela puxava cases de instrumentos musicais dos armários e
os espalhavam abertos no chão com a mesma eficácia que usava para tirar
croissants do forno.
― O que posso fazer para ajudar? ―
perguntei.
― Nada. Está feito ―, ela disse enquanto
retirava um enorme case de contrabaixo. Abertos mostravam-se conchas vazias com
compartimentos embutidos que dividiam o interior, forrado de veludo, em doze
diferentes seções. Vendo o formato e tamanho das armas penduradas nas paredes,
não era difícil imaginar para que os cases serviam.
Charlotte foi a
primeira a descer os degraus e começar a tirar as armas da parede. Escolhendo
um par de espadas, uma adaga, alguns objetos estranhos que pareciam ninjas,
como estrelas de arremesso e outras coisas que eu não poderia nomear se tivesse
que fazer, ela as aninhou dentro das fendas de um case de guitarra.
Ficando de sutiã
e calcinha, começou a se vestir: primeiro uma camisa preta, colada e de manga
comprida, depois calças pretas de couro enfiadas sob as botas de couro de cano
alto. Jeanne a ajudou a prender o que parecia ser um colete Kevlar30, e então
ela jogou um suéter escuro com zíper sobre o traje. Um colete de pele falsa,
sem mangas, com gorro e cheio de bolsos, terminou o seu uniforme. Ela parecia
como a mulher braço direito de Atila, o Huno31. Ela parecia letal.
Toda a sua
rotina de proteger e se trocar levou menos de cinco minutos, e na hora em que
ela estava pronta, Ambrose e Jules desceram os degraus, enchendo suas próprias caixas
com armas.
Ambrose tinha o
case de contrabaixo e estava enchendo-o de armas variadas, machado, clavas,
espadas e outras lâminas de aparência perigosa. Jeanne colocou as roupas dos garotos
para fora, então esfregou as mãos juntas e olhou em volta orgulhosa, parecendo muito
como uma mãe entusiasmada mandando os filhos grandes para a faculdade.
― Então todo esse carregamento militar é
só para ir à guerra contra os numa? ― Perguntei à Charlotte, que tinha vindo
ficar perto de mim.
Um medo tinha
começado a abraçar meu estômago, como uma miniatura de anaconda esmagando
minhas entranhas. Não estava temendo por Vincent, duvidando que na forma volant
ele pudesse ser ferido por Lucien e sua horda. Mas, ao ver o colete de Kevlar e
camadas de roupas protetoras, me deu a noção de que meus novos amigos estavam
se colocando em perigo mortal.
― Olhe
quem está pronta
primeiro. Como sempre
―, Charlotte chamou, zombando de
Ambrose e Jules, e então se virando para responder minha pergunta. ― Não, Kate.
Isso não é tudo sobre os numa. Salvar vidas
não significa
pular na frente de balas velozes ou empurrar suicidas para fora do caminho de
trens. Nós estivemos em equipes da SWAT, agindo como seguranças, servindo nos
esquadrões antiterroristas... ― Ela gargalhou da
30 Colete à prova de balas.
31 Átila, também conhecido como Praga de
Deus ou Flagelo de Deus, foi o último e mais poderoso rei dos hunos. Os Hunos
são considerados os mais temidos de todos os povos bárbaros e também os
principais responsáveis pela Queda de Roma, pois empurrou para dentro de Roma
as tribos germânicas que quebraram a unidade política do Império. minha
expressão duvidosa. ― Sim, até mesmo eu. Fiz isso dezessete vezes antes, e
maquiagem e um corte certo de cabelo adicionam anos à minha idade.
Jules tinha
prendido um arco e flechas em um grande case e estava sobrepondo-os com adagas
e espadas. Ele olhou por cima do seu recipiente e, notando o meu olhar, me deu
uma piscadela sedutora.
― Por que vocês apenas não usam armas? ―
Perguntei. Impressionada com suas atitudes casuais.
― Nós usamos armas quando devemos usá-las
―, respondeu Charlotte ―, Se estamos lutando ao lado de humanos nos casos que
eu mencionei... seguranças e assim por diante. Mas as balas não matam revenants
― ela parou ― ou outros como nós.
Antes que eu
pudesse pedi-la para esclarecer o que quis dizer com “outros”, Ambrose, dando
um laço na sua bota gigante com ponta de aço, gritou ―, E mais, Katie-Lou, você
tem que concordar... combate corpo a corpo é muito mais legal. ― Apesar de
tudo, gargalhei. Ele obviamente amava uma luta.
― Quantas vezes vocês lutaram contra
Lucien e sua horda? ― perguntei.
― Incontáveis vezes. É parte de uma
batalha sem fim ―, Charlotte respondeu.
― Bem, deve significar que vocês estão
vencendo se ainda estão por aqui.
Ninguém
respondeu. E então Jules rompeu o silêncio. ― Vamos dizer apenas que costumava
existir mais de nós. ― A cobra dentro de mim constringiu tão apertadamente que
eu não podia respirar.
― Costumava existir mais deles ―, chamou
Jean-Baptiste, quem, com Gaspard, desceu até lá. Charlotte, Ambrose e Jules
ficaram ali, como se atentos, enquanto Jean-Baptiste caminhava para frente e para
trás entre eles, cumprindo uma inspeção dos seus corpos armados e dos cases. ―
Nós temos tudo ―, ele disse finalmente, acenando para os três em aprovação.
Ele tirou dois
cabos de aparência normal de guarda-chuva e lançou um para Gaspard. Com um
movimento rápido como um raio, Gaspard atraiu uma espada para frente, que saiu
do cabo, e inspecionou sua lâmina.
Eles certamente
pareciam como um mini exército, liderados por um general feroz. Mas individualmente,
podiam passar por musicistas vestidos para uma apresentação ― isso se a banda
deles tivesse uma queda acentuada por couro.
Eles lideraram
seus caminhos através das portas duplas para o fim do ginásio e subindo para o
pátio traseiro, onde vários carros, motocicletas e scooters estavam
estacionados. Jean-Baptiste subiu em um sedan azul meia-noite, enquanto Jules e
Charlotte pegavam um 4x4 de tons escuros. Ambrose prendeu seu case a uma enorme
Ducati e deu ignição na moto com um rosnado.
Enquanto os
outros veículos ligavam seus motores, agarrei meus braços sobre o peito e apertei
os dentes. Essa não é minha luta, pensei, é a deles. Mas não podia evitar me
sentir inútil ― como a donzela em perigo que nunca quis ser.
Ouvi Vincent
dizer, Quando nós acabarmos, voltarei para você.
― Tenha cuidado
―, murmurei.
Nada pode
acontecer comigo, as palavras vieram. Meu corpo está aqui com você.
― Tome conta do
restante deles, então ―, eu disse.
Adeus, Kate, mon
ange.
Os carros
começaram a dar ré e, suavemente saindo um por um através dos portões para dentro
da noite escura, eles se foram.
36
Aspard pediu licença
e disse
que ele estaria
na biblioteca, enquanto Jeanne e
eu subimos os degraus de volta à cozinha em silêncio. Eu a
assisti quando começou a limpar a refeição da hora. Ela deveria ter visto tanto
ao longo dos anos. E eu precisava de uma distração. ―
Me conte sobre
Vincent.
Jeanne enfiou
sua toalha dentro do avental. ― Deixe-me fazer para você um café antes ―, ela
disse. ― Se vai ficar esperando eles voltarem, precisará de histamina.
― Isso seria ótimo, Jeanne. Obrigada. Você
tomará um comigo?
― Não, querida, tenho que ir para casa.
Minha família está esperando por mim.
Ela tem uma
família, pensei, me perguntando por que eu estava surpresa. Ela também dividia
seu tempo entre os mortos-vivos e os vivos. Pela primeira vez, senti uma
ligação com ela.
Ela colocou meu
café na mesa com uma jarra de leite e sentou-se perto de mim. ― Então. O que
posso contar a você sobre Vincent? ― ponderou.
― Bem, eu tinha dezesseis quando comecei a
ajudar minha mãe aqui, lavando a roupa e passando. Isso foi a cerca de ― ela
fez uma conta mentalmente ― trinta e nove anos atrás. ― Ela se inclinou para
trás na sua cadeira, apertando seus olhos como se, tentando assim, pudesse ver
o passado. ― Vincent era o mesmo que é hoje. Mais ou menos um ano. E todos eles
seguiam a moda da época, claro, de modo a não se destacar. Então o seu cabelo
era um pouco mais comprido da primeira vez em que o vi. Oh, achei ele lindo.
Ela se inclinou
para frente, para mim, com um brilho nos olhos. ― Ainda acho. Mesmo que agora
ele seja um mero adolescente e eu uma avó de quatro netos. ― Ela se sentou para
trás, sorrindo para si mesma.
― Enfim, havia mais revenants até aí.
Estavam dispersos por toda Paris em prédios pertencentes à família de
Jean-Baptiste. Agora, claro, uma vez que não existem tantos revenants
remanescentes aqui em Paris, ele aluga os lugares. Faz uma verdadeira fortuna
com os seus imóveis.
Ela suspirou e
fez um pausa por um momento. ― De qualquer forma, conheço Vincent desde a
década de setenta e ele sempre foi um... tipo perturbado de garoto. Estou
supondo que ele contou a você sobre Hélène por agora?
Assenti e ela
continuou. ― Bem, depois da morte dela ― e a sua própria morte, claro ― ele
meio que se fechou emocionalmente. Depois de
Jean-Baptiste
tê-lo encontrado, ele assumiu completamente o papel de soldado. De acordo com o
que eu ouvi, nada era tão perigoso para Vincent. Ele literalmente se jogava no
caminho do perigo. Como se salvando centenas de estranhos fosse recompensar
pela pessoa que ele não foi capaz de salvar. E isso continuou assim. Ele era
como aquele robô vingador. Um lindo robô, se você me permite dizer, mas ainda
assim...
Ela piscou e
olhou avidamente para mim. ― Alguns meses atrás, ele veio para a casa com uma
faísca de vida em seus olhos. Eu não podia sequer imaginar o que tinha
acontecido. E era você. ― Jeanne se inclinou para frente e roçou minha bochecha
com a extremidade da sua mão, sorrindo.
― Você, linda garota. Você deu vida nova
ao meu Vincent. Ele pode ser forte de espírito, mas ele tem uma alma delicada.
E você o tocou. Por todo o tempo que eu o conheço, sua única motivação tinha
sido vingança e lealdade, o que pode ser também por ele ser um dos poucos
sobreviventes. Mas agora ele tem... ― Ela parou, pensando duas vezes sobre o
que estava para dizer, e resolveu por ―, Você.
Seu sorriso era
compassivo. ― Esse não será um relacionamento fácil para você, querida Kate.
Mas persista. Ele vale à pena.
Jeanne enfiou o
seu avental na alça do fogão, me beijou, e começou a juntar suas coisas. ― Vou
te levar até lá fora ―, disse a ela, de repente, percebendo que eu ia ficar
naquela enorme casa com ninguém além de um revenant de cento e cinquenta anos
de idade e o corpo morto do meu namorado para me fazer companhia.
― Você vai ficar bem? ― perguntou Jeanne.
― Sim ―, menti. ― Sem problema. ― Nós nos
aproximamos da fonte de granito no meio do pátio e eu me sentei na sua beirada,
gesticulando um tchau enquanto Jeanne se apressava para fora, atravessando o
portão. Ele se fechou atrás dela. Eu ergui meu olhar para a estátua na fonte de
um anjo abraçando a mulher.
A primeira vez
que os tinha visto, não tinha ideia do que Vincent era. Nunca tinha ouvido
falar de revenant ― nem da espécie de assassinos ou da espécie que gasta sua
existência salvando a humanidade. Mesmo assim, a fonte já parecia
verdadeiramente assustadora para mim.
Agora, quando
olho para a beleza etérea das duas figuras conectadas ― o lindo anjo, com suas
fortes e sombrias feições focadas na mulher sendo embalada em seus braços
estendidos, que era toda suavidade e luz ― não me passa despercebido o
simbolismo. O anjo era um revenant, mas era bom ou mal? E a mulher nos seus
braços estava dormindo ou morta? Eu me aproximei.
A expressão do
anjo parecia desesperada. Obcecada, até. Mas também terna. Como se ele
estivesse contando com ela para salvá-lo, e não vice-versa. E de repente, o
nome de Vincent me chamando veio à mente: mon ange. Meu anjo. Estremeci, mas
não de frio.
Jeanne tinha
dito que ter me encontrado tinha transformado Vincent.
Eu o tinha dado
uma “vida nova”. Mas estava ele esperando que eu salvasse a sua alma?
Eu olhei para a
mulher. Uma nobre força radiava das suas feições e a luz da lua refletia da sua
pele em direção ao rosto do anjo. Ele parecia cego pela luz. Eu tinha visto a expressão
do anjo antes: Seu rosto era como o de Vincent quando olhava para mim.
Fui dominada por
uma corrente de emoções: assombro por Vincent ter encontrado em mim o que
estava procurando; medo das suas expectativas, preocupação de não ser forte o
bastante para carregar esse fardo. Elas estavam todas ali. Mas, mais forte que
elas, era o desejo de dar a ele o que ele queria. Estar ali para ele. Meu
destino poderia incluir ajudar Vincent a ver que poderia haver mais à sua
existência do que vingança. Poderia haver amor.
Eu praticamente
corri de volta para o quarto de Vincent, me colocando na sua cama até estar
deitada ao lado dele. Seus traços frios sem expressão; seu corpo primoroso era nada
além de uma concha vazia.
Tentei
imaginá-lo como Jeanne tinha descrito... um violento e vingativo soldado. E
embora a figura que instintivamente veio à mente fosse de um sexy sorriso de
olhos-meio-fechados que ele sempre me dava, eu era capaz de imaginá-lo como um
feroz vingador. Havia algo perigoso nele, como havia em todos os revenants.
Só de saber que
um acidente fatal poderia estar bem ao redor da esquina fazia dos humanos mais
cautelosos, uma marca que Vincent e seus companheiros revenants não possuíam. A
falta de medo de se machucar, ou até mesmo da morte, deu a eles uma confiança
imprudente que era tanto excitante quanto aterrorizadora.
Tracei suas
feições com os dedos e pensei sobre a primeira vez que o tinha visto assim. Seu
corpo morto tinha me repelido então, mas agora eu sentia uma crescente certeza
de que podia suportar o que quer que fosse dado a mim. Para estar com Vincent
eu teria que ser forte. Corajosa.
Ouvi a campainha
de mensagem de texto do meu celular tocar e pulei da cama para agarrá-lo. Era
da Geórgia:
Deixei a festa.
Preciso falar com você asap32. Eu: Você está bem?
Geórgia: Não.
Eu: Onde você
está?
Geórgia: Do lado
de fora da casa do Vincent.
Eu: O que???
Como você sabia que eu estava aqui? Geórgia: Você me disse.
Eu: Não, eu não
disse.
Geórgia: Preciso
ver você. Qual é o código?
Por que ela
estava fazendo isso? E o que eu podia fazer? Ela obviamente precisava de mim,
mas não podia apenas lhe dar o código.
Eu: Não posso
passá-lo. Irei para fora conversar.
A campainha da
porta tocou. Corri, descendo o corredor até a porta da frente e pressionei o
botão na tela de vídeo. A luz da câmera ligou, e olhando as lentes em cima, estava
a minha irmã.
― Geórgia! ―
Gritei no interfone. ― O que você está fazendo aqui? Quando ela ouviu a minha
voz, gritou. ― Oh meu Deus, Kate, sinto muito, muito mesmo!
― O que aconteceu? ― Perguntei, pânico
elevando minha voz enquanto eu via o medo e angústia no seu rosto.
― Sinto muito, sinto muito ―, ela gemeu,
erguendo as mãos trêmulas para sua boca com terror.
― Pelo que, Geórgia? Diga! ― Gritei.
― Por me trazer aqui ―, disse uma voz
baixa, e Lucien apareceu na imagem e colocou uma faca na garganta da Geórgia.
― Abra o portão ou vou matá-la. ― As
palavras maldosas me afetaram tanto quanto se Lucien estivesse em pé perto de
mim, ao invés de estar do outro lado do pátio atrás de um portão trancado.
― Sinto muito, Kate ―, Geórgia chorou
suavemente.
Levantei meus
dedos ao botão com um símbolo de chave debaixo dele.
32 asap: assim
que possível
Gaspard começou
a correr para baixo os degraus atrás de mim. ― Não faça isso! ― gritou.
― Mas ele vai matar a minha irmã!
― Darei a você três segundos antes de
cortar a garganta dela ―, veio a voz de Lucien sobre o alto falante. ― Três...
― Só tenho a minha bengala... Espere até
eu chegar ao depósito de armas ―, gritou Gaspard, alcançando o fim da escada e
se arremessando na minha direção.
― Dois...
Olhei para trás,
para Gaspard desesperado, enquanto apertava o botão. O portão destrancou.
― Tranque a
porta atrás de mim, Gaspard, e não o deixe entrar. Você tem que proteger
Vincent! ― Gritei. E depois saltei para o lado de fora, batendo a porta atrás
de mim e me virei para encarar o demônio.
37
Lucien estava no
pátio, na minha frente, segurando a faca nas costas da Geórgia.
― Boa noite, Kate
―, ele disse com uma voz fria e precisa. Sua expressão era assassina e sua
enorme estrutura pareceu duas vezes maior agora que estava pairando sobre mim.
Como Geórgia pôde sequer ter visto algo sedutor nesse monstro aterrorizante
estava além de mim.
― Agora seja uma boa garota e me leve para
dentro.
― Não posso ―, disse. ― Está trancada. Não
posso fazer nada por você, então pode deixar Geórgia ir. ― Senti como se
tivesse vencido essa rodada, mas não tinha ideia do que viria a seguir.
― Gaspard, eu sei que está aí dentro ―,
gritou Lucien. ― Agora saía ou terá o sangue de duas humanas em suas mãos.
Antes que ele
pudesse terminar, a porta abriu e Gaspard andou para fora, segurando a bengala-espada
na frente dele.
― Não, não faça isso, Gaspard! ― gritei. O
que ele está fazendo? Pensei descontroladamente. Ele tinha que ficar trancado
dentro da casa, protegendo
Vincent. Minha
irmã era somente minha responsabilidade.
Gaspard me
ignorou. Avançando, disse calmamente ―, Lucien, seu sanguessuga desprezível. O
que traz seu pútrido cadáver a nossa humilde residência nesta ótima noite? ―
ele tinha recapturado o ar nobre que mostrava no dia em que o vi treinando com
Vincent. O poeta inquieto e gago tinha se transformado em um formidável
lutador.
Lucien deu um
passo em direção a ele, e eu agarrei o braço da Geórgia e a puxei para longe. ―
Vamos fugir daqui ―, sussurrei, mantendo um olho nos homens.
― Você parece estar extremamente carente
de armas essa noite, sua triste desculpa para um imortal ―, Lucien rosnou.
― Pra mim, parece uma lâmina de igual
mérito à faca de pão que você carrega, seu verme repugnante ―, Gaspard disse, e
se lançou para Lucien com a espada, fazendo um corte limpo sobre o rosto
enorme.
Embora um
pequeno fio de sangue tenha escorrido dele, Lucien nem mesmo vacilou. ― Igual,
talvez, seu ridículo salva-vidas-lazarento, mas foi por isso que trouxe
reforço. ― E puxou uma arma do seu casaco e disparou em Gaspard no ponto cego
entre os olhos.
O velho revenant
cambaleou para trás um par de passos enquanto sua testa absorvia a bala. Então,
em câmera lenta, cuspiu para fora a bala e ela caiu, tinindo enquanto saltava
no pavimento. Lucien usou os dois segundos que Gaspard esteve atordoado para
saltar sobre ele e jogá-lo ao chão.
Peguei a mão da
Geórgia e comecei a correr com ela em direção ao portão. ― Parem bem aí ou vou
atirar nas duas ―, Lucien disse, apontando sua arma na nossa direção enquanto
montava sobre o corpo em resistência de Gaspard. Nós congelamos. ― Agora andem
de volta para cá. Vocês vão comigo. ― Ele observou, sem emoção, enquanto nos
aproximávamos. ― Mais perto ―, exigiu. Uma vez que estávamos dentro do alcance
do seu braço, ele recolocou a arma no coldre.
Então, pegando
sua maciça faca, impulsionou-a alto no ar antes de levá-la para baixo como um
machado ao pescoço de Gaspard. Geórgia e eu gritamos como uma só, um grito
ensurdecedor, e nos agarramos uma a outra, lágrimas se ocultando nos braços de ambas
com horror.
― Um pouco enjoadas, não estão,
senhoritas? Bem, há mais por vir. Agora, dentro, vocês duas ―, ele disse,
tirando um lenço de mão do seu bolso e enxugando a lâmina antes de estendê-la
na nossa direção.
Não podia
suportar olhar de novo para Gaspard enquanto andava obedientemente para dentro
do hall de entrada. Lucien olhou rapidamente ao redor. ― Bom lugar que eles
conseguiram aqui. ― Seus olhos piscaram de volta para mim com um olhar
perfurante. ― Agora, me mostre onde ele está.
― Quem? ― perguntei, minha voz tremendo.
― Quem você acha? Garoto-amante ―, zombou,
chegando mais perto de mim e empurrando Geórgia entre nós.
― Ele não ― ele não está aqui ―, gaguejei.
― Aww, que doce. Tentando proteger seu
namorado zumbi. Mas eu sei que você está mentindo, Kate. Charles me contou que
ele está dormente. E meu colega acabou de me dizer que Jean-Baptiste e
companhia, incluindo o fantasma de Vincent, apareceram todos ao meu pequeno
encontro nas Catacumbas. Então vamos apenas acabar com os joguinhos e ir direto
ao ponto.
― Não vou te levar até ele ―, eu disse,
dando um passo para trás para evitar Geórgia, quem ele tinha empurrado contra
mim.
― Oh sim, você vai ―, Lucien disse
calmamente, sustentando a faca levantada. Sua lâmina brilhando sob a luz do
lustre.
Geórgia chorou
―, Não diga a ele, Kate. Ele disse que ai matá-lo.
― Vadia ―, Lucien grunhiu e, agarrando
Geórgia pelo cabelo, puxou sua cabeça para trás e segurou a faca na sua
garganta.
Neguei com a
cabeça e sussurrei ―, Prefiro morrer a levá-lo até Vincent. ― Mas vendo o
pânico nos olhos de Geórgia, senti algo escorregar dentro de mim.
― Ótimo ―, disse Lucien. ― Estava esperando levar Geórgia em segurança
junto comigo depois de pagar uma visita a você, mas estou perfeitamente
disposto a fazer uma mudança nos planos. ― A faca brilhou enquanto ele a deslizava
sobre o pescoço branco da Geórgia. Ela gritou, mas ele não soltou o seu cabelo.
― Geórgia! ― chorei horrorizada, enquanto
via gotas de sangue escorrem do corte que ele fez.
― Quanto mais tempo você esperar, mais
profundo cortarei ―, ele disse. ― Isso não machucou você, querida, machucou? ―
perguntou, olhando maliciosamente para Geórgia e dando a ela um beijo na
bochecha. Seus olhos viraram descontroladamente na minha direção e eu gritei ―,
Tudo bem, tudo
bem. Basta parar e vou levá-lo até ele. ― Lucien assentiu, esperando, mas
colocou a faca firmemente perto do pescoço manchado da Geórgia.
Minha mente
acelerou em uma dúzia de direções diferentes, se prendendo em formas de
desnorteá-lo. Eu podia levá-lo para cima ou para dentro de um dos outros quartos,
mas o que isso iria fazer além de enfurecê-lo mais?
― Mova-se! ― Lucien exigiu, e eu segui
pela porta ao corredor dos empregados, minha mente ainda procurando por uma
forma de ganhar tempo. Eu andei tão lentamente quanto foi possível, mas não
pude surgir com um plano que não terminasse com a garganta da minha irmã sendo
cortada ou, mais provavelmente, ambas sendo mortas. Não havia nada que eu
pudesse fazer além de implorar ao Vincent para voltar, sabendo que era
impossível: Ele estava no meio da cidade ajudando seus parentes.
Eu os conduzi
através da porta para dentro do quarto de Vincent, e dei um passo ao lado para
deixar Lucien passar. Ele soltou Geórgia e se moveu rapidamente até a cama,
gargalhando enquanto se aproximava dela. ― Ah, Vincent. Você está parecendo
melhor do que nunca ―, disse. ― O amor parece satisfazê-lo. Pena que não
poderia durar. ― Olhando ao redor do quarto, fixou seus olhos na lareira.
― Sentem-se ―, ele disse a nós, apontando
com a faca o sofá. Ele começou a empilhar lenha e gravetos na lareira, e jogou
um fósforo nela.
Com o rosto nas
mãos, minha irmã começou a chorar e abaixou a cabeça no meu ombro. ― Kate, me
desculpe por não ter acreditado em você.
― Shh. Isso não importa agora. Você está
bem? ― sussurrei. ― Deixe-me ver seu pescoço.
Ela ergueu a
cabeça e eu toquei no corte da faca. Não era muito mais do que um arranhão. ―
Não é tão ruim assim ―, eu disse, enxugando uma gota de sangue com o meu dedo.
― Quem se importa com meu corte? ― ela
sussurrou. ― Nós nunca sairemos daqui vivas. Acabamos de vê-lo assassinar
alguém. O que há de errado com Vincent, de qualquer forma? Por que não está se
movendo?
― Ele meio que está... Em coma ―,
respondi.
― O que aconteceu? ― perguntou
horrorizada.
― Geórgia ―, eu disse, olhando para ela
firmemente ―, Lucien não disse nada a você enquanto lhe trazia aqui? Você não
sabe... o que eles são?
Ela negou com a
cabeça, confusa.
Não havia jeito
de que pudesse evitar contar a ela. E vendo que talvez não vivêssemos essa
noite, não vi sentido em esconder o que deveria ter sido óbvio por agora. ―
Geórgia, eles não são humanos... Vincent e Lucien.
― O que eles são, então?
― É complicado ―, comecei, e depois, vendo
lágrimas de confusão começarem a brotar em seus olhos, respirei e disse ―, Eles
são chamados de
revenants. São
mortos-vivos.
― Eu não... Eu não entendo.
― Isso
não importa, Geórgia
―, insisti, agarrando
suas mãos bruscamente e
forçando-a a olhar dentro dos meus olhos. Falei as palavras lentamente, tanto
para meu benefício quanto para o dela. ― Não me importa o que Vincent é. Nós
não podemos deixar Lucien destruí-lo.
Seus olhos
fizeram uma busca pelo meu rosto. Pela primeira vez, não me arrependi de ser um
livro aberto. O espanto e medo deixaram o rosto de Geórgia e foram substituídos
por um olhar de pura determinação. Minha irmã sempre tinha estado ali para mim,
e ela estava aqui para mim agora. Por mais insanas que as palavras saindo da
minha boca soaram, ela não duvidou de mim por um segundo.
― O que podemos fazer? ― sussurrou.
Balancei a cabeça e observei Lucien usar um atiçador para mover as toras ao
redor. O fogo pegou e disparou para cima, explodindo em uma fogueira controlada
enquanto o cheiro de madeira queimada inundava o quarto.
― Ele vai tentar queimar o corpo do
Vincent ―, sussurrei de volta. ― Nós não podemos deixá-lo.
Como se
validando tudo o que disse a ela, Lucien se virou. ― É uma pena ter que
descartar o corpo do meu velho inimigo antes de dá-lo a chance de me ver
matando a sua namorada com seus próprios olhos. Seria uma vingança apropriada
por atirar em minha esposa enquanto eu observava.
― A sua saída com Geórgia não foi uma coincidência,
né? ― perguntei, a realização subitamente me sacudindo.
― Claro que não! Não existem coincidências
―, ele forçou um sorriso enquanto Geórgia respirava fortemente ao meu lado. ―
Eu vi vocês duas juntas no rio alguns meses atrás depois que Vincent salvou
aquela adolescente lamentável que pulou da ponte.
― Você era um dos que saíram em disparada
com um carro depois de quase nos atropelar! ― ofeguei.
― Meus cumprimentos ―, Lucien riu e se
curvou para nós. ― Então quando vi Vincent saindo do Metrô com você nos braços
depois do segundo suicídio consecutivo que ele arruinou para mim, percebi que
você deveria ser alguém especial para ele. E foi tão fácil descobrir tudo sobre
você depois disso, incluindo o fato de que sua irmã festeira era uma cliente
regular de várias boates minhas. Que não chega a ser uma coincidência também,
uma vez que ela não é muito discriminativa em relação aos lugares que frequenta
e dos grupos que anda.
Senti Geórgia se
esvaziar com essas palavras e Lucien riu, aproveitando a reação dela. ― Você me
usou para chegar a Kate ―, ela murmurou, impressionada com a revelação.
Lucien sorriu e
deu de ombros. ― Sem ofensa, querida.
― Mas como você sabia que eu estava aqui
esta noite? Como sabia que trazer Geórgia com você seria como um passe-livre
humano pela porta?
― Pude perceber que Charles estava falando
com um humano ao celular. Que outro humano iria atender o celular do Vincent?
Então reconheci sua voz. E isso me deu essa maravilhosa ideia! ― ele gesticulou
para incluir o quarto e o corpo do Vincent. ― Como você acha que me tornei um
empresário tão bem sucedido se não soubesse como agarrar uma boa oportunidade
quando está sentada bem na minha frente?
― Oh, eu não sei ―, eu disse, revoltada
com a sua superficialidade. ― Mentindo, chantageando, assassinando... Seriam
apenas as minhas suposições.
― Ah, estou lisonjeado. É como música para
os meus ouvidos. ― Ele estalou seus nódulos ruidosamente enquanto passava por
nós em seu caminho para a cama, e então, inclinando-se, ergueu o corpo rígido
do Vincent em seus braços e falou com ele como se estivesse ali.
― Pena você ter que perder o banho de
sangue no seu próprio quarto. Isso me lembra da minha própria morte. Mas desde
que seu espírito passa a estar em algum outro lugar, quando eu destruir o seu
corpo você terá toda a eternidade para flutuar e meditar sobre isso. ― Lutando
levemente com o peso morto do corpo, ele começou a andar em direção a lareira.
― Não! ― gritei, pulando para cima e
correndo até me posicionar entre Lucien e a lareira.
― O que você vai fazer, pequenina?
Chutar-me na canela?
Geórgia saltou
do sofá e correu atrás de mim, agarrando os braços dele. Ela soltou um grito de
puro ódio enquanto o arranhava, meramente conseguindo desacelerá-lo. Corri até
ele e tentei empurrá-lo para trás, longe do fogo. Mas até mesmo dando toda a
minha força, ele não cedeu.
― Bem, cuspa na
minha cova vazia ― se isso não é o ataque das princesas da Disney! ― ele rosnou
irritado, e, se inclinando para colocar o corpo do Vincent no tapete, deu uma
açoitada ao redor e mandou Geórgia voando para trás com um movimento circular
do seu braço poderoso.
Ela aterrissou
contra a lateral da cama, sua cabeça estalando forte contra a madeira da
moldura da cama. Ele andou até ela e, parando até ela encontrar o seu olhar,
disse ―, Sinto muito por ter que fazer isso ―, e pisou na sua mão. Ouvi os
ossos estalando dolorosamente justo antes de ela gritar. ― Realmente, não sinto
tanto ―, ele disse, inclinando a cabeça de lado enquanto a observava
contorcer-se. A dor deve ter sido excruciante: Seus olhos se reviraram e ela
caiu sobre si inconsciente.
Pegando o pesado
atiçador de ferro perto da lareira, corri até onde ele estava e o trouxe abaixo
com toda a minha força nas costas dele.
― Droga, garota, dê isso para mim ―, ele
gritou e puxou a arma para fora das minhas mãos, jogando-a como um palito de
fósforo em um canto distante. ― Se você quer bater em algo, pode me ajudar a
arrancar a cabeça do garoto-amante.
Estendendo a
mão, ele puxou uma das espadas de onde estava pendurada acima da cornija. A
segunda espada caiu no chão. Eu me arremessei até ela e a peguei pelo cabo,
cambaleando para trás por causa do peso.
Lucien ficou em
pé, segurando sua espada em uma mão sobre o corpo do Vincent, e me observou com
divertido sorriso. Lutei para erguer minha lâmina e, tremulamente, a apontei
para ele.
― Não chegue mais perto dele ―, eu disse.
― Ou o quê? ― ele cuspiu. ― Se você desejava
morrer antes de ver o seu namorado decapitado, tudo o que tinha que fazer era
me pedir. Mas espero que você me permita um pouco de diversão primeiro. Já faz
tempo que matei uma mulher com minhas próprias mãos.
Ele se lançou
para mim, raspando meu ombro direito com sua lâmina. Um pequeno jorro de sangue
derramou através do corte na minha camisa e escorreu pelo meu braço. Olhei para
isso um segundo, sentindo-me nauseada. E então olhei de volta para o corpo de
Vincent deitado e sem vida no chão, e minha coragem retornou. Com toda a minha
força, ergui a espada.
― Isso mesmo ―, ele disse sarcasticamente.
― Você tem que colocar um pouco mais de músculo por trás disso. ― Ele estava
brincando comigo. Eu deveria estar grata ― se ele gastasse até mesmo um pouco
de esforço, estaria morta. Mas ao invés de me sentir intimidada, sua
condescendência me enfureceu.
Cheia de raiva,
impulsionei a grande arma para ele, e ele deu um passo agilmente para o lado
enquanto a lâmina afundava contra os ladrilhos terracotas do piso, quebrando
uns dois ao meio e mandando um largo pedaço de barro voando através do ar. Sua
espada brilhou na lareira e eu senti picadas me queimando na perna. Olhei para
baixo e vi que meu jeans estava rasgado e, através do corte, um córrego de
sangue fluía da ferida na parte superior da minha coxa, bem abaixo do meu
quadril.
― Agora isso está ficando divertido! ―
Lucien disse com um brilho nos olhos. ― Você tem até mesmo mais coragem que a
sua irmã. Nunca teria imaginado. Será uma pena matar você antes de descobrir o
quanto corajosa você pode ser. Você tem apenas que me acompanhar, junto com a
cabeça do Vincent, claro, de volta para minha a casa, para que possamos ter uma
pequena diversão.
Tentei erguer o
peso da espada de novo, mas falhei. Meus braços não estavam funcionando bem. Eu
tinha usado toda a minha energia naquele golpe e meus músculos pareciam
elásticos.
― Toda essa vontade terá fim em apenas um
segundo. Se você se mover um centímetro, vou colocar essa espada atravessada na
sua linda cabeça ―, ele avisou, e então se virou e começou a deslocar o corpo
do Vincent pelo cômodo. Geórgia começou a gemer do outro lado do quarto. Seus
olhos estavam meio abertos agora, mas ainda estava deitada imóvel no chão.
Lutei contra uma
onda de desespero e subitamente percebi que não me importava se ele me matasse.
Eu iria lutar com ele até mesmo se isso significasse a minha própria morte,
mesmo se não fizesse a mínima diferença no final. Por que seria melhor morrer
lutando do que sobreviver a esse pesadelo e viver uma longa e pesarosa vida com
apenas a memória de Vincent para me abraçar. Reunindo cada pedacinho de força
que me restava, ergui minha espada.
Do nada, ouvi as
estaladas e estáticas palavras: Estou de volta. Meus olhos se arregalaram
enquanto olhava ao redor do quarto e me assegurava de que aquela voz estava
vindo do meu interior. ― Vincent ―, sussurrei.
Rapidamente,
Kate. Você me deixaria entrar?
― Entrar? ― juntei as peças do
quebra-cabeça desvairadamente por uma fração de segundos e, então, percebendo o
que ele estava perguntando, disse ―, Sim.
De repente o meu
corpo não era mais meu. Era como se uma porta tivesse sido aberta no fundo da
minha cabeça e um poderoso surto de energia se derramou por ela, e
ricocheteando através de mim, me preenchendo até sentir que ia explodir.
Mesmo que eu
ainda estivesse consciente, meus membros começaram a se mover sem a minha
vontade de movê-los, e ergui a grande espada com facilidade, levantando-a alto
com ambas as mãos em uma curva elíptica. Ela permaneceu pronta ali por um
segundo, imóvel no ar, até eu trazê-la para baixo com um poderoso movimento
encurvado, cortando de modo limpo o braço esquerdo de Lucien.
Ele rugiu de
raiva e largou sua espada, cobrindo a ferida com a mão. Girando em seu
calcanhar, ele me encarou com choque e então saltou para mim, seu braço ferido
pendendo na sua lateral e esguichando sangue escuro em cima do ladrilho do
chão.
Saltei para o
lado como um gato, levantando a espada em posição vertical, e me agachei por um
segundo antes de correr em direção a Lucien, que cambaleou para trás, perto da espada
que tinha largado no chão. Trazendo minha arma para cima, oscilei-a de novo no
seu braço direito, em cima do seu braço estendido. Ele soltou um uivo e girou
ao redor com espada na mão.
Ele se levantou
por um segundo me encarando, sem compreender, enquanto sangue se derramava da
ferida ao lado. Então, com um andar cambaleante, ele se disparou para mim, mas
falhou no último segundo quando se desequilibrou tropeçando sobre o corpo do
Vincent.
Saltei para a
direita, longe dele, e então, me impulsionando novamente, dei outra girada para
a cabeça dele, errando quando ele mergulhou para me evitar. Ele se lançou de lado
da sua posição agachada, apertando os olhos enquanto me olhava, e então, de
repente, seus olhos se ampliaram de surpresa. ― Vincent. Você está aí? ―
perguntou, incrédulo.
Senti-me rir e
as palavras de Vincent saíram da minha boca, com a minha própria voz. ― Lucien.
Meu velho inimigo.
― Não ―, Lucien disse, sacudindo a cabeça
e segurando a espada para cima defensivamente com seu braço bom. ― Isso não é
possível. Você está nas Catacumbas.
― Parece que você está errado aí ―,
Vincent disse através de mim. ― Você nunca foi o mais brilhante zumbi do
cemitério.
Lucien rosnou e
disparou para mim, mas saltei agilmente para um lado enquanto ele tropeçava e
se impedia de bater na cama.
― Então, o que exatamente você está
tentando fazer aqui? ― minha voz disse calmamente. ― Ia levar a minha cabeça de
volta para Jean-Baptiste e então começar a trabalhar no assassinato do resto da
minha família?
― Eu só estou resolvendo alguns assuntos
pendentes ―, sibilou Lucien.
― Eu não podia me importar menos com seus
parentes, entretanto, agora que você os mencionou, poderá ser divertido manter
uns poucos revenants para churrasco uma vez que eu matar Kate e levar a sua
cabeça de volta com uns gravetos.
― É a parte “matar Kate” que eu acho que
poderá encontrar dificuldade
― , ouvi a mim mesma dizer, enquanto
corria para ele, sentindo uma força percorrendo o meu corpo que foi por muitas
vezes meu. Lucien sustentou sua espada para me encontrar, mas eu cheguei mais
rápido do que ele pôde reagir.
― Isso é por todos os inocentes que você
traiu até as suas mortes ―, eu disse, e cortei profundamente o seu já ferido
braço direito.
Sua espada foi
tinindo no chão, e ele gritou, cambaleando em direção ao fogo. Sangue gotejava
no fogo enquanto ele se inclinava sobre ele, caindo de joelhos para agarrar a
faca que tinha colocado perto da lareira. Então, com incrível velocidade, ele
pulou sobre os pés e lançou a faca para a minha cabeça. Eu pulei para fora do
caminho, mas não fui rápida o bastante, e a lâmina perfurou de modo limpo o meu
ombro direito.
Não gritei. Não
tive tempo. Transferindo a espada para a minha mão direita, com a minha
esquerda tirei a faca do meu ombro. Então, sem vacilar, eu a arremessei de
volta para ele com uma força sobre-humana, derrubando- o para trás um passo
enquanto a lâmina se alojava profundamente através do seu olho esquerdo para
dentro do seu cérebro. ― E essa é por toda a minha família que você destruiu ―,
eu me ouvi dizer. O olho restante de Lucien rolou para cima e, com a boca
aberta, ele tropeçou na minha direção, como se estivesse em câmara lenta.
Eu me virei e
saltei sobre a mesa de café. Segurando a espada em ambas as mãos, eu a
impulsionei alto no ar e a trouxe para baixo em direção ao seu pescoço com um
poderoso e horizontal movimento curvilíneo. Senti a lâmina cortar de modo
limpo, atravessando e mandando sua cabeça voando pelos ares em um arco
sangrento.
O corpo sem
cabeça ficou na mesma posição por uns dois segundos antes de despencar no chão
em uma pilha. ― Queime no inferno ―, Vincent disse enquanto eu erguia a cabeça
pelos cabelos e avançava com ela para a lareira.
Só então a porta
se escancarou e Ambrose explodiu por ela, gritando como um louco e oscilando o
machado de guerra em uma mão. Seu outro braço estava rasgado com um talho significante
e suas roupas em farrapos estavam manchadas de carmesim. Um ribeirão de sangue
descia pelo seu rosto de uma ferida no couro cabeludo.
Seus olhos
alucinados se fixaram no corpo decapitado de Lucien e então vibraram para
frente, para o corpo de Vincent estirado no tapete perto da lareira. Ele olhou
para mim, em pé a alguns metros de distância, segurando uma enorme espada sem
esforço em uma mão e a cabeça do Lucien na outra. Ele assentiu silenciosamente
e eu assenti de volta. Virando-me para a lareira, lancei a grotesca cabeça
dentro das chamas.
― O corpo ―, eu disse, e agarrando o
cadáver de Lucien pelos braços e pernas, Ambrose e eu o carregamos até o fogo,
balançando-o levemente para trás antes de soltá-lo no topo das toras pegando
fogo.
― Vincent, é você aí? ― Ambrose disse,
dando um passo para longe e olhando para mim. Minha cabeça afirmou. ― Bem,
melhor que seja, por que se for somente você, Katie-Lou, estou oficialmente com
medo. ― Sorri para ele, e ele sacudiu a cabeça em descrença.
― Saía daí, Vin, você está me assustando
―, ele disse.
Pronta? Vincent
me perguntou.
― Sim ―,
respondi e, imediatamente, senti o sopro de energia partindo do fundo da minha
cabeça. Parecia que meu corpo era um balão desinflando, e Ambrose veio adiante
para me pegar quando caí. Ele me colocou cuidadosamente no chão.
Kate! Você está
bem? Vieram as palavras de Vincent imediatamente. Assenti. ― Estou bem.
Sua mente. Sem
confusão? Pânico?
― Vincent, não sou diferente de ninguém,
exceto que não sei se serei capaz de me mover por uma semana, estou tão
exausta.
Impressionante.
― O corpo do Gaspard está do lado de fora
―, eu disse, me virando para Ambrose.
― Nós vimos. Jean-Baptiste o tem. Ele
estará bem.
― E em relação aos outros? ― perguntei,
olhando para o sangue da sua camisa.
Ele assentiu. ―
Todos nós conseguimos voltar. Dei um suspiro de alívio. ― E Charles?
― Temos o seu corpo ―, Ambrose respondeu,
e então, gesticulando em direção à cama, perguntou ―, O que sua irmã está
fazendo aqui?
― Oh meu Deus, Geórgia! ― chorei e olhei
para a minha irmã. Usei meu último pedaço de força para rastejar até ela e
tocar o seu rosto sem sangue.
― Você está bem? ― perguntei a ela.
― Acho que sim. Só dói se me movo ―, ela
respondeu, sua voz fraca.
― Ela precisa de ajuda ―, eu disse
urgentemente para Ambrose. ― Pode ter tido uma concussão ― ela realmente bateu
a cabeça forte e estava inconsciente até pouco tempo. E tenho certeza absoluta
que sua mão está quebrada, também.
Ambrose se
agachou sobre ela e, sendo cuidadoso para não mover o seu pescoço, tirou-a de
sua posição amassada e a deitou esticada ao chão.
― Precisamos levá-la ao hospital ―, eu
disse.
― Ela não é a única que precisa de atenção
médica ―, Ambrose respondeu, apontando para o meu ombro.
Olhei para baixo
e vi minha camisa ensopada de sangue. Até então, não tinha sentido isso antes.
Agora, uma dor ardente corria através do meu braço, explodindo enquanto
alcançava o corte aberto. Agarrei meu ombro e depois, com a mesma rapidez e estremecendo
de dor, deixei a mão cair.
Ouvindo passos
acelerados no corredor, olhei para a porta justo quando Jules explodiu por ela.
― Kate? ― perguntou, pânico em sua voz.
― Ela está bem ―, considerou Ambrose. ―
Fatiada no ombro e um pouco na perna, mas está viva.
Jules olhou ao
redor do quarto descontroladamente, e vendo a forma do
Vincent perto da
lareira, caiu de joelhos com alívio. Segurando as mãos na cabeça, ele disse
suavemente ao ar ―, Vince, oh cara, estou tão feliz que você ainda esteja aqui.
Uma pungente fumaça
acre começou a derramar da lareira enquanto o corpo do Lucien pegava fogo.
Olhando naquela direção, Ambrose disse ―,
Devemos sair
daqui se não quisermos sufocar com a fumaça.
Jules ficou em
pé, abriu as janelas, e então se agachou perto de nós. ― Como ela está? ―
perguntou, acenando na direção da Geórgia.
― Viva ―, eu disse.
― E você? ― ele disse, embalando o meu
rosto com a mão.
Lágrimas
nublaram meus olhos. ― Eu estou bem ―, eu disse e rapidamente as enxuguei.
― Oh, Kate ―, ele disse e se inclinou na
minha direção, me envolvendo em seus braços. Era exatamente o que eu precisava:
toque humano. Tudo bem, não humano, tanto faz. Uma vez que Vincent não estava
aqui para me abraçar, Jules era mais do que adequado como um substituto.
― Obrigada ―, sussurrei.
― Hospital ―, Ambrose disse simplesmente e
se levantou para tirar um celular do bolso. Ele andou para o outro lado do
quarto para fazer a ligação e
Jules me soltou
para segui-lo.
Olhei abaixo
para a minha irmã. Ela parecia tonta. ― Nós vamos ao hospital. Tudo vai ficar
bem.
― Onde ele está? Lucien? ― ela perguntou,
entorpecida.
― Morto ―, eu disse simplesmente.
Ela olhou para
mim e perguntou ―, O que aconteceu? ― Quanto você viu? ― perguntei a ela.
Ela me deu um
fraco sorriso e disse ―, Suficiente para saber que minha irmã é uma fodona
lutadora de espada.
38
Os outros
chegaram em casa quando nossa ambulância estacionou. Ambrose tinha chamado o
seu contato regular, que concordou em nos levar para uma clínica médica particular
sem a apresentação de um relatório de polícia. Os paramédicos não queriam mover
a cabeça da Geórgia, por isso ela foi equipada com um colar cervical e levada
para a ambulância em uma maca. Depois eles colocaram bandagens temporárias nas
minhas feridas, Jules e eu subimos na parte traseira, sentando ao lado dela.
Queria saber o
que os paramédicos estavam pensando sobre nós: duas adolescentes de aparência
frágil, que pareciam ter estado em uma briga de gangues, e Jules vestido como em Matrix. Eu estava cem
por cento certa de que se não fosse por terem sido pagos, estaríamos a caminho
de uma delegacia de polícia para sermos interrogados.
Mesmo eu
morrendo vontade de saber o que tinha acontecido nas Catacumbas, nós não conversamos,
já que um dos paramédicos estava sentado na parte de trás com a gente. Ele
estava, obviamente, usando discrição com as perguntas que fazia, e depois de
ver a aprovação de Jules, respondi simplesmente que Geórgia tinha batido a
cabeça muito forte em uma cabeceira de madeira e que alguém tinha pisado em sua
mão. Disse a ele, também, que os cortes no meu ombro e perna eram ferimentos de
faca. Esperava que lhe fornecendo informações básicas, sem frescura, fosse o
suficiente, e julgando pelo seu aceno satisfeito, isso bastou.
Uma vez na
clínica, Geórgia foi inspecionada e considerada bem, com exceção de alguns
ossos quebrados na mão que foram colocados no lugar. O corte da minha perna não
era profundo, mas meu ombro exigiu uma dúzia de pontos. Depois de testar a
mobilidade da minha mão, o médico disse que eu tive sorte de a lâmina não ter
tocado qualquer nervo.
Continuou com um
exame geral, luz nos olhos, pressão arterial e assim por diante. Finalmente,
ele suspirou e disse: ― Mademoiselle, parece que você está sofrendo de exaustão
extrema. Sua pressão arterial está perigosamente baixa. Você está queimando de
febre, sua pele está acinzentada e as pupilas dilatadas. Você está tomando
algum medicamento?
― Neguei com a cabeça. ― Quando você foi
ferida, estava participando de...
Exercício físico
intenso?
― Sim ―, eu disse, imaginando o que ele
pensaria se soubesse exatamente o tipo de exercício físico que foi.
― Você sentiu que ia desmaiar, sentiu
fadiga ou náuseas? ― Neguei com a cabeça.
Na verdade, após
Vincent ter deixado o meu corpo, me senti como uma boneca de pano, com energia
suficiente apenas para andar. Sabendo que o bem-estar de ambas, minha irmã e
eu, dependia de eu ser capaz de colocar um pé na frente do outro, foi a única
coisa que tinha me permitido seguir adiante.
― Você precisa descansar. Seu corpo
precisa se recuperar de tudo o que acabou de passar. Você e sua amiga ―, ele
acenou para a cama da Geórgia, que estava deitada ―, tenham uma boa noite.
Descanse e se recupere, ou vai acabar se machucando ainda mais. ― Ele apontou
para Jules e baixou a voz.
― Você pode me responder assentindo ou
balançando a cabeça. Devo deixar você sair da clínica com este homem?
Percebi o quanto
perigoso Jules parecia com suas botas prateadas, calças de couro e camadas de
roupas de proteção preta. Sussurrei: ― Não foi ele. Ele é um amigo. ― O médico
me olhou nos olhos por um segundo e, finalmente convencido, assentiu e me
deixou descer da mesa.
Enquanto Jules
estava conversando com o médico e lhe entregando dinheiro em troca do
tratamento, sussurrei ―, Vincent?
Sim, foi a
resposta imediata.
― Você esteve
aqui o tempo todo?
Como eu poderia
deixar você em um momento como este?
Fechei meus
olhos e tentei imaginar seus braços em volta de mim.
Voltamos para
uma casa que parecia uma sede militar pós-guerra. Havia um movimento abafado de
quarto em quarto, como pessoas visitando uns aos outros e ajudando a cuidar de
seus ferimentos. Eu tinha explicado à Geórgia que tínhamos que passar a noite
na casa do Vincent. Não podíamos ir para casa assim. Eu a levei escada acima e
a coloquei na cama da Charlotte, supondo que o corpo do Lucien ainda queimava
no quarto do Vincent. Mesmo que não estivesse, eu não podia me imaginar
voltando à cena do massacre sangrento. Ainda muda pelo choque, Geórgia estava
dormindo no momento em que sua cabeça encostou no travesseiro.
Meu ombro estava
começando a queimar novamente agora que o anestésico usado para dar pontos na
minha ferida estava passando. Fui pelas escadas até a cozinha em busca de um
pouco de água para engolir os analgésicos que havia recebido.
Está doendo? A
voz de Vincent veio na minha cabeça. ― Não, muito ―, menti.
Jules atravessou
as portas parecendo muito bem em um jeans rasgado e camiseta. Ele me lançou um
sorriso que transmitia tanto carinho quanto respeito. ― Reunião em casa ―, ele
disse. ― Jean-Baptiste quer que você esteja lá.
― Ele quer? ― Eu
disse surpresa.
Jules assentiu e
me entregou uma camiseta limpa. ― Achei que você poderia querer estar um pouco
mais apresentável ―, ele disse, apontando para a minha roupa encharcada de
sangue. Ele deu as costas enquanto eu me trocava rapidamente e atirava a peça
em ruína na lata de lixo.
Caminhamos
juntos pelo corredor e hall de entrada, entramos em uma sala enorme, com tetos
altos e janelas de dois andares. Um cheiro abafado de couro velho e rosas
murchas empesteava o ar. Uma porção de sofás de couro e poltronas estava
organizada na extremidade do redor de uma lareira monumental.
Perto do grande
fogo queimando na lareira, vi Charlotte deitada em um sofá, e Ambrose estendido
sobre o tapete persa em frente a lareira. Ele estava vestindo uma camiseta e
jeans limpo e, apesar de tudo, seus ferimentos haviam sido limpos e não havia
sangue à vista, ele tinha ataduras suficientes para lhe qualificar como uma
múmia. Ele me viu olhando e disse: ― Não se preocupe, Kate, em algumas semanas
e vou estar novo em folha.
Concordei, me
esforçando para mudar a expressão de assustada para tranquila.
― Aqui estão eles ―, Jean-Baptiste disse,
balançando para frente e para
trás em frente
ao fogo, segurando um atiçador em uma mão como uma bengala. ― Esperávamos por
você e Vincent voltarem antes de iniciarmos ―, ele disse, apontando para mim
uma cadeira com os olhos.
Eu me sentei.
― Existem algumas decisões que têm de ser
tomadas e eu preciso ouvir
o que aconteceu,
detalhadamente, de cada uma de suas perspectivas. Começarei. ― Ele colocou o
atiçador contra a lareira e ficou com as mãos atrás das costas, olhando cada um
como um balanço geral de suas tropas. Charlotte, Ambrose e Jules começaram a
contar suas próprias partes da história, com Jean-Baptiste “traduzindo” para
Vincent. O grupo, com a ajuda de Vincent, tinha recuperado o corpo de Charles
antes de se encontrar encurralado no interior das Catacumbas por um pequeno
exército de numa. Um exército sem um líder. Foi preciso um comentário de um dos
seus sequestradores para alertá-los do que estava acontecendo: Lucien havia
proibido os numa de matar quaisquer revenants até que ele retornasse com “a
cabeça”. Suspeitando que o chefe em questão fosse o deles, Vincent foi embora
num piscar de olhos. Os revenants aproveitaram a hesitação dos numa para
matá-los, então abriram caminho para fora e, em seguida, correram de volta para
ajudar Vincent.
― Não parece que fomos seguidos ―, Jean-Baptiste
concluiu. ― Kate ―, ele se virou para mim formalmente ―, Você gentilmente
assume a narrativa daqui?
Eu contei ao
grupo o que tinha acontecido, começando com as mensagens de texto da minha
irmã, até o momento em que
Vincent chegou e tomou conta do meu corpo.
― Impossível! ― Jean-Baptiste exclamou.
Olhei para ele
ironicamente. ― Bem, com certeza não fui eu quem cortou a cabeça gigantesca de
um numa com uma espada de mais de um metro!
― Não, não impossível que ele te possuiu.
Impossível que você tenha sobrevivido com a sanidade mental intacta. ―
Jean-Baptiste ficou em silêncio por um segundo e, então, assentiu. ― Se você
diz, Vincent, mas simplesmente não vejo como é possível para um humano
experimentar esse fato e passar tão ileso quanto a Kate parece estar. Além de
alguns boatos antigos e sem fundamentos, não há absolutamente nenhum
precedente. ― Ele fez outra pausa, escutando. ― Só porque você pode se
comunicar com ela enquanto está dormente não significa que tudo é possível. Ou
seguro. ― O mais velho revenant repreendeu. ― Sim, sim, eu sei... Você não
tinha outra escolha. É verdade, se você não tivesse feito assim ambos não
estariam aqui. ― ele suspirou e se virou para mim.
― Então você matou Lucien?
― Sim, quero dizer, Vincent... Um, a faca
que nós jogamos acertou um de seus olhos, perfurando profundamente a cabeça.
Esse golpe deve tê-lo matado. Pelo menos seu rosto parecia morto. Então nós
cortamos a cabeça com a espada.
― E o corpo?
― Jogamos no fogo. ― Ambrose falou. ―
Observei depois que eles deixaram à clínica. Não sobrou nada.
Jean-Baptiste
relaxou visivelmente e ficou imóvel por um segundo, segurando a testa, antes de
olhar de volta para o grupo.
― É claro então que o plano era atrair o
resto de nós, com Vincent volant, para longe da casa, abrindo caminho para
Lucien vir aqui e descartar o seu corpo. Conhecendo o nosso velho inimigo, ele
provavelmente pretendia voltar com a cabeça para queimá-la na frente de nós
antes de nos destruir também. Essa é a única razão que posso imaginar para que
eles não tenham nos massacrado logo que chegamos nas Catacumbas.
A sala ficou em
silêncio.
― Eu teria preferido que Charles estivesse
aqui para se juntar a nós para essa conversa ―, ele fez uma pausa, expirando
profundamente ―, mas, devido às circunstâncias, deixo para você, Charlotte, dar
a notícia ao seu irmão que pedi a ambos para partir.
39
Todos olharam um
para o outro chocados.
― O quê? ―
Charlotte murmurou, sacudindo a cabeça como se não tivesse entendido.
― Isto não é um castigo ―, Jean-Baptiste
esclareceu. ― Charles tem que sair daqui. Fora de Paris. Sair desta casa. Longe
de mim. Ele precisa de um tempo para colocar a cabeça no lugar. E Paris, na
sequência desta batalha, está... ― ele procurou o termo certo ―, declarando guerra,
se é que isso que seja uma revelação, não é um lugar seguro para quem ainda não
conhece sua própria mente.
― Mas... Por que eu? ― Charlotte disse,
atirando um olhar rápido e em pânico na direção de Ambrose.
― Você pode viver separada do seu irmão
gêmeo?
Ela baixou a
cabeça. ― Não.
― Eu achei que
não. ― Seu rosto se suavizou quando Charlotte começou a chorar. Ele se
aproximou e sentou ao lado dela no sofá, demonstrando uma ternura que, na minha
limitada experiência de Jean-Baptiste, parecia completamente fora de contexto.
Segurando a mão dela na sua, ele disse ―, Querida menina. É apenas por alguns
meses, enquanto estivermos descobrindo o que o clã do Lucien vai fazer sem ele.
Será que eles vão nos atacar? Será que a falta de um líder irá forçá-los a entrar
na clandestinidade por um tempo? Nós simplesmente não sabemos. E tendo
Charles ao
redor, confuso e indeciso, nos tornaremos mais fracos quando precisamos estar
mais fortes. Tenho casas por toda parte, você sabe. Vou deixar você escolher
para onde os dois irão. E você vai voltar. Eu prometo.
Charlotte se
inclinou para frente e jogou os braços ao redor do pescoço de Jean-Baptiste,
soluçando. ― Shhh ―, ele disse, acariciando suas costas.
Uma vez que ela
se acalmou, ele se levantou de novo e, dirigiu-se a Ambrose e Jules, dizendo: ―
Quando Gaspard puder se comunicar, vou conversar com ele quanto aos nossos
planos. Devemos convidar outras pessoas para substituir Charlotte e Charles durante
este tempo. Vocês estão convidados a fazer sugestões.
― E quanto a você, Kate ―, Jean-Baptiste
disse, virando-se para mim. Eu me sentei na minha cadeira rigidamente, sem
saber o que viria depois, me armando para o pior. Ele não podia me banir, não
vivo sob o seu teto. E ele não podia me impedir de ver Vincent, eu recusaria.
Embora eu nunca tenha me sentido fisicamente mais fraca na minha vida, minha
determinação nunca foi mais forte. ― Devemos a você nossa gratidão. Você
protegeu um dos nossos parentes colocando sua própria vida em perigo.
Fiquei sentada
ali, atordoada, e finalmente disse: ― Mas... como eu poderia ter agido de outra
maneira?
― Você poderia ter pego a sua irmã e saído
correndo. Vincent iria com o Lucien depois.
Balancei a
cabeça. Não, eu não poderia ter feito isso. Teria preferido morrer a deixar Vincent
ser destruído.
― Você ganhou a minha confiança ―,
Jean-Baptiste concluiu formalmente. ― De agora em diante, você é bem-vinda
aqui.
Jules falou. ―
Ela já era bem-vinda aqui. ― Ambrose acenou de acordo. Jean-Baptiste olhou para
eles levemente. ― Ambos sabem como me esforço para proteger a nossa tribo. E
embora eu confie em vocês em tudo, nem sempre confio em suas decisões. Alguém
mais foi permitido trazer um amante humano em casa?
O cômodo ficou
em silêncio.
― Bem, é a única que está ganhando o meu
oficial bem-vindo.
― E só precisou
cortar a cabeça de um zumbi malvado para ganhá-lo ―, Ambrose murmurou
sarcasticamente.
Jean-Baptiste
ignorou e continuou. ― No entanto, eu apreciaria se você encontrasse alguma
forma de explicar isso a sua irmã evitando que ela tenha acesso a todos os
nossos segredos. E se você tiver a mínima suspeita de que ela está em contato
com qualquer um dos companheiros do Lucien, gostaria de pedir que você me
dissesse imediatamente. De qualquer forma, ela não será autorizada a entrar
nesta casa novamente para a segurança de todos nós. Percebi que foi contra a
sua vontade, mas a sua presença permitiu a violação da segurança que temos
vivenciado dentro de nossos portões.
Concordei,
pensando em como Geórgia
foi quase o final da história para mim e para Vincent... Para todos nós.
40
― Meu avô
gritou, quando a rolha da garrafa foi para a esquerda como um tiro, causando a
todos saltar e depois aplaudir quando ele cuidadosamente derramou o espumante
em taças altas. Ele segurou a sua taça em um brinde e o resto de nós imitou o gesto.
― Eu gostaria de desejar um feliz
aniversário de dezessete anos a minha princesa, Kate. Fico na esperança que
dezessete será um ano mágico para você!
― Ouçam, ouçam! ― Vovó saltou tilintando
sua taça contra o meu. ― Oh, dezessete anos ―, ela suspirou. ― Essa foi a idade
que conheci o seu avô. Não que ele prestasse atenção em mim nesse ano ou algo
assim ―, ela disse de uma maneira que foi quase sedutora.
― Era tudo parte do meu plano ―, ele
respondeu, piscando para mim.
― E de qualquer maneira, eu recuperei o
tempo perdido desde então, não foi?
Vovó concordou e
se inclinou para lhe dar um beijo carinhoso antes de tocar a sua taça.
Inclinei-me para tocar a taça do vovô, e depois me voltei para Geórgia, que
tinha sua bebida na mão esquerda, uma vez que a sua direita ainda estava com
uma bandagem.
― Feliz aniversário, Kate ―, ela disse,
sorrindo calorosamente para mim, e então olhou para a mesa, como se
envergonhada. Geórgia não era a mesma desde o “acidente”, como meus avós
chamavam. Embora minhas feridas fossem facilmente escondidas sob roupas de
inverso, Geórgia teve que explicar o incidente com a mão.
Como explicou,
ela deu um passo no meio de uma briga na boate e foi derrubada e pisoteada.
Vovô e vovó ficaram horrorizados e a proibiram de ir a bares e clubes.
Curiosamente, ela não pareceu se importar e passava as noites agora
comparativamente calma, indo a festas, jantares ou cinema com um pequeno número
de amigos. Desde aquela noite, ela jurou que não queria mais homens,
veementemente jurando que não podia mais confiar em seus instintos, mas eu
sabia que não duraria muito tempo.
Ela vinha ao meu
quarto algumas vezes tarde da noite, me acordando para distraí-la de seus
pesadelos frequentes. Ela queria saber tudo sobre Revenants. E contei a ela.
Não me importando com a proibição de Jean-Baptiste ― eu sabia que podia confiar
nela. Agora que não havia mais segredos entre nós, Geórgia me tratava com um
novo respeito e agia como se Vincent tivesse pendurado a lua.
― Que este seja um ano feliz para nós
duas. ― Sorri para ela e então me virei para Vincent, que estava aguardando a
sua vez. Ele tinha aparecido naquela noite vestindo um smoking preto vintage e
eu quase desmaiei quando abri a porta.
― Hum, me esqueci de avisar que, pela
primeira vez, minha família não está usando black tie33 para o jantar? ― Eu
disse, meu sarcasmo pouco convincente desde que estava deslumbrada com sua
aparência. Ele parecia uma estrela de cinema das antigas, seu cabelo preto
penteado para trás. Ele apenas sorriu misteriosamente e se recusou a me
responder.
Agora nossas
taças se tocaram, e ele se inclinou para me dar um beijo doce na boca, antes de
dizer. ― Feliz aniversário, Kate. ― Seus olhos brilhando maliciosamente
enquanto ele olhava para mim com aquele olhar que sempre me fazia derreter:
Como se eu fosse comestível e ele mal podia se conter em me dar uma mordida.
― Vocês, crianças, melhor irem andando ―,
vovó disse finalmente.
― Ir para onde? ― Perguntei, confusa.
33 Black Tie:
Gravata preta. Expressão criada para designar o "smoking" onde se usa
aquela tradicional gravata-borboleta preta. Ou “à rigor”, que se refere a
trajes social-chique: smoking e vestido, de preferência, longo.
― Obrigado por manter meu planos para o
aniversário em segredo. ― Vincent se dirigiu a minha família. Depois,
voltando-se para mim, ele disse:
― Você precisará disso primeiro ―, e puxou
uma grande caixa branca debaixo da mesa.
Corando, eu
desatei a fita e abri o pacote para ver cuidadosamente mexendo no interior,
havia camadas de tecido, um tecido de seda azul meia- noite bordado em um
padrão asiático com minúsculas flores vermelhas e videiras prateadas. Eu
engasguei. ― O que é isso?
― Bem, tire-o! ― Vovó disse.
Puxei o tecido
para fora para segurá-lo. Era um vestido deslumbrante, sem mangas, até o chão,
com uma cintura estilo império e alças que amarravam atrás do pescoço. Eu quase
o deixei cair, era tão requintado.
― Oh, Vincent. Nunca tive um presente tão
bonito como este. Obrigada! ― Eu beijei o seu rosto. ― Mas quando vou usá-lo? ―
Eu disse, colocando o vestido cuidadosamente de volta na caixa.
Ele sorriu ―,
Bem, esta noite, para começar. Vá em frente e coloque-o. Geórgia me disse o seu
tamanho, por isso deve servir.
Geórgia colocou
o seu sorriso maroto de volta pela primeira vez. Foi bom vê-la parecendo como
antigamente, só por um segundo. ― Vou com você ―, ela disse, e nós duas
voltamos para o meu quarto.
― Quando ele te perguntou sobre isso? ― Eu
a interroguei quando tirei a roupa e coloquei o vestido pela cabeça.
Geórgia abotoou
o corpete na parte de trás e amarrou as tiras em volta do meu pescoço com um
nó. ― Preso, melhor ―, disse ela, torcendo meu cabelo comprido e prendendo-o
com grampos atrás da minha cabeça em uma volta simples, mas elegante.
― Há uma semana ―, ela respondeu. ― Ele me
ligou do ateliê do novo designer realmente chique e me perguntou o seu tamanho.
Parece que deu certo ―, ela disse, avaliando o vestido com inveja óbvia. Ela
tocou a cicatriz do meu braço e sumiu do quarto, voltando com um chalé de renda
fina. ― Isso esconde ―, ela disse, balançando a cabeça com aprovação. ― Santa
vaca, esta coisa é linda. ― Ela correu os dedos, descendo pela seda, enquanto
olhava para o meu reflexo no espelho.
― Uau, com você vestida assim, mal posso
acreditar que é a mesma garota que estava fazendo uma imitação perfeitamente
convincente de Uma Thurmam de Kill Bill ― há menos de duas semanas ―, ela
disse. Eu a abracei enquanto saíamos do quarto.
Vincent estava
me esperando no saguão. O fogo em seus olhos quando me viu revelou exatamente
minha aparência para ele.
― Oh querida, não é surpreendente? ― vovó
exclamou radiante, quando me entregou um casaco preto longo com capuz. ― Você
vai precisar disso para se manter aquecida. Isso sempre foi grande demais para
mim, mas deve caber em você perfeitamente ―, ela murmurou.
― Você é linda, assim como sua mãe era ―,
sussurrou vovô emocionado, beijando meu rosto e dizendo para nos divertirmos.
Geórgia nos acenou do lado de fora e fechou a porta, nós descemos as escadas.
Uma vez que
pisamos para fora no ar cortante, fiquei feliz pelo casaco de vovó que era bem
isolado, então fui capaz de deixá-lo aberto, exibindo o vestido. Na metade do
quarteirão, Vincent parou, se virou para mim e sussurrou: ― Kate, eu me sinto
tão... ― ele fez uma pausa, parecendo sem palavras ―, tão honrado de estar com
você. Tão sortudo. Obrigado.
― O quê? ― Respondi incrédula. Ele se
inclinou para me beijar e eu ergui a minha boca ao encontro da sua.
Conforme nossos
lábios se encontraram, o meu corpo moldou ao seu. Senti seus batimentos
cardíacos junto ao meu, e um calor gostoso subiu dentro de mim quando respondi
ao seu beijo. Vincent segurou meu rosto suavemente enquanto seus lábios
insistiam contra os meus. O calor dentro de mim se transformou em um fluxo de
lava.
Finalmente,
quebrando a nossa conexão, ele me envolveu em seus braços. ― Mais. Mais tarde
―, prometeu. ― Quando nós não estivermos em pé no meio de uma rua da cidade. ―
Ele olhou para mim como se eu fosse seu milagre pessoal e, passando o braço em
volta dos meus ombros, puxou-me apertado enquanto caminhávamos em direção ao
rio.
Uma vez lá,
fomos para baixo pelo longo lance de escada até o cais. Eu ri quando vi uma
figura familiar em pé a poucos metros de distâncias. ― O que você está fazendo
aqui, Ambrose, no meio do meu encontro de aniversário?
― Apenas parte do plano, Katie. Apenas
parte do plano ―, ele disse enquanto se abaixava para beijar o meu rosto. ―
Vamos vê-la agora. ― Ele deu um passo para trás e assobiou baixinho quando eu
deixei cair o casado até a metade dos meus braços para mostrar o vestido. ―
Vin, você é um homem de sorte ―, ele disse, dando um soco brincalhão em
Vincent, que pareceu doer.
Vincent esfregou
o local, rindo, e disse: ― Obrigado. É só do que preciso, lesão corporal
enquanto estou tentando impressionar a minha namorada.
― Oh, você vai ficar impressionada. ―
Ambrose sorriu. ― É melhor você ficar! ― Ele apontou para a água com uma mão. ―
Olhe o que tenho para você de última uma hora e meia.
Um pequeno bote,
pintado de vermelho brilhante, balançava suavemente nas ondas do rio.
― O que é isso? ― Engasguei.
Vincent apenas
sorriu e disse. ― Normalmente eu diria “primeiro as damas”, mas neste caso... ―
Ele desceu os degraus de pedra íngremes ao lado do cais e saltou agilmente para
o barco. Ambrose me ajudou até a metade, e então Vincent agarrou a minha mão e eu
pisei cuidadosamente na embarcação balançando.
Ambrose nos deu
uma saudação antes de ir embora. ― Mande uma mensagem de texto quando você
precisar de mim, cara ―, ele falou sobre o ombro enquanto fazia seu caminho
subindo os degraus até o nível da rua.
Vincent
desprendeu os remos e remou a oeste, em direção às luzes cintilantes do Museu
d’Orsay. ― Pegue um cobertor ―, ele disse, apontando para uma pilha de mantas e
colchas felpudas espalhadas por todo o fundo do barco. Ele tinha pensado em
tudo.
― Como-como você
conseguiu este barco? Isso é mesmo legal? ― Gaguejei.
Vincent
assentiu. ― À medida que legal seja como qualquer um dos negócios de
Jean-Baptiste. Mas para responder a sua pergunta, sim, o barco é registrado à
cidade de Paris. Nós não vamos ser parados por qualquer policial no rio. ― Ele
riu baixinho e disse. ― Então, quando você quer os seus presentes?
― Você está brincando, Vincent? Eu não
preciso de mais presentes. Este é o mais incrível presente que alguém já me
deu. Um passeio de barco no Sena? Em um vestido de seda incrivelmente
embrulhado? Devo estar sonhando! ― Vi as luzes brilhantes nos Jardins Tuileries
quando abrimos caminho passando um edifício monumental de colunas gregas ―
pairando sobre a margem esquerda. Enormes estátuas de deuses e deusas
flanqueadas no edifício. Era como eu me sentia esta noite, com Vincent ao meu
lado, que eu pertencia lá, ao meio deles.
― Abra os seus presentes ―, ele insistiu
com um sorriso sexy. ― Eles estão sob os cobertores. ― Ele pegou o meu casaco
pesado e continuou remando. Pesquei debaixo das cobertas e peguei dois pacotes
embrulhados em papel prateado. ― Abra o grande primeiro ―, Vincent disse
suavemente.
Ele não estava
sem fôlego por remar.
Delicadamente,
abri e vi, situada dentro de camadas de tecido, uma bolsa pequena feita de seda
com estampas asiáticas combinando com o meu vestido, presa de cada lado uma
longa corrente que chegava à cintura. O fecho era feito de duas rosas de metal
esmaltado em vermelho e prato, idênticas as do tecido. ― Oh meu Deus, Vincent,
é linda ―, ofeguei, correndo os dedos sobre ela.
― Abra ―, ele disse. O brilho em seus
olhos me disse que estava gostando disso tanto como eu. Talvez mais.
Eu
cuidadosamente empurrei as duas flores para abrir a bolsa e tirei um montinho
de tickets. Segurei-os até alcançarmos a luz do poste na beira do rio e vi o
logotipo da Ópera Garnier.
Olhei
interrogativamente para Vincent, e ele disse: ― Você me disse que gostava de dança.
Esses são ingressos para a temporada de Ópera
Garnier, onde
todos os balés e acontecimentos de dança contemporânea são detidos. Reservei um
camarote privado para essa temporada. O vestido é para isso, mas o primeiro
balé é daqui algumas semanas, não queria que você tivesse que esperar para
usá-lo.
Eu não sabia o
que dizer. Meus olhos se encheram de lágrimas.
Vincent parou de
remar. ― O que foi, Kate? Está chateada? Você me disse que queria ter algum
encontro humano normal, então pensei que isso fosse uma boa ideia.
Finalmente
encontrei a minha língua e disse: ― Não há nada de normal em ingressos de temporada
e um camarote privado na Ópera Garnier. Ou encomendar um vestido sob medida
para eu usar. Não, Vincent. ― Balancei a cabeça. ― Normal não seria a palavra.
Suas feições se
suavizaram quando percebeu que eu não estava chateada, apenas sobrecarregada. ―
Então, qual seria a palavra? Anormal?
― Excepcional. Extraordinário. O oposto
polar de normal.
― Bem, querida Kate, como eu já lhe
expliquei, estou lhe pedindo para trocar uma vida normal para algo
extraordinário. Então quero fazer as coisas
para você de uma
maneira extraordinária.
― Você está fazendo um bom trabalho ―,
soprei.
― Tem mais um aí ―, ele disse, apontando
para a caixa restante.
Abri o papel e
tirei uma caixa articulada para joias ― o tamanho que caberia uma pulseira ou
colar. Olhei para ele, alarmada. ― Vincent, é muito cedo para algo como isso ―,
eu disse, desconfortável.
― Tenho a esperança de te conhecer um
pouco até agora ―, ele disse, obviamente curtinho meu desconforto. ― Você acha
que eu iria assustá-la dando-lhe uma joia tão cedo? Confiem em mim, não é o que
você pensa. Abri a caixa devagar. Dentro havia um cartão. Pequeno, de aparência
antiga, que estava escrito: Para Kate Beaumont Mercier, aulas de esgrima dadas
por minha própria pessoa, Gaspard Louis-Marie Tabard. Número de aulas
especificado por V.Delacroix: Tantas quantas você precisar.
― Oh, Vincent! ― Chorei, me lançando para
frente para abraçá-lo, quase virando o barco no processo. ― Isso é perfeito. ―
Sentei-me de volta
e balancei a
cabeça para ele com admiração, enquanto ele ria e endireitava o barco. ― Você é
perfeito ―, sussurrei, e ele me deu um de seus sorrisos avassaladores que quase
me derrubou da beirada do barco na água.
― Esse presente é mais um agradecimento
por me salvar de flutuar como um fantasma sem corpo para o resto da eternidade
―, explicou.
― Mas você é a pessoa que fez todo o
trabalho ―, protestei.
― Nós não poderíamos ter feito isso juntos
se você não tivesse essa força de vontade. Agora você tem os meios para isso.
Espero que você nunca tenha que usar em uma situação na vida real, mas já que
você concordou em compartilhar ao menos uma pequena parte da minha vida ―, ele
me mostrou um sorriso cauteloso ―, eu me sentiria melhor se você estivesse
preparada para lidar com qualquer coisa que possa aparecer em seu caminho.
As lágrimas que
eu estava segurando começaram a cair claramente pelo meu rosto. ― Kate! Você
não deveria chorar ―, ele disse, colocando os remos nos seus anéis. Ele
escorregou para frente, fora de seu banco para se sentar no piso do barco na
minha frente.
Nós flutuávamos
sob a ponte Alexandre III, a ponte mais bonita de Paris, com guirlandas de
pedra cruzando seus arcos e lâmpadas de bronze e vidro brilhando na parte
superior. Mas eu mal podia ver a sua beleza opulenta. Porque o garoto sentado
na minha frente era tudo o que eu conseguia focar. Fechei os olhos por medo de
ser arrastada pelas minhas emoções.
Ele queria ficar
comigo. Suficiente para mudar sua vida por mim. Suficiente para se lançar a um
futuro desconhecido, inexplorado. Por mim.
Eu o amo. Eu
vinha mantendo essas três palavras acomodadas dentro de mim, para minha própria
proteção. Mas eu estava realizada de autopreservação e meu coração estava
aberto. Eu tinha temido que o amor me fizesse vulnerável. Mas ao invés disso,
eu me sentia fortalecida.
― Kate, você está bem? ― Ele escovou as
lágrimas do meu rosto. Cuidadosamente, puxando o vestido até os joelhos, eu me
ajeitei até me sentar na frente dele. Ele pegou os meus tornozelos em suas mãos
e envolveu minhas pernas em torno de seus quadris, até que eu estava sentada
confortavelmente entre suas pernas, uma curta distância separava nossos rostos.
À medida que me
tomou em seus braços, coloquei minha cabeça em seu ombro e fechei os olhos.
Deixei o conhecimento que eu o amava elevar até me inundar com um calor que
deixou toda a superfície da minha pele em chamas.
Nosso barco
balançava ao redor de um canto do cais, eu abri meus olhos para ver a Torre
Eiffel, apenas o rio abaixo de nós, adornada com um milhão de pequenas luzes e
cintilando como uma árvore de Natal. Seu reflexo sobre a superfície da água
reluzia como um universo de pequenos cristais. ― Oh, Vincent, olha! ― exclamei.
Ele sorriu e
concordou, não precisando virar para olhar uma vez que via o reflexo em meus
olhos. ― Seu último presente ―, ele disse. ― É o que nós viemos ver. Feliz
Aniversário, Kate. Mon ange. ― E num sussurro tão leve, eu sabia que não estava
imaginando, ele disse. ― Meu amor.
Embora eu
estivesse sentada em um barco no rio Sena, flutuando no meio de um milhão de
pontos luminosos, segurando o primeiro garoto que já amei, não pude deixar de
pensar sobre as nossas chances.
Sorte,
normalidade, destino... Nenhum desses parecia estar do nosso lado. Nosso próprio
estar juntos foi contra todas as probabilidades. Tudo o que eu sabia era que
algo de bom tinha começado. A chama foi acesa. E todo o universo estava
observando para ver se ela seria apagada.
Tudo que eu
podia fazer era prender a minha respiração. E esperar.
Fim
CONTINUA EM UNTIL I DIE „
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